11 de outubro de 2020 – terceira aula de Reich e Conexões Contemporâneas

Continuando a proposta do curso, nessa aula trabalhamos o capítulo três do livro “Reich, Grupos e Sociedade” – o que me faz pensar como lidaremos com o fato do livro ter sete capítulos. Nesse capítulo do livro, que inicia o “segundo corte” (o livro é dividido em três cortes – “é que o saber não é feito para conhecer, ele é feito para cortar”), o Marcus Vinícius vai fazer relações possíveis entre a teoria e prática reichiana com a obra (ou com a sua leitura da obra) de três autores: Nietzsche, Foucault e Deleuze. Como no relato anterior, acredito que uma boa forma de iniciar este é citar um parágrafo do início desse capítulo:

O movimento institucionalista e suas muitas vertentes se fundamentam, principalmente, em três filósofos: Nietzsche, Foucault e Deleuze. O primeiro recupera a força do ‘humano, demasiadamente humano’, o segundo denuncia o corpo sujeitado e seus atravessamentos sociais e o último, além de ser considerado por muitos senão o maior, sem dúvida, um dos maiores filósofos contemporâneos, é integrante de uma das correntes da Análise Institucional. Deleuze, discutindo temas tais como: desejo, devir, verdades e diversidades de fluxos, percorre inúmeros campos de conhecimento e contribui de forma decisiva para cada um deles

Ele iniciou a aula fazendo uma contextualização do surgimento da Análise Institucional, pois segundo ele foi uma abordagem que lhe impactou muito na sua formação e que ele pensava ser fundamental de explorar dentro do contexto e intenção do seu livro. E, por sua vez, entendia que era impossível falar da Análise Institucional (que irá trabalhar com mais detalhes no próximo capítulo) sem falar um pouco desses três autores, dada a sua importância para a constituição dessa abordagem, que tem origem na intelectualidade francesa – embora Nietzsche não seja da França, Foucault e Deleuze, franceses, são muito influenciados por sua obra. Vai falar também em como a produção da América Latina é importante para essa corrente, e de como a história recente desses países, com as suas ditaduras militares, é elemento inseparável de qualquer estudo e reflexão sobre essa corrente teórica; para um estudo sobre essas questões, ele recomendou o livro “Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática” de Gregorio Baremblitt; pesquisando sobre esse livro, esbarrei com o blog Práticas Autogestionárias (https://praticasautogestionarias.wordpress.com/), de um curso sobre autogestão construído e conduzido de forma autogestionária, no instituto de Psicologia da UFRJ em 2013 – o título do blog me chamou a atenção, dando uma passada de olho achei um nome conhecido, daí fui lendo, lendo, e assim passei algumas horas nesse não-lugar, me enchendo de ideias e inspirações. Embora eu esteja efetivamente cansado de construir esses relatos, esse tipo de encontro que eles me proporcionam mostram que vale a pena insistir na sua confecção, pois além do benefício óbvio de me fazer revisitar as aulas e ter maior profundidade nas temáticas, estudar é efetivamente algo cansativo, e quando os benefícios acabam sendo pontuais e espalhados, faz sentido o desestímulo. Mas seja por SMS ou seja por blogs abandonados e incompletos, esses benefícios existem e se mostram.

Iniciando a exploração dos três autores com Nietzsche, o Marcus vai dizer que nesse autor o primeiro conceito que lhe interessa é de Potência, que ele acredita possibilitar um diálogo com Reich. Apresenta o modo de escrita de Nietzsche por aforismos (que chama de “máximas”), e diz que ele “tem um apelo enorme àquilo que a gente chama de desrazão, ele sai dessa coisa tão certinha, usando… principalmente dos filósofos mais tradicionais, usando somente o pensar, a razão para entender o mundo, né. Ele diz ‘não’, né, ‘a gente vai entender o mundo não só com a razão mas também com a desrazão’, com aquilo que a gente pode chamar do que é irracional, né, e aí vem… porque é algo que eu acho… por isso que conversa também, né, não só com a Análise Institucional mas com o Reich, que o que me interessa. Aí ele fala assim, não, com os sentidos, né, os sentidos” – e recomenda o filme “O Império dos Sentidos”. A partir disso surgiram algumas questões e se falou um pouco sobre essa discussão “razão x desrazão”, “razão x emoção”, “racionalidade x irracionalidade”; são três discussões distintas, e me espanta como por vezes as pessoas passam ao largo de compreender isso. A crítica da concepção iluminista de uma “razão toda-poderosa” não é a mesma coisa que fazer uma crítica à própria noção de racionalidade; há um desenvolvimento inegável nas nossas possibilidades e capacidades quando exercitamos o campo racional, e é justamente uma compreensão que alcançamos pela racionalidade aquela de que a razão não é o único aspecto do humano e que se conhecer deve necessariamente passar por acessar essas outras dimensões que possuímos. Fazer a crítica a uma postura racionalista, como se tudo o que o ser humano fosse (ou tudo que deveríamos desejar que ele fosse) se resumisse à racionalidade, não é dizer que “a racionalidade é ruim”, “temos que escutar a voz do coração”, “gratidão” ou qualquer coisa dessas – é, justamente pelo exercício da racionalidade, perceber os limites e as possibilidades de ser algo inteiro, e não fazer como Nietzsche denuncia em Platão, um desmerecimento do corpo e valoração absoluta da alma – mas o próprio Bigode só o faz porque leu Platão, pensou sobre o que leu, investigou, refletiu, encontrou erros, enfim, se debruçou não só com a razão sobre a questão, mas sem dúvida tendo essa dimensão presente.

Fez uma aproximação também entre a crítica que Nietzsche faz da religião com o pensamento de Reich, pois, segundo ele, as religiões no tempo do Bigode acumulavam duas características que ele combatia: o moralismo e o ascetismo. Achei interessante como ele saiu de um dualismo que é comum se ver quando se fala de religiões, dividindo-as entre ocidentais e orientais, como se isso efetivamente desse conta de alguma diferenciação significativa; falou de como em algumas linhas do budismo o ascetismo também é fortemente incrustado na doutrina, através do conceito de autodisciplina, do autodomínio, a não-ação e a renúncia ao desejo. Uma coisa interessante nesse momento da aula foi que uma pessoa trouxe o exemplo da yoga, dizendo que dentro dela haveria uma ideia de subjugação do corpo pela mente, e nisso o Marcus Vinícius concordou e citou a crítica direta e explicita que o Reich faz à yoga no A Função do Orgasmo, que ele credita justamente a essa questão do controle (em algum curso anterior que fiz com ele, não recordo agora se foi Oficina do Corpo IV ou Análise do Caráter II, fiz essa pergunta e esse foi o caminho que ele percorreu, de que embora o Reich não desenvolva a crítica que faz, ele, Marcus Vinícius, pensa que tem relação com essa questão do controle apregoada pela yoga); aí a pessoa que inicialmente apresentou a questão “deu um passo atrás”, dizendo que por vezes pratica yoga e que realmente se sente bem com aquilo, que sente um aumento da percepção corporal, ainda destacando que a postulação de Reich sobre o sentido do fluxo de energia no corpo humano é diferente daquela postulada pela yoga. Eu sempre digo como é importante estarmos atentas a essas contradições, porque longe de serem algo que simplesmente podemos ignorar e ir criando amálgamas de tudo aquilo que gostamos, pontos contraditórios nos mostram que existe algum problema. No meu entender, certamente é possível se beneficiar tanto de uma leitura reichiana quanto de uma leitura yogue do mundo, pois esses pontos de conflito, a questão da energia, são no máximo analogias úteis que foram extrapoladas e/ou levadas a sério demais – ninguém, até hoje, conseguiu provar a existência de qualquer coisa como essa “energia”, um algo que se move dentro do corpo das pessoas e que teria características próprias. Como eu já defendi em outros relatos, energia é uma características que corpos podem ter, assim como cor e peso, e se não faz sentido falar de cor ou peso desassociadas de matéria, também não o faz fazê-lo em relação a energia. Por isso, tanto faz se se pensa que a energia flui da cabeça para os pés, dos pés para a cabeça, do centro para a periferia, da periferia para o centro, em sentido horário, em sentido anti-horário, deslocando-se entre os cakras (quem sacou a referência, deixa um comentário!) ou qualquer outra possibilidade, porque todas essas concepções vão se deparar com a realidade da mesma forma – mostrando-se inadequadas para compreendê-la. Agora a questão de se compreender o corpo como algo que deve se dobrar aos desígnios da mente, ou então pensar que corpo e mente são uma unidade funcional sem uma hierarquia rígida e pré-definida, essa sim pode, e deve, causar atritos; se não causa, só posso imaginar duas possibilidades, grosso modo: ou as pessoas encontraram um jeito de harmonizar essas concepções conflitantes, ou então não as estão, uma, outra ou as duas, levando muito a sério. E essa segunda opção, embora possa parecer, não é algo demeritório, não o falo como necessariamente uma crítica; eu penso que alguém poderia praticar yoga porque encontra benefícios nos exercícios, mas ignorar e mesmo se opor completamente ao aspecto filosófico – claro, sempre haverá algum conflito, porque nenhuma prática é despida de teoria (vice-versa se aplica), mas penso que lidamos com coisas muito mais conflitantes em nosso cotidiano.

Outro ponto que ele desenvolveu bastante foi a questão do livre-arbítrio, dizendo que tanto em Nietzsche quanto em Reich essa é uma ideia que não faz sentido; certamente existe uma margem de ação, mas não podemos fazer realmente tudo aquilo que queremos, pois somos limitados por circunstâncias físicas, sociais, psicológicas, culturais etc. Disso entrou em uma reflexão interessante (embora eu ache que partindo de uma leitura equivocada da ideia de ruminar do Bigode) sobre como para pessoas diferentes vão existir jeitos diferentes de lidar com questões que lhes atrapalham a vida; dividindo em dois grandes grupos, apontou como para algumas é possível e produtiva uma postura de pensar e resolver as questões que aparecem de forma local e pontual, somando processos pequenos para gerar uma grande mudança, enquanto para outras a mudança somente pode advir de um grande ruptura, que precisam desse movimento mais amplo, mais intenso, mais abrupto, para dar conta de promover modificações em situações ou padrões que lhe trazem sofrimento, limites, que lhe tiram a potência. Achei essa colocação interessante, esse é o “espírito” que me interessa na leitura de Reich que vejo, vezes mais outras menos, surgir nas aulas do IFP – uma que não busque resolver a complexidade do ser humano, como se tivesse nela algo a ser resolvido, mas sim que se debruce nela e que construa a partir dela. Nada me interessam listas tipológicas, manuais do que fazer com o caráter A ou B, actings ou formas de respiração; mas me interessa compreender que no processo terapêutico tem que existir, no mínimo, duas pessoas que sofrem, porque uma está trazendo questões particulares que não conseguiu organizar de outra forma (não consigo acreditar que as pessoas se colocariam verdadeiramente em um processo terapêutico se conhecessem outras formas de lidar com as suas questões), há evidente sofrimento nisso, e a outra sofre justamente por perceber essa realidade, por estar em uma sociedade que não apenas cria esses problemas, mas também cria a impotência em resolvê-los, em dar conta deles. Nessa mesma aula o Marcus Vinícius disse algo nesse sentido; disse que no momento em que acontece o processo, você terapeuta deve enxergar aquela pessoa na sua frente como a pessoa mais importante do mundo. Não penso exatamente nesses termos, tenho muita dificuldade com essas coisas de “o mais”, “o melhor” e seus derivados, mas acho que tem algo muito interessante na ideia.

Outro ponto interessante que foi explorado, ainda falando sobre Nietzsche, foi a ideia de que existiria uma essência do ser humano – e aqui há discordância entre o Bigode e Reich. Eu trouxe essa fala depois de algumas pessoas falarem algumas coisas e, nessas falas, ficar evidente um defender da (ou, no mínimo, um “embarcar na”) ideia de uma essência do ser humano, e para além disso, uma essência que seria boa, que teria a agressividade como forma de potencializar suas ações para conquistar seus objetivos e não como atividade que cause sofrimento nas outras pessoas, um essência que acharia a guerra desrazoável e só a poderia aceitar por meio de uma lavagem cerebral perpetrada por aparelhos culturais. Essa visão fica explícita mais para a frente na aula quando uma pessoa faz uma pergunta e diz “… quando ele diz que não existe pulsão de morte, quando ele diz que existe uma natureza boa”; o Marcus Vinícius corrigiu essa ideia, dizendo que o Reich não fala em uma “natureza boa”, embora fale em identidade, em um núcleo, para o qual deveria apontar o nosso movimento de autoregulação, sendo esse movimento constitutivo “do que melhor de nós podemos ser”. Novamente nesse momento surgiu a analogia com a guerra, e novamente na fala de alguém que estava dizendo não acreditar em, ou ao menos não encontrar em Reich, uma essência imutável – mas o discurso vai justamente na direção oposta, pois apresenta a guerra como algo que iria contra o “essencialmente humano”, pois quando “ele vê o horror da guerra, ele entra em contato com esse cerne… ou muitas vezes tem soldado que surta no meio da guerra (…) não consegue mais entrar em contato com esse núcleo, com essa coisa mais de cuidar do outro, de amorosidade… Mas é diferente de falar que o homem é bom ou mau por natureza”; eu falho miseravelmente em detectar aonde reside essa diferença, em que seria diferente dizer que há um cerne biológico em cada pessoa que inspira e movimenta em direção ao “cuidar do outro” e dizer que as pessoas são boas por natureza – ter o desejo de cuidar do amor, ter uma “amorosidade natural” não seria, justamente, algo bom? E dizer que isso está em um “cerne biológico” das pessoas não é justamente dizer que elas são naturalmente boas, mesmo que hajam várias camadas de coisas não-boas por cima desse núcleo? Eu percebo e mesmo sinto o apelo que uma visão assim tem, um flerte com a noção rousseauniana de que “o homem nasce bom, a sociedade que o corrompe”, mas não consigo encontrar motivos para acreditar nisso; o que certamente não significa defender a opção oposta, de Hobbes, de que “o homem é o lobo do homem”, de que a alma humana seria essencialmente má e que a sociedade seria justamente criada por e para frear esses instintos. Não tem que ver, também, com uma ideia de que somos uma tábula rasa, que nascemos como um quadro em branco no qual coisas são escritas conforme no desenvolvemos e aprendemos valores com a sociedade em que vivemos. O máximo que eu poderia me autorizar a fazer, e isso já me dando muito crédito e liberdade especulativa, é dizer que se somos alguma coisa, é criaturas curiosas; de resto, certamente acho que já trazemos propensões que tem relação com a nossa constituição genética, da mesma forma que penso que estruturas sociais podem potencializar ou limitar desejos, vocações e habilidades; acho que podemos ser muitíssimo cruéis por ignorância, curiosidade ou preguiça, da mesma forma que podemos vencer os maiores obstáculos apenas para tornar o dia de alguém melhor, deixar uma mensagem positiva no mundo ou garantir que alguém possa algo que nós não pudemos. Se há algo efetivamente humano, penso eu, sem dúvida é a variedade de possibilidades constitutivas – e, por mais que isso incomode muitas pessoas, isso não é, nunca foi e provavelmente nunca será uma exclusividade nossa.

Mais adiante na aula ele trouxe uma consideração que achei muito interessante, e por isso reproduzo aqui: “Tem no finalzinho dessa seção aí de Nietzsche duas críticas de um forte intelectual de algumas década atrás chamado Paul Robinson, que ele fez… assim, ele é super elogioso de Reich, inclusive dizendo que o Reich é um ótimo inventor de linhas políticas, foi um ótimo inventor, um ótimo produtor de linhas políticas, mas ele tem duas críticas sérias ao Reich, que eu resolvi trazer pra cá como uma forma da gente pensar também, quando o Reich propõe a Democracia do Trabalho. Porque o Reich também passa por algumas fases na proposta de Democracia do Trabalho, né; inicialmente o Reich diz, ele descreve ali, muito sucintamente, mas ele descreve a Democracia do Trabalho como uma sociedade governada pelos trabalhadores, e ele diz, o que é o particular do Reich, como a gente estava falando na outra aula, que essa autogestão social viria como decorrência da autoregulação individual, ou seja, os indivíduos autoregulados eles teriam mais condição de se autogerirem social, autogestionarem socialmente – essa é a proposta dele inicial de Democracia do Trabalho. Aí já existe uma crítica do Paul Robinson, mesmo nesse começozinho da proposta de Democracia do Trabalho do Reich; ele diz assim: “me parece que o Reich está desprezando as forças sociais, históricas, políticas, e achando ingenuamente que as pessoas autoreguladas já vão produzir autogestão social; isso não funciona assim”, essa é a crítica do Paul Robinson ao Reich, que eu achei legal trazer porque eu acho que é importante a gente, né… eu sou um reichiano assim que, nos moldes do próprio Reich, ou do Nietzsche, de outros autores, assim, acho que tudo tem que ser colocado em xeque, entendeu, que nada está dado, pronto e acabado, não é porque eu sou reichiano que isso é inquestionável não. Não acho que nada é inquestionável, eu acho até o contrário, que quanto você mais bate num autor e mais ele resiste melhor ele fica”; a crítica se estende de acordo com a continuidade e reformulação do conceito reichiano de Democracia do Trabalho, pois aí Reich vai dizer que o fundamental é o “trabalho vitalmente necessário”, desprezando completamente as relações de classe, suas configurações e hierarquias – no livro essa questão está mais detalhada, se interessar a alguém ir mais a fundo. Mas quis trazer essa construção do Marcus Vinícius, e parar justamente aonde parei, por uma questão que toca num assunto ao qual sempre volto, que é a construção do conhecimento; primeiro que eu acho a crítica muito pertinente, realmente é muito comum para mim perceber essa tendência dentro da formação de “biologizar” as questões, de trazer sempre para o campo do individual, e por isso me interessou muito o livro que o próprio Marcus Vinícius recomendou em alguma aula passada, o “Questionamos: a psicanálise e suas instituições”, por conta do exemplo que ele trouxe ao falar do livro, sobre na época da ditadura militar aqui na América Latina os analistas insistirem que o receio de alguém com o exército teria algo que ver com um problema com a figura paterna; e, segundo, essa frase que finaliza esse trecho que transcrevi é exatamente o movimento que deve ser feito por quem deseja produzir conhecimento através do método científico, o de testar sempre as suas hipóteses (ter um “autor de estimação” é ter como hipótese de que esse autor descreve adequadamente a realidade) – o que interessa nesse movimento, para usar as palavras do Marcus Vinícius, não é tanto o “bater no autor”, mas o verificar como ele fica depois disso, a resistência desse autor aos golpes seria a pertinência de uma hipótese. É importante sempre ter em conta que nesse processo nossos vieses vão estar também no jogo; é como esperar que um árbitro flamenguista possa desempenhar bem a sua função numa final de campeonato disputada entre o Flamengo e o Vasco. Como no nosso caso não podemos nos livrar dos nossos vieses, não podemos escolher alguém sem vieses para analisar a situação, é necessário que se tenha método, pensado e estruturado para minimizar o efeito de nossos vieses sobre as nossas observações.

Encerrando as reflexões sobre Nietzsche e passando a pensar junto à obra de Michel Foucault, o Marcus Vinícius disse que “o conceito que eu acho que é mais útil do Foucault pra gente, entre vários que a gente vai ver aqui, é o de mecanismos de saber/poder”. Em seu primoroso texto “Nietzsche, a Genealogia e a História” (presente no livro “Microfísica do Poder”, uma coletânea de textos de Foucault organizada por Roberto Machado), Foucault nos diz “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar”. A partir disso, o Marcus Vinícius traz a concepção de Foucault sobre o poder, de que ele não seria algo que se localiza apenas em uma classe social ou loca, mas que o poder é difundido por toda a sociedade, e então que o importante seria compreender “os mecanismos autoritários do poder”, os dispositivos de poder; o saber, então, seria justamente uma forma de exercício do poder. Um exemplo ideal disso é o da psiquiatria, que é um campo do saber que se institui sobre a premissa de que se pode saber algo sobre a loucura; o jornalista John Ronson (de quem eu acredito que já falei em outros relatos) tem uma excelente fala no TED, batizada de “Respostas Estranhas ao Teste de Psicopatia” (disponível legendado em https://www.youtube.com/watch?v=xYemnKEKx0c), aonde ele conta o exemplo de Tony: um rapaz que foi preso por se envolver em uma briga, e para fugir à prisão se finge de louco, buscando com isso ser enviado a um hospital psiquiátrico; quando percebe que essa instituição não era boa como havia imaginado, diz aos médicos que fingiu tudo e pede para ser liberado – o que os médicos fazem, então, é mantê-lo preso pois, segundo eles, ter mentido sobre ser louco é justamente a prova de que ele é louco. Esse meu resumo certamente não dá conta do vídeo, recomendo muito mesmo que assistam.

Trazendo essa reflexão para o campo reichiano, o Marcus Vinícius diz “Na vegetoterapia tem essa busca por uma espécie de naturalidade corpórea (…) muitas vezes esse trabalho, se a gente não tiver cuidado, ele pode fazer com que a gente deixe de perceber exatamente essas outras forças, né, esses mecanismos de poder, de saber, que atravessam o nosso paciente ou o nosso grupo de trabalho, seja lá o que for. Então, assim, é preciso que a gente olhe para que a gente não reduza… eu já vi muito reichiano reduzindo, principalmente quem adota mais a postura de vegetoterapia, segunda fase do Reich, reduzindo o conhecimento reichiano a mera questão corporal, de descarga energética etc. Não! Não é isso, o Reich o tempo todo ele amplia o conhecimento dele, ele não nega… Se a vegetoterapia não nega a análise do caráter e se o caráter vem a partir da sociedade, do modo como ela é produzida, então não pode tirar a sociedade, as forças sociais e históricas não podem ser separadas da nossa análise do nosso paciente ou do nosso grupo terapêutico”; essa frase faz completo sentido com a minha percepção também, por isso fiz questão de trazê-la aqui. E o que é mais curioso na minha opinião, é que muitas vezes nisso é embutido um fetiche da crítica, ou seja, pensa-se estar fazendo algo crítico, aprofundando, refletindo sobre algo, mas na verdade só está continuando a se propagar limitações; vejo isso quando as pessoas dizem coisas como “mas eu não vejo só o corpo mecânico da medicina, do racionalismo, eu vejo o corpo como uma unidade!” ou, pior ainda, “não estou reduzindo pois ao contrário disso, adiciono a compreensão energética ao corpo”. Outra diferença clara entre Reich e Foucault que o Marcus Vinícius traz é na questão da sexualidade; para o primeiro a relação entre sexualidade e sociedade é sempre de repressão, enquanto que o segundo pensa justamente nas produções de sexualidade que as sociedades operam.

Entrando na parte do capítulo aonde fala sobre Deleuze, o Marcus Vinícius vai iniciar falando sobre o conceito de desejo para esse autor: “O desejo não é desejo de morte, pra começar; Guattari e Deleuze vão junto com Reich no questionamento da ideia de pulsão de morte freudiana, já pra começar – eles vão ladeados, lado a lado com Reich, eles questionam essa ideia de pulsão primária de morte. Se há um desejo, diz o Guattari em um de seus textos, só pode ser o desejo de viver, e não o desejo de morrer, ou de matar, mas o desejo de viver; esse texto é do Guattari do livro ‘Revolução Molecular’, um clássico aí dos anos 80 que tem uma sobrevida enorme e que é bem interessante. Então eu acho que a primeira questão é entender que Reich e Deleuze eles buscam, através dessa coisa do desejo de vida, de criação, buscam a força e potência do corpo. Qual é a força, qual é a potência de um corpo que está em princípio despotencializado? Como aumentar a potência de um corpo? Como aumentar a potência de vida de alguém? Como aumentar as conexões potentes das pessoas? A energia em Reich é o desejo em Deleuze, é muito claro isso pra mim – aumentar a potência, é que não tem desejo sem energia, na verdade”. Eu penso que o caminho para fazer qualquer aproximação entre Reich e Deleuze realmente tem que passar pelo conceito de desejo, talvez mesmo deva iniciar por aí, mas não penso que nessa apresentação o Marcus Vinícius deu conta de fazê-lo, mesmo tendo em consideração que foi apenas uma apresentação, no final de uma aula extensa, que busca apenas ser um resumo dessa aproximação; no meu entender, a potência do conceito de desejo apresentado por Deleuze reside justamente em que ele se opõe à ideia de falta, o desejo como produção, o pensar um inconsciente que não está acabado aos 5 ou 50 anos, é sempre produtivo. Uma recomendação muito boa para qualquer pessoa que queira ter algum contato com Deleuze é a seu Abcedário, algo que, bem deleuzianamente, foge a qualquer definição muito precisa (é um programa de televisão? É uma entrevista? É um documentário?), mas que pode ser facilmente encontrado em vídeo hoje na internet, e onde basicamente ele apresenta um conceito para cada letra do alfabeto, e o D é justamente de Desejo (Désir), um dos maiores trechos do abecedário, com cerca de meia hora.

Continuando a sua apresentação certamente o Marcus Vinícius vai entrar nessa ideia de fluxo para Deleuze, mas aplica isso mais a uma crítica à naturalização das formas de existir do que faz o diálogo com a concepção de um inconsciente produtivo, de um desejo não como falta mas como criação. Respondendo a uma pergunta sobre essa postura que se encontra no meio reichiano de se conceber o trabalho clínico como devendo culminar em um orgasmo que corresponderia à “curva orgástica ideal”; a resposta do Marcus Vinícius foi que ele considera isso um equívoco, que o objetivo que ele tem em sua clínica é que a pessoa possa desfrutar a melhor experiência que lhe seja possível dentro da sua constituição, dentro das suas possibilidades – “a norma é não ter norma”, disse ele.

Continuando nesse caminho ele chega no conceito de “corpo sem órgãos”, que Deleuze e Guattari apresentam no livro O Anti-Édipo; pessoalmente, acho esse conceito muito interessante, não porque descreva essa ou aquela realidade, mas porque nos convida ao pensamento, e faz um convite consequente, porque não só convida como oferece as condições de efetivação para aquilo a que se convida. Primeiro pela própria história da construção desse conceito, que em seu livro “Lógica do Sentido” Deleuze vai buscar na transmissão radiofônica de Antonin Artaud (dramaturgo e diretor de teatro, criador da ideia de “teatro da crueldade”) chamada “Para Acabar Com o Julgamento de Deus”, de 1947: “Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força, mas não existe coisa mais inútil que um órgão. Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade”. Segundo que, partindo disso, justamente se pode evocar a ideia que, me parece, é a desenvolvida por Deleuze e Guattari, de que o corpo sem órgãos é uma potencialidade de sair da repetição, de possibilitar experimentações, de, justamente, ser criativo; porque, se vamos com Artaud, percebemos que o órgão é justamente aquilo que busca a repetição, seu ideal é justamente ser sempre o mesmo, funcionar em condições ótimas todo o tempo, ter um ritmo sempre igual se as condições são as mesmas (o defeito do coração é a arritmia): construir um corpo sem órgãos é se livrar dos automatismos dos órgãos. Como escrevem Deleuze e Guattari no primeiro capítulo d’O Anti-Édipo, “As máquinas desejantes fazem de nós um organismo; mas, no seio dessa produção, em sua própria produção, o corpo sofre por estar assim organizado, por não ter outra organização ou organização nenhuma”; o problema do organismo, então, de ser ou de ter um organismo, é que ele é uma configuração cristalizada, única possível, e assim faz sofrer o corpo por não poder se organizar de outra forma, ou mesmo de não poder prescindir de qualquer organização.

Seguindo a aula o Marcus Vinícius traz uma fala sobre a questão do inconsciente: “Então o inconsciente, por exemplo, não é uma coisa que está lá assim desvelada, como Freud queria, né, você vai lá, tira o véu aí vê ‘ah, isso aqui é o que estava no inconsciente’ – não, o inconsciente é inconsciente produtivo. Como Deleuze e Guattari dizem, o inconsciente é vulcão em lava, é lava de vulcão, é a lava sendo esculpida o tempo todo pela própria lava. São coisas que saem ali, né… então, essa coisa, paradinha. Complexo de Édipo lá, ‘perere perere’, e está lá tudo bonitinho dentro do inconsciente, porque saiu da consciência porque era impossível aquilo ficar na consciência então foi pro inconsciente, e o inconsciente é uma coisa ali, em si – não, pelo menos pro Deleuze não é. Inconsciente é o inconsciente produtivo, é algo a ser, que pode produzir sempre o novo, o diferente”. Respondendo a uma colocação de uma pessoa que dizia não ver como unir a noção de corpo sem órgãos à teoria reichiana (colocação que eu acho que faz completo sentido, vale dizer), o Marcus Vinícius trouxe o seguinte:por que que eu faço isso então, isso que eu acho que é interessante de conversar com vocês e trocar aqui com vocês. Porque na verdade eu tomo Deleuze, como eu tomo Foucault, como eu tomo outros autores, pra oxigenar e enriquecer o Reich, não para compatibilizar o incompatibilizável, entendeu? Então assim, onde é compatibilizável? É na ideia de fluxo, fluxo energético, fluxo que não para; quando você vai pra ideia de fluxo energético é ótimo, porque, na verdade, a energia só te compõe, mesmo em Reich, né, e só compõe o seu sistema até o momento em que ela não se dissipa completamente para fora do chamado ‘energia’… ‘oceano de energia orgônica’ que a gente tem. Porque no fundo a gente é fluxo, é aí que eu pego um pouco, entendeu? Eu acho que ele oxigena, eu acho que ele dá um… né? Mas não é, assim.. eu não quero substituir o Reich pelo Deleuze, então você tem razão, assim… não tem como eu destituir uma certa composição corporal, porque aí eu vou deixar de ser reichiano, né, aí eu vou passar a ser deleuziano, fazer um outro tipo de análise, que não é reichiana. Mas eu acho que a leitura desses autores, não só do Deleuze, eles podem fazer com que a minha clínica se enriqueça – essa que eu acho que é a questão. E não caia num reducionismo, seja ele biológico, psicológico.. porque a gente é um complexo de forças, isso que é interessante. E por mais que o Reich fale disso, como o Reich fala de uma totalização, né, como ele fala de… faz uma totalização, ele fala de um certo fechamento, ele fala de um certo contorno, e isso é legal, também, da gente ver. É claro que a gente tem um certo contorno, eu tô vendo cada um de vocês com um certo contorno, senão eu não conseguiria identificar quem é quem, né, contorno, contorno de ombro, de rosto… claro, evidentemente, então isso não se discute, é isso. Mas onde é interessante dizer, se a gente entender que esse contorno é só aparente, a gente dá uma possibilidade de mudança muito maior, porque a gente entende que isso aqui é meio irreal, é isso que o Nietzsche dizia, a aparência é ilusória, e o Bergson também dizia, o que vale no aparentemente imóvel e o que move lá no fundo”. O que me fez pensar que é importante trazer essa fala aqui é marcar duas questões: primeiro, essa imagem que o Marcus Vinícius traz de “oxigenar” a teoria reichiana, e qualquer outra, que eu penso ser muito importante (e que inclusive é “marca registrada” dele – ao ouvir alguém falar em “oxigenar a teoria” dentro desse campo da Psicologia ou das psicoterapias eu já sei que a pessoa foi aluna dele em algum momento); outra, no entanto, é ressaltar como há um certo engessamento e “filiação” da qual não se consegue deixar fluir por mais que se fale em fluxo: afinal, ele fala com todas as letras que “não tem como eu destituir uma certa composição corporal, porque aí eu vou deixar de ser reichiano” – ou seja, não se rejeita uma proposição por ela estar mais ou menos adequada com a realidade, mas se rejeita ela porque aceitá-la significaria “deixar de ser reichiano”. Eu acho que essa percepção é muito importante de se ter, ela faz toda a diferença para pensarmos em como nos construímos dentro desse campo. E aqui, como em muitos outros momentos na confecção desses relatos (eu gostaria de dizer “em todos os outros momentos”, mas o benefício da dúvida deve sempre estar presente para evitar o risco dos autoelogios enganadores), é importante notar que eu não estou advogando pela correção ou não do conceito discutido, não estou dizendo que o conceito de Corpo sem Órgãos deveria ser aceito ou não em detrimento de uma concepção reichiana ou não, efetivamente não se trata disso; a questão, aqui, é deixar evidente as resistências que existem ao processo de mudança – o motivo que foi expresso é que mudar faria deixar de ser reichiano, e ao ouvir isso penso que a nossa reação imediata deveria ser “e…?”. E aqui eu, mais uma vez, me deparo com um ponto que tenho dificuldades de desenvolver pois considero autoevidente (se fosse possível acrescentar um “demais”, eu acrescentaria): deixar de ser reichiano, assim como não ser deleuziano ou qualquer outro -ano ou -ista, não deveria ser motivo a nos movimentar em nenhum sentido; o que deveria nos mover é estar mais ou menos adequados à realidade. É evidente que (se alguém) pouquíssimas pessoas diriam que são algum -ista ou algum -ano por qualquer motivo diferente de perceber que isso se adéqua à realidade; ou seja, dizer “rejeito isso porque se aceitá-lo eu deixaria de ser x-ano” é o mesmo que dizer “me mantenho x-ano porque isso é o que melhor me adequa à realidade que percebo”. Frente a isso, eu mais uma vez seria obrigado a dizer que, ao trabalhar com a análise do discurso eu tenho pouquíssimo interesse no que a pessoa quis dizer, pois não tenho como trabalhar com intenções, eu apenas tenho como trabalhar com a materialidade do que foi efetivamente dito; e, novamente, o que foi dito foi “não tem como eu destituir uma certa composição corporal, porque aí eu vou deixar de ser reichiano, né, aí eu vou passar a ser deleuziano”. Outra ressalva importante de ser feita, mas que não teria espaço nem competência para desenvolver aqui, é que não me parece que o conceito de Corpo sem Órgãos foi adequadamente explorado ou compreendido; eu penso que ele realmente se choca com a teoria reichiana, mas não por conta de uma questão imediata de corpo X não-corpo (até onde eu compreendo e a lógica me permite ir, Deleuze e Guattari não estão propondo um corpo efetivamente sem órgãos), mas sim se relaciona como uma questão de ordem hierárquica estrutural X liberdade de agência rizomática.