10 de outubro de 2020 – terceira aula de Orgonomia

  Como a aula anterior se estendeu até depois das 13h, essa que iniciaria às 13:30 acabou atrasando um pouco, pois as pessoas demoraram a entrar na sala de videoconferência; aproveitando o hiato, perguntei ao Nicolau duas coisas sobre a teoria reichiana dos acumuladores orgônicos (muitas vezes referidos também como “caixas orgônicas”): dado que os primeiros experimentos de Reich nesse sentido foram com uma Gaiola de Faraday, se fazia algum sentido a ideia de que quanto mais camadas intercaladas de metal e material orgânico um acumulador tivesse mais potente seu efeito seria; e se dada a lógica apresentada por Reich entre material orgânico e metal se unidirecional (o orgânico acumula, o metal transmite – por isso os acumuladores devem ser de material orgânico por fora e de metal por dentro, mesmo que tenham múltiplas camadas, para que a energia flua de fora do acumulador para dentro), se fosse construído um acumulador “invertido”, com o interior de material orgânico e o exterior de metal, se o efeito também seria o inverso, de “desenergizar” aquilo/quem estivesse dentro.

   Sobre as camadas, ele disse que simplesmente sim, a ideia de que mais camadas produzem um acumulador mais potente é verdadeira, as camadas funcionando como um amplificador do efeito. Em relação à minha hipótese de um “acumulador invertido”, ele disse que imagina que ela faça sentido, e que embora não tenha dados experimentais robustos para sustentar essa ideia, um ex aluno dele já construiu uma caixa dessa forma, e a única coisa que ele relatou foi a detecção, com um multímetro, da existência de corrente elétrica na superfície externa da caixa. Ficam aí mais referências para pensar nessa questão toda dos acumuladores e da hipótese da existência de uma “energia livre de massa” que Reich postula. Como já disse em outros relatos, mas acredito ser importante reforçar, penso que quem quer estudar orgonomia deveria se ater inicialmente, antes de qualquer outra coisa, aos estudos e experimentos com os acumuladores, e a partir disso ir verificando se é possível construir conhecimento em cima dessa hipótese; isso porque esses acumuladores permitem a verificação desse postulado fundamental para o orgonomia, a existência da energia orgone (que possui características distintas de outros tipos de energia que a física conhece e que trabalha), e não necessita de equipamentos muito avançados, conhecimentos muito especializados nem um tempo muito dilatado – certamente exige algum ferramental (a construção dos acumuladores em si, o dispêndio de algum dinheiro, além da necessidade de equipamentos de medição, como termômetros, voltímetros e outros), algum conhecimento (marcenaria ou algo que o valha para a construção dos acumuladores, de operação das ferramentas de medição, de epistemologia para o desenho de testes, e penso que seria ideal para algo assim conhecimentos de eletrônica e programação, para produzir registros amplos em vídeo de todo o processo, principalmente dos experimentos, disponibilizando assim não apenas relatórios para apreciação, mas o processo completo que levou aos resultados apresentados) e algum tempo, mas não penso que seja algo exigente o suficiente para impedir pessoas interessadas de fazê-lo. Alguém que se interesse por virologia, por exemplo, provavelmente terá muitas dificuldades de fazer seus estudos, ainda mais se estes envolverem experimentos, fora de uma instituição; mas alguém que queira construir alguns acumuladores e fazer alguns testes vai precisar mais de tempo e dinheiro, imagino, do que de conhecimentos e ferramentas especializadas.

  Depois, conforme foram entrando mais pessoas na sala, ele retomou o ponto de que o entendimento da orgonomia não é algo simples pois ela altera muito da compreensão que atualmente temos da realidade; como eu insisto, quando faço críticas, seja à orgonomia (que faço em muito menor escala justamente por não conhecer muito da proposta) ou seja às pessoas que se aproximam dela ou defendem seus postulados, não significa que eu esteja dizendo que esse fato advoga contra a possibilidade de os postulados da orgonomia estarem certos; mas nos adverte que aceitar esses postulados não é coerente com continuar levando uma vida igual, ou muito semelhante, à das pessoas que não aceitam esses postulados. Por exemplo, pessoas que aceitam o postulado de que uma vida povoada por más ações resultam em sofrimento eterno após a morte não podem viver da mesma forma que pessoas que negam esse postulado; isso não significa que essa pessoa vá evitar ações más, pode ser que ela deseje sofrer eternamente após a morte ou acredite que esse é um preço justo a se pagar para aproveitar uma vida sem preocupações – mas uma crença que altera tão fundamentalmente a nossa concepção da realidade não vai existir na vida de alguém sem afetar todo o resto. Por isso que é tão comum ver pessoas participando de religiões que pregam que menos do que uma vida ascética resultará em danação eterna vivendo de forma não muito diferente que pessoas que não participam dessas religiões – acontece que nenhum dos dois grupos efetivamente incorpora essa crença e suas consequências, por isso a semelhança na forma com que conduzem suas vidas. É exatamente esse mesmo fenômeno que nos ajuda a entender por que pessoas que participam dessas religiões e efetivamente acreditam nos dogmas e princípios dela se destacam no meio dos seus.

  Quando comecei a ouvir a gravação dessa aula, estava pensando que esse seria um relato curto, pois foi uma aula aonde vários conceitos e ideias foram repetidos das duas aulas anteriores; para o estudo eu acho isso excelente, penso que é importante buscarmos métodos que possibilitem a construção de um conhecimento sólido, mesmo que com isso se perca em extensão, mas para a construção de um relato não seria interessante ficar repetindo longamente várias ideias. No entanto, com quatro minutos de gravação (que não foram efetivamente quatro minutos de aula, pois nesse dia tive problemas com falta de energia elétrica na casa que estava e pedi a gravação de outra pessoa da formação, que não gravou esse “pré início” a que me referi acima) o Nicolau traz a seguinte frase: “A orgonomia, num certo sentido, ela é extremamente contemporânea, né, porque ela está de acordo com certas postulações da física quântica, principalmente a ideia de enredamento, enredamento – eu tô dizendo isso como ilustração, por favor não tome isso ao pé da letra, as coisas não são tão simples – mas a ideia de enredamento é de que duas partículas subatômicas que foram geradas pelo mesmo instrumento elas podem se separar no espaço (antigamente se pensava que era coisa de centímetros, hoje já se teoriza que pode ser a própria dimensão do universo) que o estado de uma quando definido, estado quer dizer se ela tem o spin vertical ou horiz… enfim, tem certas propriedades que são mensuráveis, a outra partícula necessariamente eu posso saber de antemão quais são as propriedades da sua… das suas direções da outra partícula, ou seja, haveria um tipo de comunicação instantânea, aí, enfim, na Física se briga se isso implicaria uma velocidade maior que a luz ou não… mas, enfim, haveria uma comunicação instantânea entre uma partícula e outra, ou seja, se eu acesso uma partícula e faço uma mensuração, o estado da outra muda imediatamente, ou se define imediatamente, como se fosse irmão gêmeo, vamos dizer assim. Então, o que que a orgonomia tem com isso? A orgonomia tem com isso a ideia, né, de que existe uma relação que permeia todas as coisas; mas quando eu digo ‘uma relação que permeia’ não é só no sentido, por exemplo, de uma determinada experiência onde eu poderia afetar um outro corpo ou um outro objeto à distância, mas na própria essência da natureza, ou seja, a própria existência das coisas. Na própria existência das coisas, tudo que existe e compõe a realidade, haveria uma dimensão mais profunda que contém denominador comum, que relaciona [inaudível] coisas. De um lado, esse pensamento ele parece bastante místico e esotérico ou da nova era, né, de outro ele vai contra toda a Física clássica, não a Física atual, a Mecânica Quântica, mas a Física clássica que pensava a distância das coisas, ou a relação das coisas como dando-se unicamente por contato; olha só para vocês verem como essa teorização parece distante, tá, ‘eu não sou física, nunca vou medir Física Quântica, o que me interessa isso?’, mas está presente no nosso dia a dia. Por exemplo, quando eu estou diante de quem eu já convivi algumas sessões, é possível postular que cria-se um estado que permeia as duas pessoas de tal forma que eu possa dizer que existe aí na situação clínica um só inconsciente, não dois; claro, são dois inconscientes mas que formalizam a existência de um único inconsciente, ou seja, que eu poderia ter acesso a elementos primeiros, estado emocional, dos conteúdos reativos, recalcados, da organização egóica da outra pessoa, através da relação comigo mesmo, né, aquela ‘atenção flutuante’, se vocês já viram essa descrição, o Freud dizia que, né, ouvindo o paciente seria necessário manter uma espécie de atenção flutuante para capturar os elementos do discurso que seriam passíveis de interpretação. Mas ele colocava isso como uma coisa característica da linguagem; a gente realoca essa informação, realoca essa instrumentalização numa ideia de campo, numa ideia que tem uma fisicalidade. Não é só informação através da linguagem, mas é acontecimento experiencial”. Por que eu iniciei esse parágrafo fazendo considerações sobre a extensão desse relato e qual a relação disso com essa fala do Nicolau? Pois eu entendo muito pouco, poderia dizer sem prejuízo que entendo nada, de Física Quântica; mas eu entendo um pouco, um fragmento de partícula, sobre construção do conhecimento, e isso me permite identificar alguns problemas nessa fala. E como tive a sorte de compreender um pouco de alguns vídeos e coisas que eu li sobre Entrelaçamento Quântico, percebi ainda algumas outras inconsistências. E penso que se esse relato der conta de contribuir um mínimo que seja para demonstrar os problemas disso, penso que ele terá muito mais valor do que as transcrições de todas as aulas desse curso.

  Primeiro de tudo, então, imagino que seja trazer uma definição de entrelaçamento quântico (a que, me parece, o Nicolau se referiu como “enredamento” – minha opção por “entrelaçamento quântico” não tem que ver com uma defesa de maior ou menor precisão conceitual, pode aqui ser encarada como predileção pessoal de tradução do termo, em inglês, “quantum entanglement”). Para isso, e para algumas outras coisas, vou utilizar o livro “Quantum”, de Manjit Kumar, que apresenta uma descrição razoável do “grande debate sobre a natureza da realidade” para alguém leigo como eu; vou utilizar uma versão digital para fazer as referências, então as páginas podem não bater com uma versão impressa da obra. Embora esteja consultando algumas obras em inglês, quando citar vou fazê-lo através de traduções livres que farei, sem reproduzir o texto original em inglês, apenas por questão de fluência do texto – caso haja alguma dúvida em relação a uma dessas citações, a opção de sempre de entrar em contato através dos comentários está disponível, mas também convido ao cotejamento com a obra original.

  No glossário do livro Quantum, “entrelaçamento” é definido como “fenômeno quântico no qual duas ou mais partículas permanecem inexoravelmente ligadas não importa o quão distante estejam” (KUMAR, pg 360). Embora não esteja incorreta, essa definição me parece incompleta e/ou imprecisa; a definição do site Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Quantum_entanglement) me parece mais interessante para nossos fins: “fenômeno físico que ocorre quando um par ou grupo de partículas são geradas, interagem ou compartilham proximidade espacial de uma forma tal que o estado quântico de cada partícula do par ou grupo não pode ser descrita independentemente do estado das outras, incluindo quando as partículas estão separadas por uma grande distância”. Quem cunhou esse termo foi o físico Erwin Schrödinger, que em seu artigo “A Presente Situação na Mecânica Quântica” descreve o fenômeno dessa forma: “Qualquer ‘entrelaçamento de predições’ que tome lugar pode obviamente apenas se dever ao fato que dois corpos em algum tempo pretérito formaram, em sentido verdadeiro, um só sistema, que esteve em interação, e deixou para trás traços de um no outro. Se dois corpos separados, cada um deles sobre os quais se conhece completamente, entram em uma situação na qual se influenciam mutuamente, e separam-se novamente, então temos que regularmente ocorre aquilo que eu chamei de entrelaçamento do nosso conhecimento dos dois corpos”. Existem considerações fundamentais a serem feitas sobre esse conceito, então é importante ter em mente exatamente as definições aqui fornecidas para o bem da argumentação que pretendo construir; por exemplo, nenhuma dessas definições fala em “transmissão de informação”, e isso é imprescindível de termos em mente.

  Acredito que a partir dessa definição se torna necessário entendermos o que é a Física Quântica ou, talvez mais precisamente, Mecânica Quântica: “a teoria da física da realidade atômica e subatômica que substituiu a mistura ad hoc da mecânica clássica com ideias quânticas que emergiram entre 1900 e 1925” (KUMAR, pg 363). Embora seja simplesmente isso, “o estudo da física dos átomos e partículas subatômicas”, é essencial que se perceba que não é possível fazer relações diretas entre fenômenos estudados pela mecânica quântica e pela mecânica clássica; é equivocado dizer que uma pessoa, nuvem ou enciclopédia possui as mesmas características que um próton, neutrino ou elétron – aqui a ideia de que “o todo é maior que a soma das partes” se aplica, para ficar numa ideia simples. Se quisermos uma definição um pouco mais precisa, podemos consultar outra obra: “Claro, em algum sentido último o sistema macroscópico é ele mesmo descrito pelas leis da mecânica quântica. Mas funções de onda, em primeiro lugar, descrevem partículas elementares individuais: a função de onda de um objeto macroscópico seria um composto monstruosamente complicado, construído a partir de toda a função de onda de suas 1023 partículas constituintes. Presumivelmente em algum lugar nas estatísticas de grandes números combinações lineares macroscópicas tornam-se extremamente improváveis. Na verdade, se você foi capaz de, de alguma forma, obter um pêndulo amortecido (digamos) em uma combinação linear de estados quânticos macroscopicamente distintos, ele iria, em uma pequena fração do tempo de amortecimento, reverter para um estado clássico comum. Este fenômeno é chamado de decoerência” (GRIFFITHS, David Jeffrey. Introduction to Quantum Mechanics, 2ed, Pearson, 2005, pg 431, nota de rodapé 15)

  Somente por essas simples definições já podemos perceber que a afirmação de que o fenômeno do entrelaçamento quântico permite postular qualquer tipo de “comunicação instantânea”, qualquer tipo de transmissão de informação, é falsa; o que ocorre é que, sendo partículas em estado de entrelaçamento quântico partes de um mesmo sistema, conhecer metade da informação desse sistema te permite saber a outra metade sem precisar ter contato. Um exemplo simples para ilustrar isso pode ser pensado da seguinte forma: vamos imaginar um saco de pano e que dentro dele hajam 10 bolinhas; o saco está posto em cima de uma mesa, você vai lá, coloca a mão dentro do saco e retira um número X de bolinhas, sem que eu veja, e então se afasta de mim e do saco de bolinhas – seja alguns passos, para o outro cômodo, para um outro país ou mesmo para outra galáxia. Não tendo visto quantas bolinhas você tirou do saco, eu não tenho como saber essa quantidade, apenas que ela está entre 0 e 10; mas eu posso ver (fazer uma medição de) quantas bolinhas estão no saco – e quando eu faço isso, imediatamente eu sei quantas bolinhas você pegou do saco, mesmo que nenhuma informação seja transmitida de você para mim! Se, por exemplo, eu olho e existem seis bolinhas no saco, instantaneamente sei que você pegou quatro bolinhas; não precisou existir nenhuma transferência de informação, o que aconteceu é que conhecendo metade da informação contida no sistema eu soube a informação toda do sistema. Se eu tenho um pote de onde sei que em moedas de valores variados eu tenho R$100,00, ao pegar aleatoriamente “uma mãozada” de moedas, eu não sei quanto tenho na mão nem quanto tenho no pote; mas mesmo que eu vá para o outro lado do universo e somente chegando lá eu conte quanto tenho na mão, eu imediatamente vou saber quanto tem no pote, e o mesmo se dá no sentido inverso, pois alguém que continue na Terra poderia contar quanto tem no pote e saberia quanto eu tenho em mãos. Se você diz que quer me presentear com o livro A e o livro B, mas que só pode fazê-lo um por mês, eu não tenho condições de dizer qual será o livro que você me dará no segundo mês; mas ao me dar o primeiro livro, eu já sei qual será o livro que receberei no próximo mês, mesmo sem um “eu do futuro” vir me contar isso. Se eu te digo que tenho duas tatuagens, mas somente uma é colorida, você não precisa ver as duas para saber qual é a colorida, basta que veja uma das duas tatuagens e você já saberá, mesmo que aquela que você veja seja a que não é colorida.

  Para efetivamente compreendermos o conceito de entrelaçamento quântico essas analogias que fiz acima são insuficientes, mas elas demonstram que em um sistema binário fechado do qual se conhece os valores possíveis, ter acesso à metade da informação te dá acesso a toda a informação. Para quem quiser se aprofundar um pouco mais nesse tópico, eu recomendo dois vídeos disponíveis na plataforma YouTube: um é do canal Ciência Todo Dia, em português, chamado “O Entrelaçamento Quântico Explicado” (https://www.youtube.com/watch?v=Q9J4ArjheD8), que é um excelente vídeo buscando explicar o conceito; o outro é em inglês, do canal StarTalk, chama-se “Neil deGrasse Tyson Explores Quantum Entanglement with Janna Levin(https://www.youtube.com/watch?v=C-UxlEQj13w), e é uma conversa sobre o conceito e seus possíveis usos em ciência computacional e criptografia.

  Para insistir, pois é um ponto no qual me parece que não há possibilidade de se insistir em excesso, na ideia de que não há “comunicação instantânea” ou qualquer tipo de transferência de informação, gostaria de trazer outra citação do livro Quantum: “Foi descoberto que é impossível explorar a não-localidade e o entrelaçamento quântico para comunicar informação útil instantaneamente de um lugar para outro, pois qualquer medição de uma partícula de um par entrelaçado produz um resultado completamente aleatório. Depois de realizar tal medição, um cientista/experimentador [experimenter] não aprende nada além das probabilidades de resultado de uma possível medição, conduzida em um local distante por um colega, na outra partícula emaranhada. Talvez a realidade seja não-local, permitindo influências mais-rápidas-que-a-luz entre pares emaranhados de partículas em locais separados, mas ela não apresenta caráter grave [is benign], sem nenhuma ‘comunicação fantasmagórica à distância’”(KUMAR, Quantum, pg 337). O tema da medição pode parecer algo trivial, que não diz respeito “à natureza das coisas” mas sim à forma como observamos a realidade; mas na mecânica quântica a medição é um tema fundamental, pois estamos lidando com coisas tão minúsculas e de equilíbrio tão delicado que qualquer coisa que façamos para medir uma informação de uma partícula quebra esse equilíbrio. Isso não se deve a qualquer coisa mística sobre a “consciência do observador”, como tentar propor alguns, mas ao fato de que para medir alguma coisa você tem que interferir com ela, principalmente se estamos falando do nível atômico. “[pg 428] As medições quânticas são tipicamente destrutivas, no sentido de que alteram o estado do sistema medido. É assim que o Princípio da Incerteza é aplicado em laboratório. Você pode se perguntar por que não fazemos apenas um monte de cópias idênticas (clones) do estado original, e medimos elas, deixando o próprio sistema ileso. Isso não pode ser feito. De fato, se você pudesse construir um dispositivo de clonagem (uma ‘máquina de Xerox quântica’), a mecânica quântica seria jogada pela janela (…) [pg 429] você não pode fazer uma máquina de Xerox quântica, como Wootters, Zurek e Dieks provaram em 1982 (…) [pg 430] O processo de medição desempenha um papel molesto [mischievous] na mecânica quântica: É aqui que a indeterminação, a não-localidade, o colapso da função de onda e todas as dificuldades conceituais surgem. (…) É o papel bizarro do processo de medição que dá à mecânica quântica sua extraordinária riqueza e sutileza” (GRIFFITHS, David Jeffrey. Introduction to Quantum Mechanics, 2ed, Pearson, 2005, pgs 428 a 430).

  Para fornecer mais um exemplo que, embora muito impreciso, nos ajuda a ter uma ilustração da questão e nos coloca no caminho do paradigma mental necessário para compreender algumas questões da mecânica quântica, vou modificar ligeiramente um exemplo fornecido pela astrofísica Janna Levin e imaginar o seguinte: em um prédio construído para eliminar toda e qualquer vibração (com um sistema de molas e amortecedores hidráulicos), numa sala com isolamento acústico perfeito (já que estamos em um exemplo puramente teórico, imaginemos um cubo com paredes de 1m de espessura feitas de chumbo – assim garantimos também um bom isolamento contra radiação), existe uma caixa completamente escura, dentro da qual um alfinete está equilibrado na sua ponta. Se você quisesse verificar isso, o que constituiria fazer uma medição, teria que entrar no prédio, abrir a porta da sala e abrir a caixa aonde ele está localizado, o que poderia gerar vibração suficiente para derrubá-lo; mas prevendo isso, você construiu esse prédio, a sala e a caixa todos com uma pequena janela de vidro alinhadas, permitindo que com uma câmera super potente possa tirar de longe uma foto desse alfinete; mas para tirar essa foto você precisaria de luz para iluminar esse alfinete, e mesmo um pequeno flash interferiria no equílibro do alfinete, pois o fenômeno conhecido como pressão de radiação (radiation pressure) nos mostra que a luz empurra coisas. E nem precisaria ter ninguém diretamente envolvido nessa medição, a câmera poderia ser posicionada e ligada a um computador com um código que a dispararia, junto com o “flash” (que, dadas as circunstâncias desse exemplo, provavelmente seria um laser), em um momento aleatório, esperaria outro intervalo de tempo aleatório (para evitar a ideia de que a “avaliação consciente” fosse feita simultaneamente ou muito próxima à medição) e enviaria a foto resultante por e-mail para quem estivesse fazendo o experimento; ou seja, o que derrubaria o alfinete seria o fato dele ser empurrado pela luz do flash, isso é o que chamamos “medição”, não o fato de alguém com consciência observar o fenômeno – coisa que nesse exemplo poderia só acontecer, via fotografia, meses ou anos depois do alfinete já ter sido, efetivamente, derrubado.

  Há cerca de suas semanas me deparei com um outro exemplo, que não tem nenhuma relação direta com a mecânica quântica, mas que também permite ilustrar a ideia de que conhecimento não é transmissão de informação, ou seja, que eu posso saber toda a informação possível de um sistema sem ter acesso imediato a toda a extensão do mesmo. Esse exemplo é do vídeo The Infinite Pattern That Never Repeats (“O Padrão Infinito Que Nunca se Repete”, em tradução livre – https://www.youtube.com/watch?v=48sCx-wBs34), do canal Veritasium; é um vídeo que vai explicar alguns conceitos de geometria sobre simetria e preenchimento período de um plano – se você pegar uma folha de papel infinita e preenchê-la com uma figura geométrica, ela é capaz de preencher toda a folha com um padrão repetitivo? Se, por exemplo, você pegar uma folha e preenchê-la com quadrados, você poderia fazê-lo ao infinito, pois é um padrão repetitivo, e ele teria uma simetria de quatro lados, você poderia colocar essa folha em quatro posições que resultariam em um padrão igual; usando o triângulo, seria o mesmo, mas com três posições. Existia uma questão, de se seria possível preencher um plano (a folha de papel infinita) com uma figura ou conjunto de figuras que, mesmo indo ao infinito, nunca apresentasse uma repetição de padrão; desenvolvimentos teóricos mostraram que sim, isso é possível, e o número de figuras geométricas para isso é pequeno, apenas duas figuras, “pipas e dardos” (kites and dartshttp://www.maths.ox.ac.uk/system/files/attachments/Kite_dart.png). Ou seja, utilizando apenas dessas duas figuras geométricas, você pode ir “encaixando” uma na outra e formando um padrão que preenche todo o plano, que ocupa toda a folha de papel infinita, sem que esse padrão nunca se repita. Mas o que isso tem que ver com a questão do entrelaçamento quântico? Bom, aos 15:38 do vídeo o apresentador, Derek Muller, apresenta uma característica interessante desse conjunto: por mais que essa duas figuras possam formar um padrão aperiódico (que não se repete) infinito, existem certas configurações que não vão permitir isso. Conforme ele mostra no vídeo, em um determinado padrão é possível adicionar um dardo em um ponto do padrão e continuar construindo-o ao infinito sem problemas, ou pode adicionar uma pipa em outro ponto do padrão e continuar contruindo-o ao infinito sem problemas; mas se você adicionar os dois ao mesmo tempo, o padrão não poderá ser repetido ao infinito – ou seja, apenas com a informação de que ambas as figuras foram inseridas em determinadas posições você “ganha” a informação de que esse padrão não poderá ser repetido ao infinito. Talvez esse seja um exemplo um pouco confuso para quem se depara com essas questões pela primeira vez, mas eu o achei tão bonito que foi incontornável adicioná-lo aqui.

  Até aqui, então, acredito que está entendido que a mecânica quântica, ao menos na sua descrição do fenômeno do entrelaçamento quântico, não permite qualquer tipo de postulação sobre a possibilidade de qualquer “comunicação instantânea” ou transmissão de informação mais rápida do que a velocidade da luz no vácuo. Aqui se mostra a importância do entendimento que repito em vários relatos da diferença entre conhecimento científico, conhecimento não científico e pseudociência; para sermos epistemologicamente precisos, não podemos dizer que não existe transmissão de informação mais rápida que a velocidade da luz no vácuo, mas sim que até então os dados experimentais que temos nunca apontaram para essa possibilidade. Pode ser que alguém efetivamente experiencie esse fenômeno de forma irreprodutível e inverificável; o conhecimento que essa pessoa tem é verdadeiro, mas não é científico, pois a ciência vai tratar justamente da possibilidade de verificação de um conhecimento – isso não significa que o conhecimento que essa pessoa possui não é válido, mas se ele for efetivamente inverificável só significa, grosso modo, que não conseguimos distingui-lo de um palpite. Já a pseudociência é a tentativa de legitimar como científica uma afirmação que é indistinguível de um palpite, de algo que não pode ser verificado, ou, o pior dos casos (mas talvez o mais frequente), que procura “vestir” de ciência algo que o próprio conhecimento científico já provou equivocado (em última instância, nós não poderemos nunca conhecer a realidade através da ciência, mas podemos com ela eliminar explicações que não se adéquam ao que observamos dela – se trata de se afastar do erro, não de encontrar a certeza). Então dizer que o entrelaçamento quântico permite afirmar que existe transmissão instantânea de informação é pseudociência, seja por ignorância ou obtusidade deliberada.

  E, no final de sua fala, o Nicolau apresenta mais um problema grave na produção do conhecimento: a extrapolação absurda de conclusões. Estou me referindo a quando ele diz que, a partir da ideia do entrelaçamento quântico se pode inferir que na clínica psicanalítica os dois inconscientes se tornam um só sistema e, por isso, se poderia conhecer algo do indivíduo A apenas tendo contato com informações do indivíduo B – ele ilustra isso com a ideia de Freud de “atenção flutuante”. Aqui temos um exemplo do problema que é aquela ideia de justificar um equívoco com “mal não faz”; afinal, podemos pensar, que mal faz que um psicoterapeuta competente tenha algumas compreensões equivocadas sobre mecânica quântica? Pode ser que realmente esse conhecimento equivocado nunca atravesse diretamente a sua prática clínica, mas mesmo nessa hipótese temos que compreender que somos um todo, então que mesmo coisas sobre as quais não vemos uma relação direta se influenciam, se potencializam e despotencializam, se harmonizam ou se contradizem, enfim, tudo aquilo que nos atravessa nos constitui de uma forma ou de outra, não dá pra imaginar que um elemento X não terá influência sobre um elemento Y da nossa vida só porque não parecem diretamente relacionados. E esse exemplo mostra como, mesmo no caso de aparentemente não existir uma relação direta, uma pessoa ou grupo poder construir essa relação e assim agir em cima disso. Então pode até ser imediatamente verdadeiro que “mal não faz” tomar um chazinho de boldo pra aliviar uma dor de estômago; mas essa postura pode levar a pessoa a ignorar a gravidade dessa dor, principalmente se o chá efetivamente fizer a dor diminuir ou sumir, e assim ela pode não investigar a causa dessa dor, e o problema se acumula até se tornar muito mais grave do que um chazinho dá conta. Falei disso brevemente também na postagem sobre a questão da tradução do termo “bexiga” no livro A Função do Orgasmo; parece muito mais que Reich está se referindo ao órgão do corpo humano do que ao balão de borracha ao utilizar o termo, mas uma questão geopolítica do Brasil fez algumas pessoas se apropriarem da palavra como se se referisse ao balão de festa, porque efetivamente é uma boa ilustração, então mesmo que não seja a mais adequada “mal não faz”, aí disso já começam a se extrapolar outras ideias que são apenas possíveis em relação ao balão de festa e não ao órgão do corpo humano, e ao longo do tempo pode se perder completamente a intenção inicial nesse movimento. O mesmo acontece nessa fala do Nicolau, que começa apresentando a ideia de entrelaçamento quântico “como ilustração, não devendo ser tomada ao pé da letra”, dessa “caricatura” já tira uma conclusão incorreta, e a partir dela justifica uma postulação que nada tem que ver com o assunto inicial – de que se duas partículas emaranhadas formam um único sistema do qual se pode saber todas as propriedades ao conhecer metade delas, se pode dizer que na relação clínica os dois inconscientes também formam um sistema só e se pode conhecer elementos de um ao analisar o outro.