14 de novembro de 2020 – quarta aula de Seminários Clínicos

O Henrique iniciou a aula falando que falaria sobre “as questões da sexualidade feminina”, e que dividiria a mesma em duas partes: “o lugar da mulher nesse mundo que a gente viveu e como isso de alguma maneira fez com que ela aparecesse como uma questão importante para ser entendida pela Psicanálise freudiana e também dentro de um ponto de vista reichiano”. Marcou também que apresentaria as visões de acordo com o paradigma freudiano, então que não adiantava que fossem levantadas divergências, pois ele apresentaria a visão de Freud sobre a questão e como ela foi absorvida por Reich. Disse que relendo Reich para a preparação dessa aula achou incrível como este não possui quase nenhuma discussão sobre a questão da sexualidade feminina. Depois leu para nós o que disse ser um trecho de um poema escrito por Reich em 1938: “Não queremos proibir ninguém de viver sexualmente com um parceiro por toda a vida, mas não queremos forçar ninguém. A família deve ser uma continuidade alegre e não uma compulsão. A moralidade do dever produz exatamente o oposto do que pretende, a imoralidade. A mulher saudável não abraça um uniforme, mas um homem adorável. O homem não rouba o amor; ele o encontro, acorda e o encontra em outro lugar. Os amantes querem ficar sozinhos cada um no seu quarto”. Com esse poema fica evidente, se não por todo o resto, que Reich marca posições distintas para o homem e a mulher.

Disso partiu para uma digressão histórica, focando no cristianismo e a concepção deste do feminino ao longo da história. Ao falar do período medieval, citou o direito do suserano jus primae noctis – ao ser celebrado um casamento em suas terras, caso desejasse o senhor feudal poderia ter relações sexuais na primeira noite da noiva, desvirginando-a. Certamente a existência desse direito é reflexo da mentalidade da época, da presença opressiva do patriarcado e da subsequente desvalorização da mulher como pessoa e a sua colocação na categoria de posse. No entanto, apesar de efetivamente haverem registros da existência do jus primae noctis, não há nenhum tipo de registro de que esse direito tenha sido efetivamente reivindicado por um suserano (http://www.todayifoundout.com/index.php/2014/09/jus-primae-noctis-fact-fiction/). Essa tradição de objetificação e relegação a cidadão de segunda categoria (se tanto) chega à idade moderna, entre outros fatos, com a invenção da histeria e o enclausuramento de mulheres em hospícios sob a alegação de que estão loucas; lá, eram submetidas aos mais cruéis “tratamentos”, como banhos frios, estupros e espancamentos. O tratamento proposto por Freud, através da fala, tira a mulher dita histérica desse lugar, a coloca como um indivíduo e busca entender como a sua história pessoal se relaciona com a sua enfermidade; mesmo com as críticas que eu faço ao pensamento freudiano, é importante a compreensão desse avanço que a sua técnica opera na sociedade em que ele estava inserido. Embora o Henrique tenha falado que Freud chegou a perceber a possibilidade da histeria em homens (“você não tinha histéricos masculinos. A histeria masculina é uma coisa bem a posteriori; os primeiros casos começam onde já Freud já tratava da histeria e começa a perceber que existem alguns homens que tem um comportamento semelhante, a nível da sua construção caracterial, com as mulheres”), até onde sei ele só escreveu sobre a histeria em mulheres, ela seria uma neurose específica das mulheres. Como dizem Elisabeth Roudinesco e Michel Plon no verbete “histeria” de seu “Dicionário de Psicanálise”: “Certos termos (histeria, inconsciente, sexualidade, sonho) acham-se tão ligados à gênese da doutrina psicanalítica que se tornaram “termos freudianos”. E, se os Estudos sobre a histeria, publicados em 1895, são vistos como o livro inaugural da psicanálise, a histeria permanece como a doença princeps e proteiforme que possibilitou não apenas a existência de uma clínica freudiana, mas também o nascimento de um novo olhar sobre a feminilidade”.

Continuando com o resgate histórico, falou do papel da mulher durante a Primeira Guerra Mundial; nos países envolvidos diretamente no conflito, com os homens indo para a guerra, as mulheres assumiram postos de trabalho até então exclusivamente masculinos, trabalhos em fábricas de munição, desempenharam funções de suporte em campo (como enfermeiras ou cozinheiras) e, na Rússia, mulheres chegaram a efetivamente combater. Isso não teve implicações apenas econômicas, mas todo o tecido social passa por modificações nesse período, e esse fato das mulheres saírem do enclausuramento doméstico impulsiona e acelera transformações nas questões de gênero na sociedade, como vestimenta, espaços e funções. Ao encerrarem os esforços de guerra, os homens voltam para ocupar seus postos de trabalho, imaginando que as mulheres voltariam pacificamente a desempenhar o seu papel de donas de casa e esposas recolhidas; mas a experiência que essas mulheres tiveram promoveu transformações em suas possibilidades e em seus desejos, e isso se juntou a outros fatores históricos e impulsionou movimentos posteriores como, por exemplo, o das sufragistas, que reivindicavam o direto de as mulheres votarem. As relações domésticas não poderiam ser mais as mesmas, seja considerando do ponto de vista da conquista de maior liberdade por parte das mulheres (mesmo que ela fosse uma contingência temporária por conta da guerra) ou das transformações que a guerra operou nesses homens que voltaram, que agora tinham presenciando os horrores da guerra, retornando para suas casas feridos psíquica e/ou fisicamente, o que colocava as mulheres numa posição de enfermeiras perpétuas de seus maridos, ou então o próprio fato de muitos não voltarem e o impacto que teve esse número repentino de viúvas da guerra. A repressão sobre os indivíduos, segundo Reich, não se dava apenas no campo social, mas também no psicológico e sexual; sobre as mulheres, em nossa sociedade, certamente isso se acentua e ganha contornos próprios.

A partir dessas reflexões, foi tecendo relações entre o papel da mulher na sociedade, o pensamento de Freud e pincelando aqui-e-ali as contribuições de Reich, sejam concordantes ou discordantes daquele. Assim, trouxe como o estudo das mulheres histéricas é fundamental para a construção da Psicanálise de Freud, falou de como o corpo da mulher é tido como propriedade dos homens enquanto o corpo destes não é propriedade de ninguém, apresentou a questão da hipótese da homossexualidade feminina que Freud traz na análise do caso Dora, mencionou os diferentes papéis que são determinados a homens e mulheres em nossa sociedade, abordou a questão das sacerdotisas na Grécia Antiga que deliravam (relacionando isso com a questão histórica da construção da histeria). Disso veio desembocar em uma questão que é central para a Psicanálise, o papel da mãe: “a mãe, ela é, pra Freud (aliás, não é pra Freud, isso vem da sociedade), uma mulher muito poderosa né cara? Porque você quer uma coisa mais poderosa que nossa mãe, cara? Ela gera a vida, isso é nos gera, nós só estamos aqui por causa dela, diga-se de passagem. Inclusive é interessante pensar como certas sociedades o nome que determina você é o nome da mãe por último, não como aqui e em Portugal, que é o macho. Ela é perigosa – por que que ela é perigosa? Porque ela é tão poderosa que ela mexe com a gente, a gente ama a nossa mãe incondicionalmente. E isso é assustador porque a gente ama como? A gente ama a mulher que deu vida à gente ou a gente ama a mulher que nos liga à sexualidade? Porque é interessante, se a gente for pensar, teoricamente tá, por favor, nós nascemos por uma vagina, né, qualquer outro método são métodos de… melhorar a possibilidade dos seres viverem, mas nós nascemos pela vagina. Então existe uma confusão entre a vida e o lugar da sexualidade, isso eu acho que é muito difícil de desligar na fantasia masculina, esse lugar de poder da mãe. Só que esse poder da mãe não é só uma questão do masculino, é uma [inaudível] feminina. E isso Freud está pensando, né, esse enigma que ele desenvolve, que que esse mulher é, o que que ela quer, como eu posso compreender e escutar essa mulher?”. Eu não consigo mesmo compreender como alguém pode realmente levar a sério essa hipótese de que o fato de que o nascimento de uma pessoa se dar pela vagina de sua mãe crie qualquer coisa, muito menos que isso se ligue de alguma forma a uma noção de poder ou de sexualidade. Fosse esse o caso, haveria de se ter uma diferença observável e mensurável em indivíduos que nasceram através de cesarianas; essas pessoas não achariam, então, suas mães poderosas? Não desenvolveriam a sua sexualidade, ou o fariam de uma forma diferente daquelas pessoas que nasceram de parto normal? As afirmações desse campo da Psicanálise são sempre categóricas, mas os resultados nunca são determinados, sempre de um “é assim” advém um “pode ser ou pode não ser”. Percebam, não estou reivindicando que haja um resultado determinado, eu efetivamente acho que nesse campo do psíquico humano as coisas são por demais complicadas para que possamos aduzir relações de causa e efeito tão estreitas; o que estou dizendo é que se há um efeito tão categoricamente colocado no fato de uma pessoa ser parida através da vagina de sua mãe, deveria ser possível notar a diferença entre um indivíduo que não teve um parto como esse. É, novamente, aquela questão sobre produção do conhecimento que eu tanto falo por aqui: se você procurar exemplos de fatos que comprovem a sua teoria, provavelmente você irá encontrá-los, talvez até em abundância (supondo que a sua teoria não seja uma aberração e tenha sido feita de acordo com observações da realidade); mas e todos aqueles outros fatos que invalidam a sua teoria? Se todos os indivíduos amam a mãe por seu poder de gerar vida, e aquele indivíduo que não ama a mãe? Dirão alguns “ah, mas se ele não ama a mãe é justamente sinal de que há um amor que ele está rejeitando”; aí é o ponto que o Popper, acertadamente, critica na teoria psicanalítica – ela nunca pode estar errada, seja se deparando com o fato que for, nada pode convencer a uma psicanalista que todo indivíduo ama a mãe e se sente ameaçado pelo pai. Novamente, então, pergunto: como pode alguém realmente levar algo assim a sério? Não é uma pergunta retórica, eu realmente não consigo compreender como isso é possível; aprendi a aceitar que é assim pois a realidade me mostra isso, mas não compreendo como pode ser dessa forma. Continuando a desenvolver o histórico do pensamento freudiano, ele traz outra formulação sobre a qual eu fico com a mesma impressão: “a castração começa a assustar ele [Freud] porque ele começa a perceber que o menino olha para si e vê algo que existe, um fato, um pênis; ao mesmo tempo esse menino, dentro da cabeça de Freud, começa a olhar para esse pênis e falar ‘eu tenho, então isso me dá um lugar no mundo’. Ao olhar uma menina ele olha e vê ‘ela não tem, se ela não tem, coitada, cortaram o que eu tenho’, em outras palavras foi castrada, ‘e isso me dá uma diferença potencialmente importante’. E ele começa a perceber que a menina olha para o menino e vê ‘eu não tenho, então eu já nasci assim, como minha mãe deixa eu nascer assim?’ e aí vem a grande questão do lugar da mãe nas relações – isso é só o início do pensamento dele” – se isso não é material da mais pura fantasia, eu tenho dificuldades de reconhecer o que é.

Endereçando uma fala de uma pessoa que falou sobre as dificuldades que Freud enfrentou durante sua época, o Henrique falou o seguinte: “o que Freu fez que eu acho genial, ele conseguiu sistematizar uma série de conceitos (que não eram dele, inclusive), articular todos eles e forjar uma ideia de uma nova ciência, né, mas essa nova ciência ela só nasceu no momento em que ele saiu da biologização, né, da questão da primeira tópica e entra na segunda tópica com Ego e Id, aí ele funda a Psicanálise de fato, quando ele transforma o corpo em representação, quando ele transforma a questão da sexualidade como representação, então ele vai simbolizando cada vez mais. Ele foi caminhando na direção do esvaziamento do energético, no sentido biológico, no sentido energético mais amplo, e vai cada vez mais caminhando na direção da subjetivação, do subjetivo; isso é fantástico, só que o que ele propôs antes ele se afasta do que ele propôs antes. Reich não, Reich pega o que ele propôs antes e continua a desenvolver radicalizando. Jung, em momento algum, ele se propôs a manter a Psicanálise como uma questão fundante na vida dele, porque a questão dele com a libido era outra, e aí depois é que ele começou a colocar a questão da espiritualidade, uma série de coisas – mas a libido, ele tinha a perda da corporalidade, mais ainda do que Freud quando simbolizou a libido”. Achei interessante trazer esse trecho aqui porque quando fala de Reich o Henrique traz a mesma compreensão que Antonio Imbasciati em seu livro “Afeto e Representação”, só que crítica neste e elogiosa naquele: “Paradoxalmente, o único autor que acreditou inteiramente na pulsão, entendida no sentido freudiano, foi Wilhelm Reich, com os resultados que já conhecemos; todavia ele estava certo ao procurar o orgônio porque só a descoberta de uma energia física teria efetivamente confirmado a hipótese de Freud. Nos últimos anos de sua vida, o grande mestre foi sabiamente mais cauteloso em relação à questão, deixando, porém, em situação embaraçosa os seus seguidores, colocados diante do dilema de recusar a teoria do mestre ou, ao contrário, confirmá-la, correndo o risco de ter o triste fim de Reich. Ou então ir à deriva em várias distinções, como fez a maioria por muitos lustros”. O Henrique citou ainda duas obras que vão trabalhar essa questão da linha entre Freud e Reich de duas perspectivas distintas: o livro “Freud e Reich: continuidade ou ruptura?” de Cláudio Mello Wagner, e um artigo de Ricardo Rego “que trabalha Freud e Reich como ruptura”.

Um pouco mais à frente na aula surgiu uma ideia que eu gostaria de trazer aqui, como ilustração de algo que eu já coloquei outras vezes; diz o Henrique: “quando o Reich fa… quando o Freud fala que o primeiro momento que o bebê puxa a teta da mãe para poder sugar ali, né, e aí poder ter satisfação e entra numa alucinação da satisfação, né, o que que acontece? Ali eu posso chamar aquilo do primeiro orgasmo, né, da criança, ela tem uma necessidade e encontra uma forma de seu próprio organismo ir em busca do alimento, faz o primeiro movimento completamente voluntário que é o sugar, que ninguém ensina isso pra ela, ela suga, se ela recebe o leite e recebe o afeto ela se satisfaz com a alimentação e alucina, isso é, alucina, ela apaga, vai pra outro mundo, ela faz uma pequena morte, vamos brincar assim”. Aqui, para mim, estão presentes dois problemas que são, infelizmente, comuns nessa formação: a imprecisão conceitual e o crédito a uma teoria no mínimo questionável sem o devido fundamento. Primeiro, dizer que pode chamar de “primeiro orgasmo” a satisfação que a criança encontra após a sua primeira satisfação alimentar é tornar completamente impreciso, então, o conceito de orgasmo; conceitos são tão bons quanto servirem para identificar as coisas na realidade. Eu (acredito que) compreendo o que ele está trazendo com essa frase, tem que ver com a ideia de que Reich, em suas últimas obras, define o orgasmo como a capacidade de entrega àquilo que se está fazendo; se vamos tomar isso como o conceito (e se hão bons motivos ou não para fazê-lo é outra discussão, que vou ignorar aqui pelo bem da concisão e foco), percebemos que ele não ajuda a entender as diversas coisas então às quais se pode estar entregue ao fazer. Daí, precisaremos falar em “orgasmo sexual”, “orgasmo alimentar”, “orgasmo laborativo” etc. Porque, percebam, embora as três sejam “lutas” ou “arte-marciais”, saber disso pouco ou nada te auxilia a entender as especificidades e diferenças entre o Judô, o Muay-Thai e o Jeet-Kune-Do. A mim parece que utilizar o termo “orgasmo”, sobre o qual até então seria razoável dizer que se atinha ao cunho sexual, para descrever outras coisas, tem que ver com uma ideia anterior de que tudo se relaciona com o sexo, de que existe uma energia que movimenta a psique e que é a mesma suposta energia sexual (a libido). Assim, nessa acepção ampla e imprecisa de orgasmo, poderiam entrar o bebê ineditamente satisfeito, a pessoa que alcança o clímax sexual e um indivíduo completamente compenetrado em um raciocínio – não precisa de mais para demonstrar o quanto esse conceito é pouco útil, não? Mas, vale trazer, no discurso dentro da formação (eu diria, se pudesse, que é assim também no meio reichiano em geral) se converte rapidamente dessa ideia de orgasmo mais ampla para uma bem específica e mais comum de lidarmos. E quando fala em uma “alucinação da satisfação”, em que se baseia para dizer isso? Lembro de uma vez conversar com outra pessoa da formação sobre esse ponto, trazido em uma aula de Análise do Caráter I, de como me parecia completamente descabido, pois se conjecturava ele a partir não tanto de observações mas de teorizações, e não me foram apresentadas qualquer medição ou outros mecanismos que pudessem apontar para essa possível alucinação. Ou seja, não é que se possa afirmar que isso não é possível de acontecer, apenas que se deveria ter mais cuidado, muito mais, ao afirmar que algo ocorre quando você não tem mais do que “isso acontecer é conveniente para a minha teoria” a oferecer.

Fazendo uma explicação de conceitos e ideias em torno da postulação do Complexo de Édipo, da sua importância para a obra de Reich, de como este não abandona a ideia do Complexo, o Henrique trouxe a seguinte ideia: “Por isso em alguns momentos pro menino é mais fácil passar pelo Complexo de Édipo do que pra menina, porque ela perde, né, o lugar dela de identidade, o menino não perde o lugar de identidade, ele não tem identidade com a mãe, ele tem o amor da mãe, ele pode encontrar esse.. outra mulher, outra identidade, e conseguir esse amor. A mulher quando perde, a priori, esse lugar da identidade com a mãe ela não está perdendo só amor, ela está perdendo uma identidade básica de mulher, e buscar fora, ela vai buscar fora aonde, com outra mulher? Ela vai ter que fazer uma reordenação interna pra ter uma relação heterossexual. Então, assim, na realidade é muito mais difícil pra mulher buscar uma relação heterossexual do que pro homem buscar uma relação heterossexual, porque ele não muda, a priori, né, de objeto; ela muda tudo, ela muda tudo”. Ele trouxe mais alguns elementos, até que uma pessoa fez a seguinte pergunta: “Então, você não acha que, eu pelo menos quando eu escuto sobre a castração, tudo vai por terra assim do que que eu acredito no sentido de… é claro que a gente fala de função materna e de função paterna, né… (interrupção) uma criança, uma menina que é criada por dois homens né, aí ela não vai ter mais essa diferenciação do objeto amado, assim, aí ela sofreria menos, né?”. A resposta do Henrique foi “Não, porque alguém ali em algum momento simbolicamente – aí eu acho que Lacan ajuda bastante a gente, tá – ele vai ocupar esse lugar do feminino, entendeu? Um deles vai ficar mais intensamente, tanto homem quanto um casal de mulheres, um vai ocupar o lugar da função. Mas Reich não tá a cabo disso, você tem contextualizar Reich naquela época como uma coisa que não era assim, né? Se a gente estiver falando de Reich, isso não era assim; se a gente for falar hoje, como nós reichianos podemos trabalhar com esse ideia, e trazemos a ideia de função, que você está colocando, aí sim a gente pode conversar”. Seguiu-se mais alguma coisa, algum vai-e-vem, e o Henrique trouxe no meio disso a seguinte ideia que eu acho fundamental para o ponto que quero trazer: “se eu sou pai e meu irmão e o tio e a gente cuida do mesmo menino, ele pode até gostar mais do tio, mas eu continuo sendo pai. Agora imagino quem não tem pai nem filho, meu irmão vai cuidar dele, né, vai chegar um momento que meu irmão, por mais que fale que ame ele como um filho, ele é tio… ele é sobrinho, não é filho, mas ele pode considerar pai e ele pode considerar filho, mas é consideração, não é um fato” [grifo meu]. Nesse momento eu, que já tinha ativado o recurso “levantar a mão” da ferramenta (https://meet.jit.si), falei e expus o quanto essa pergunta que a pessoa fez era importante para a gente se debruçar sobre a teoria e não ficar fazendo remendos nela; pois, é fundamental perceber que quando Freud elabora a teoria ele não está falando em “função/papel de pai e função/papel de mãe”, ele está falando de pai e mãe (qualquer dúvida a respeito disso, ver, entre muitos outros, os seus artigos “A Dissolução do Complexo de Édipo” [1923] e “Sexualidade Feminina” [1931]). Então outros psicanalistas em algum momento perceberam que haviam problemas com essa teoria para descrever a realidade, pois se o fato da menina ter que mudar de objeto da mãe para o pai a fim de desenvolver a sua sexualidade de forma não-neurótica, como isso poderia ser pensado quando a pessoa não possui um pai? No caso de mulheres criadas em casas exclusivamente femininas, seriam todas sempre lésbicas? Aí, me parece, o que se faz é remendar a teoria, e passa-se a falar em “função de pai”, porque dessa forma sempre será possível encontrar um tio, um irmão, um vizinho, um amigo da família… e dizer que ele foi quem desempenhou essa função, que não tem relação necessária com o pai biológico. E no caso, como foi feita a pergunta em aula, de uma menina que seja criada sem uma referência feminina de mãe, então ela não passará por essa dificuldade – não haverá Complexo de Édipo ou Complexo de Castração para ela? Aí disso, ao invés de se seguir uma discussão sobre essa questão, sobre a pertinência ou não do Complexo de Édipo e do Complexo de Castração, sobre se o clitóris da mulher é um proto-pênis ou deve ser pensado por si, entrou-se, a partir da fala de outra pessoa, naquele lugar-comum de “sujeito histórico”, “isso não existia na época dele” e todo esse papo que, embora utilize conceitos adequados, se presta a uma preservação dos conceitos sem um escrutínio e posicionamento crítico – afinal, não estávamos em uma aula de história do pensamento freudiano ou algo que o valha (e, mesmo que estivéssemos, para que poderia servir a História se não para se avaliar o presente?).

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