10 de outubro de 2020 – terceira aula de Seminários Clínicos

   Para essa aula o Henrique enviou por e-mail três materiais: dois vídeos do Conselho Federal de Psicologia (disponíveis na plataforma YouTube) e um texto de sua autoria. Os vídeos, intitulados “Olhares Diversos – Psicologia e Diversidade” e “Psicologia e Diversidade – Somos Diversos”, falavam sobre a questão da sexualidade humana e sua relação com o campo da Psicologia através de duas construções: em uma, profissionais da área falavam sobre como a sua abordagem enxerga o assunto, e todos disseram que não há questão de certo ou errado em relação a isso; em outra, pessoas que não se encaixam no perfil heterossexual e cis gênero falam sobre as relações sociais entre sexualidade e gênero; ambos os vídeos são curtos e bem produzidos, mas não aprofundam a discussão (não que isso seja um desmérito, pois parece ser exatamente essa a intenção de quem os produziu). O texto, intitulado “Sexualidades e Cultura”, foi construído como guião para uma palestra ou apresentação, e por isso consistia de pontos pertinentes a uma discussão sobre a questão da sexualidade humana e sua diversidade na clínica psicoterapêutica.

   Ao entrar em contato com esse material, fiquei curioso de como esse conteúdo seria trabalhado em aula, visto a questão da sexualidade provocar debates dentro da formação, por conta da postura teórica de Reich de classificar qualquer relação que não fosse heterossexual como desviante, se apoiando em uma pré-genitalidade, que seria neurótica ou neurotizante por definição; a maioria da coordenação do Instituto apoia a visão de que Reich teria repensado essa questão com o amadurecer de sua obra, pois define o orgasmo de forma mais ampla, como um “abraço cósmico”, como uma “entrega àquilo que se faz” e coisas assim. Como eu já disse em outros relatos, para mim isso é um revisionismo e uma tentativa de adequar Reich a uma leitura que se faz da realidade, para que a possibilidade de se manter reichiano não seja contraditória com outros valores que se deseja defender; como para mim não se trata de ser reichiano, pouco me importa se o autor possui passagens de que eu discordo, pois nunca se tratou de abraçar a sua obra como um bloco, mas sim de conhecê-la para poder me apropriar daquilo que é interessante. O Henrique iniciou a aula justamente falando disso, e apontando que era importante inicialmente compreender a posição teórica para depois podermos questionar.

   A primeira questão que ele apresenta é que apesar da teoria de Freud trazer um ponto de vista que coloca a homossexualidade como um desvio, a sua filha, Anna Freud, era homossexual, e justamente essa filha que se transforma em psicanalista e se torna “a mãe da psicologia do ego”. A partir disso ele foi traçando considerações sobre a produção de conhecimento e os vieses que aquele que observa/estuda introduz nas suas pesquisas. Depois, como que se isso fosse um desvio do caminho que pretendia percorrer, fala sobre a construção da teoria do Complexo de Édipo por Freud, e ao fazer isso traz colocações naturalizantes de questões que sempre acho que deveria ser problematizadas, ao menos colocadas em xeque (por exemplo, quando diz “e todos sabemos que a mãe e o grande amor da vida de todos nós”); na sua explicação do por que a homossexualidade seria entendida como um desvio, ele diz “tem questões que podem levar essa criança [um menino] a se identificar tanto com essa mãe que ele acha, que por ela ser um objeto inalcançável, mas um lugar de desejo muito forte, de identificação muito forte, ele começa a funcionar dentro de um estado mais feminino, o que pode levar ele, dentro de um contexto freudiano, à questão de homossexualidade, por definição, a mais um desvio. Então, dependendo da não interdição correta, né, feita, conforme Freud, do Édipo, a consequência disso pode ser complexa em relação a várias disfunções, digamos assim, somato-psíquicas desse menino, né, e por definição, se são disfunções somato-psíquicas desses meninos, por definição, é claro, que nós estamos falando de um garoto não saudável. Então a homossexualidade masculina ela não é saudável porque ela fala da disfunção, da não inserção, da não introjeção, do Édipo; e ele… acontece a, seja por identificação a homossexualidade, seja pela perversão, aí tem várias nuances possíveis – toda elas, pra Freud, fora da saúde somato-psíquica”. Essa frase mostra bem o problema que eu sempre busco apontar na construção deficitária do conhecimento; não se trata de se estar certo ou errado, mas sim de não ir erguendo um edifício teórico em cima de um base fraca, que não se sustenta, que não dialoga com as contestações que se lhe são oferecidas. Em relação à teoria do Complexo de Édipo eu não fiz uma pesquisa extensa, então não sei se à época Freud encontrou críticas e contestações a essa construção; mas em relação ao seu livro Totem e Tabu, onde ele tenta fazer uma leitura psicanalítica do que entende como questões universais do humano (a interdição moral do incesto e do parricídio; percebam como isso se liga fortemente à sua concepção do Complexo de Édipo – quem lê o livro sente essa temática transbordar das páginas), Freud recebeu críticas contemporâneas de pessoas diretamente ligadas tanto à área da Psicologia quanto da Antropologia, e se recusou a dialogar com qualquer uma delas. Quem estuda um pouco da biografia de Freud encontra como primeira menção sua sobre o tal Complexo de Édipo em uma carta trocada com seu amigo Fliess, aonde ele diz:

  “Descobri, também em meu próprio caso, [o fenômeno de] me apaixonar por mamãe e ter ciúme de papai, e agora o considero um acontecimento universal do início da infância, mesmo que não [ocorra] tão cedo quanto nas crianças que se tornam histéricas. (Semelhante à inversão da filiação [romance familiar] na paranóia — heróis, criadores da religião.) Se assim for, podemos entender o poder de atração do Oedipus Rex, a despeito de todas as objeções que a razão levanta contra a pressuposição do destino; e podemos entender por­ que o ‘teatro da fatalidade’ estava destinado a fracassar tão lastimavelmente. Nossos sentimentos se rebelam contra qualquer compulsão arbitrária in­dividual, como se pressupõe em Die Ahnfrau e similares; mas a lenda grega capta uma compulsão que todos reconhecem, pois cada um pressente sua existência em si mesmo. Cada pessoa da platéia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia, e cada uma recua, horrorizada, diante da realização de sonho ali transplantada para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do estado atual” (A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess — 1887-1904 / Jeffrey Moussaieff Masson; tradução de Vera Ribeiro. — Rio de Janeiro: Imago, 1986, página 273)

   Não é como se desse trecho se pudesse tirar grandes conclusões contrárias ou favoráveis à teoria do Complexo de Édipo, há muito mais coisas que se precisa levantar para poder construir um debate com qualidade em torno desse tema (e, acaba de me ocorrer, esse é um tema interessante para um artigo); mas ao menos ele nos mostra, na “voz” do próprio Freud, que ele não “descobre” o Complexo de Édipo como uma estrutura da mente humana, mas sim que descobre na sua história pessoal que nutriu, na infância, uma paixão por sua mãe e um ciúme de seu pai, e então passa a considerar isso como um fenômeno universal, portanto estrutural, da infância humana. Pelo que acompanho de relatos lidos e ouvidos, de sessões de intervisão e supervisão e de conversas com outras terapeutas, acredito que se alguém apresenta isso em uma sessão de análise hoje qualquer analista reichiana faria uma leitura desse fato como uma resistência, ou seja, a pessoa ao invés de assumir uma característica como sua, entendendo-a indesejável porém inegável, a projeta como estrutura universal, como presente em todas as pessoas, pois assim se alivia de perceber-se em falta – um comportamento, inclusive, muito comum em crianças da nossa sociedade: “eu fiz mas todo mundo faz”.

  Mas dentro do campo psicanalítico (e até mesmo fora dele, onde se fazem intersecções) se aceita a teoria do Complexo de Édipo na maioria absoluta das vezes de forma irrestrita, como se esta fosse efetivamente uma estrutura da mente humana; mesmo Deleuze e Guattari em seu livro “O Anti-Édipo”, que busca justamente construir uma crítica à teoria psicanalítica, não negam a existência de tal complexo, apenas o deslocando da origem ontológica para uma origem social. Talvez realmente haja um Complexo de Édipo anterior à formação da teoria de Freud (faço essa consideração pois é importante compreendermos que a nossa visão da realidade é sempre cortada pela nossa compreensão dessa mesma realidade, que nunca efetivamente acessamos, então existir uma teoria da coisa reforça ou mesmo produz a existência dessa coisa, sociologicamente falando), mas ao conhecermos a origem da formulação freudiana deveríamos, acredito, ao menos colocar essa hipótese em xeque e evitar dá-la como certa e garantida, buscando formas de controlar as nossas prenoções em relação a isso e construir uma teoria da clínica mais consequente a partir desse cuidado. Mas, ao contrário disso, toda a Psicanálise vai se estruturar tendo o Complexo de Édipo como base inquestionável e daí as coisas se desdobram; por exemplo, depois de apresentar a questão do Édipo no menino, o Henrique passou a falar sobre a estruturação do Complexo nas meninas, e para isso a noção de “castração” é central e necessária, sem ela a explicação não pode existir – e a ideia de castração é, também, central na ideia do Complexo de Édipo e lhe dá forma e sustentação, pois o sentimento do menino em relação ao pai é duplamente condicionado por esses marcadores, o do amor pela mãe que vê o pai como concorrente, e o do temor pela castração que o pai pode oferecer (essa castração, para os freudianos, é elemento essencial para que a pessoa possa introjetar a ideia da lei e da interdição). Ou seja, se pensa a construção psíquica das pessoas a partir de uma ideia que surge da autoanálise de Freud e de sua postulação de que, ao encontrar algo em suas memórias (e mesmo o uso do termo “encontrar” aqui tem que ser problematizado – já falei sobre a questão da memória e a importância de um estudo e compreensão mais profunda sobre isso em outro relato), havia encontrado também em outros indivíduos a mesma coisa.

   Continuando nessa ideia o Henrique trouxe uma frase que eu achei tão descabida que fiquei entre o “será que entendi direito” e o “calma aí que ele vai explicar isso melhor” e nisso acabei perdendo a oportunidade de perguntar sobre; se fosse em um encontro presencial, ou mesmo se talvez eu tivesse câmera, haveriam formas de comunicar a necessidade de perguntar algo sem interromper a fala, algo que eu acho muito ruim e procuro evitar ao máximo (na plataforma que utilizamos nessas aulas, o Jitsi Meet [https://meet.jit.si], há uma ferramenta de “levar a mão” que eu uso quando quero falar). A frase foi a seguinte: “Um determinado homem quando chega a um determinado lugar de poder, que consome, tem tudo, às vezes os parâmetros que ele defendia antes mudam, né, tem um caso, assim, não ou dizer de quem, de um jogador de futebol que foi pego na cama com um anão, e.. bom, tem outros que foram pegos com um travesti, né. Mas isso não é afeto, isso é descarga do poder, isso é descarga da falta total de afeto; ele não está transando com o travesti porque ele gosta do travesti, é porque isso dá poder a ele, isso dá a sensação que tudo pode, tudo faz, transar com o anão a mesma coisa. Então assim, não tem nenhum problema de você transar com um transgênero, transar com um anão, não é uma questão. Agora o que determina a qualidade dessa relação é o afeto; sem afeto você não tem, de jeito nenhum, qualidade de saúde. Então a gente vive em uma sociedade, até hoje, onde a diferença entre o masculino e o feminino começa lá atrás no Édipo, e é valorizada no Édipo”. Realmente não entendi onde está o lastro na discussão sobre o Complexo de Édipo, ou mesmo sobre a questão do poder atravessando as relações, para um questionamento de uma relação com uma pessoa com nanismo ou com uma pessoa travesti ou transsexual. Se a discussão fosse sobre a questão da prostituição eu compreenderia, pois há claramente uma questão do recorte do poder através da questão do consumo do outro como produto, envolvendo inclusive o pagamento direto e explícito – haveria muitas questões para se discutir em torno disso, certamente, mas ao menos eu conseguiria compreender em que ele estaria se apoiando para trazer o exemplo.

  Depois disso ele entra na questão reichiana, ou o menos que sempre atravessa a fala sobre a teoria reichiana dentro da formação do IFP, que é a questão da importância do amor, do afeto, da entrega dentro da relação sexual-afetiva entre duas pessoas; o padrão de saúde para Reich envolvia a capacidade de se alcançar o orgasmo (sendo esse a forma de “descarregar” por excelência, havendo sempre um quantum de energia que só pode ser descarregado através do orgasmo e assim se exercer a capacidade do organismo de se auto-regular), e esse só seria possível de se alcançar por pessoas que tenham a capacidade de se entregar na relação, de não temer as reações involuntárias que o orgasmo traz ao corpo, à pequena perda de consciência no pico da curva orgástica. Disso ele emendou uma discussão sobre a diferenciação entre culpa e responsabilidade, trouxe a discussão que a Hannah Arendt faz sobre isso em relação à Alemanha Nazista (o alemão que viveu à época do Nazismo mas não concordava com o sistema não era culpado pela existência do Holocausto, mas deve se responsabilizar pelas consequências do mesmo) e trouxe a reflexão sobre a questão do racismo na nossa sociedade contemporânea através do exemplo recente do programa de trainee da Magazine Luísa (que abriu um processo seletivo só para pessoas negras, como ação afirmativa, e acendeu um debate sobre “racismo reverso”, inclusive com processos judiciais envolvidos – para saber um pouco mais sobre isso, recomendo o episódio “Quem Lacra, Lucra” do podcast Braincast: https://www.b9.com.br/shows/braincast/braincast-378-quem-lacra-lucra-o-impacto-da-diversidade-na-inovacao-e-lucratividade/).

  Depois disso assistimos ao vídeo “Psicologia e Diversidade – Somos Diversos” através de ferramenta na plataforma que permite compartilhar um vídeo do YouTube para todas as pessoas. Uma questão que apareceu nesse vídeo e que eu havia anotado para trazer para a discussão foi colocada pelo Henrique logo no início da sua fala sobre o vídeo, que foi apresentada em mais de uma fala das pessoas entrevistadas pelo Conselho Federal de Psicologia para a confecção do material, que é a ideia, bastante difundida, de que “você pode não aceitar, mas você tem que respeitar” – para mim essa ideia não faz muito sentido, pois não consigo compreender como poderia haver respeito sem aceitação. Compreendo, claro, que podem haver vários entendimentos do que significa a palavra “aceitação”, e acho que é justamente nesse terreno que o debate deveria se formar. Mas penso que, seja qual for a concepção de aceitação que se tenha, não há algo nela que torne a questão da sexualidade algo de especial consideração, que seja diferente de outras expressões do humano. Se entendermos esse “aceitar” como “trazer para dentro da sua casa e se envolver ativamente com isso”, efetivamente não acho que ninguém tem que aceitar a sexualidade de ninguém, mas também acho o mesmo sobre religião, preferência musical, predileção estética, gosto alimentar ou qualquer outra coisa; agora se compreendermos que “aceitar” tem que ver com convivência social, tem relação com como construímos as nossas comunidades e como nos relacionamos com as pessoas, aí sim existem coisas que são aceitáveis ou inaceitáveis, que não se trata de dizer que uma pessoa pode não aceitar algo mas ainda assim respeitar a opção de outrem por aquilo, e aí temos como exemplos qualquer atitude que seja eticamente reprovada por uma comunidade, como assassinato, estupro, violência, entre outros, pois nesses casos o achar inaceitável essas condutas implica justamente em não respeitá-las, não lhes conceder espaço, e por outro lado entender que se eu respeito, por exemplo, o seu direito à privacidade, é condição necessária que eu aceite que você é uma pessoa com direito a exercer a sua privacidade (dentro de certos limites, certamente, como, por exemplo, que isso não impeça que outras pessoas também exerçam o seu direito à privacidade). Então eu não consigo conceber como seria possível a alguém respeitar a preferência sexual e afetiva de outrem sem que, também, a aceite. Há muito o que se desenvolver sobre isso, aqui mesmo nessa escrita a ideia está confusa, e não tive como falar sobre isso durante a aula, pois quis apresentar outras questões (fiz minha intervenção seguindo a ordem em que as questões foram apresentadas no vídeo) e ouvir as pessoas sobre, daí o debate se prolongou e não consegui voltar a esse ponto.

  Dentro do que eu consegui trazer sobre o vídeo, falei de como acho importante termos em mente que existem ao menos quatro variáveis a serem consideradas quando discutimos essas questões que se relacionam com gênero e sexualidade: o sexo (que seria aquilo compreendido como biológico, verificável através de microscópio e relações cromossômicas. E aqui já se pode fugir de um binarismo macho-fêmea, pois existem as pessoas intersexuais; e também já li em algum lugar que a questão dos cromossomos em borboletas é diferente da nossa – esse artigo aqui https://askentomologists.com/2015/12/10/how-do-butterflies-make-boys-and-girls/ ajuda a compreender um pouco a questão e vermos que mesmo entre a mesma espécie, e uma pesquisa na espécie de rã Xenopus Tropicalis, https://www.researchgate.net/publication/280535981_Coexistence_of_Y_W_and_Z_sex_chromosomes_in_Xenopus_tropicalis, demonstra que existem espécies onde os cromossomos sexuais são mais do que dois, embora o sexo continue sendo definido por um par), o gênero (que poderíamos descrever com as palavras “masculino” e “feminino”, em oposição ao sexo “macho” e “fêmea”), a preferência sexual e afetiva (que, numa lógica de origem binária, poderíamos dizer que é o espectro possível entre a homossexualidade absoluta e a heterosexualidade absoluta, com a bissexualidade absoluta bem no meio) e a identidade de gênero (na qual caberiam termos como “bicha”, “sapata”, “viada”, “fancha”, “caminhoneira”, “urso” etc). Citei, nessa toada, o excelente livro “Sexo e Temperamento”, da antropóloga Margareth Mead (https://we.riseup.net/assets/404151/Sexo+e+Temperamento+Margareth+Mead.pdf), aonde ela vai apresentar três tribos que nos permitem conhecer papéis de sexo/gênero bem distintos dos que a nossa sociedade apresenta como os únicos possíveis, e falei da série “Crônicas de São Francisco” (http://www.adorocinema.com/series/serie-23585/), que vai em sua temporada mais recente trazer questões que nos permitem pensar nessas relações. Eu interrompi essa minha fala, auxiliado pelo Henrique, porque percebi que estava falando muito e me interessava muito mais o diálogo do que a exposição de ideias – depois acabei por perceber que talvez eu tenha mais que trabalhar o meu poder de síntese do que contar com uma possibilidade de que todo um grupo se interesse pela discussão, pois a pessoa que falou depois do Henrique, que falou depois de mim, retornou em questões (muito pertinentes, vale ressaltar – por si elas valeriam uma exploração de toda uma aula) sobre pontos na fala do Henrique sobre o Complexo de Édipo, e assim não retornamos completamente ao vídeo e eu não pude pontuar a outra questão que eu desejava, do conflito entre aceitação e respeito, que apresentei acima.

  Na fala dessa pessoa, ela trouxe uma questão que eu achei muito importante e que revela uma agudeza interessante de pensamento: como o Henrique insistiu na ideia de que para Reich não haveria doença (ele estava falando sobre a questão da sexualidade, vale ressaltar – ter isso em vista mudaria o enfoque mas não eliminaria a pertinência da questão, claro), essa pessoa perguntou então como ficaria a questão da Peste Emocional em Reich, visto essa ser claramente uma definição que ele faz de um indivíduo doente, patologizando um comportamento então. A resposta que o Henrique começou a ensaiar falava da diferenciação entre desvio e doença, e a pessoa já colocou que então essa seria “uma questão meramente semântica”, e o Henrique disse que isso não se aplicaria pois semântica seria uma consideração para o campo lacaniano – acho que aqui se perdeu uma boa oportunidade de se problematizar essa ideia de que a discussão semântica é algo menor, algo do qual se pode dizer “meramente”. Mas uma outra pessoa trouxe uma consideração muito interessante, concordando com a pessoa anterior e discordando do Henrique, e fez uma fala apoiada no livro “O Normal e o Patológico” do Georges Canguilhem, mostrando que a visão de que toda doença é uma desfunção de um organismo saudável está equivocada, pois não dá conta de compreender uma doença da qual se identificou um patógeno específico – A Febre Hemorrágica do Ebola, por exemplo, não é causado pela desfunção de um organismo, mas pela infecção desse organismo por um vírus. Achei muito interessante que a partir disso, o Henrique disse que não conhecia o livro e propôs que dedicássemos a próxima aula a essa questão, a pessoa trouxesse um resumo da obra e as demais lessem o livro, para que pudéssemos fazer essa discussão de forma mais qualificada.

  Enquanto perguntava para as pessoas da turma se concordavam com essa forma, de se seria interessante termos uma outra aula para discutir essa questão, aconteceu algo que eu achei muito ilustrativo de um certo tipo de pensamento que vejo povoando a formação do IFP: a pessoa que trouxe a referência do Canguilhem disse que sentia a necessidade de colocar esses questionamentos pois por vezes sentia que na formação do IFP era apresentada e reforçada uma interpretação reichiana de que “a energia dá conta de tudo”; o Henrique endereçou essa questão, primeiro dizendo que ele mesmo nunca havia dito isso e que efetivamente não acreditava que a questão energética dá conta de explicar tudo, e que se isso era colocado na formação do IFP era questão de se levar isso para a reunião e problematizar (o que eu acharia muitíssimo interessante que ocorresse, mas talvez de forma preconceituosa já acredito que não mudaria muita coisa – eu mesmo já apresentei pro Henrique que tivemos na formação uma pessoa da coordenação dizendo que Reich nunca falou em sete segmentos corporais, quando claramente ele o faz na terceira parte do Análise do Caráter), e aí foi perguntando, mais ou menos uma-por-uma, o que as pessoas achavam dessa aula centrada na discussão do livro do Canguilhem – até que ele perguntou para uma pessoa que estava com o microfone desligado e não percebeu, rolou aquele “desencontro” de sinalizarem que o microfone estava desligado e a pessoa se atrapalhar um pouco com isso, e quando ela habilitou o microfone disse: “pra mim é fantástico, a discussão sobre energia é algo que eu apoio 100%”. Por mais que evidentemente a questão vá passar pelo determinismo energético, está explícito, acredito eu, que a proposta não era uma discussão “sobre energia”; se é isso que a pessoa entendeu da discussão, arrisco dizer que talvez ela tenha entendido muito pouco do que foi apresentado, e penso que isso se deve por uma leitura enviesada da realidade e do que se constrói com a formação – como também já coloquei em outros relatos, as pessoas já chegam no IFP acreditando em uma proposta de “energia transcendental” (que por mais que algumas pessoas afirmem que não é essa a proposta do Reich, que ele não se refere a algo transcendente, isso é questão de precisão conceitual – a proposta do orgone é sim algo que transcende aquilo que hoje compreendemos como possível dentro da física, pois postula uma “energia livre de massa”, algo que não é possível segundo o nosso, ou ao menos o meu, entendimento atual da realidade, pois energia não seria algo que existe por si, ela é uma característica que a matéria tem. Seria como dizer que pode existir cor, ou peso, sem matéria – essas não são coisas que existem per se, mas sim características da matéria), e pensam que suas posições se adéquam perfeitamente ao paradigma reichiano nesse sentido, pois “tudo é energia”. Muitíssimo complicado isso tudo, fico realmente muito triste, perdido e mesmo um tanto confuso de me deparar com essas questões.

  E não se trata necessariamente de colocar em dúvida a postulação reichiana do orgone, mas de uma compreensão teórica básica de que aquilo que um grupo ou indivíduo chama de um nome não é a mesma coisa que um outro grupo ou outros indivíduos batizam da mesma forma; e nesse ponto o próprio Reich é bem específico, criticando abertamente visões que acreditavam incompatíveis com a sua proposta – um caso que acho muito interessante, mas que infelizmente não tenho referências muito precisas para confirmar (nesse site https://prabook.com/web/wilhelm.reich/1344385 e na página do Wikiquote sobre Reich, https://en.wikiquote.org/wiki/Wilhelm_Reich, se pode encontrar essa citação a que vou me referir, apontando que está no artigo “The Doctor Who Made It Rain”, O Doutor que Fez Chover, em tradução livre, na Yankee Maganize de setembro de 1989, escrito por Tim Clark), é de quando uma pessoa próxima a Reich, Tom Ross, usou os acumuladores e Reich lhe perguntou se não sentia nada, Ross teria respondido “Deve ser como a ciência cristã, você precisa acreditar para funcionar”, e Reich teria respondido “Você não nos vê rezando aqui, ou vê?”. Ou seja, o próprio Reich negava essas aproximações da sua postulação do Orgone com outras coisas desse campo místico-transcendente. Esse é um movimento muito comum dentro dos adeptos do revisionismo, de dizer “ah, mas isso que estão descobrindo agora o povo X, de trocentos anos atrás, já falava” – não, não é a mesma coisa quando se percorrem caminhos completamente diferentes para afirmar aquilo que se percebe. Não se trata de negar que civilizações muito antigas possam ter descoberto verdades sobre a realidade que a nossa civilização só agora consiga verificar e/ou compreender, certamente isso é possível, embora se tenha que ter muito cuidado ao fazer esse tipo de afirmação. O que eu estou dizendo é que Reich postula características muito específicas sobre o orgone, então não se pode pegar um conceito de chi, prana ou qualquer outra postulação dessas e dizer que é a mesma coisa só porque as duas teriam pontos de contato; pior ainda (e, infelizmente, muito comum em quem faz esses movimentos revisionistas), é quem tenta achar esses pontos de contato entre duas teorias completamente diferentes e, a partir de um ou dois desses pontos, faz uma afirmação completamente descabida de que se uma está certa a outra tem que estar. Enfim, há muito o que se desenvolver sobre isso, mas creio que já me estendo demais e já existem aqui questões relevantes em suficiência para pensar.

  Depois, conforme foi trabalhando o seu texto, o Henrique trouxe uma fala que foi apontando relações possíveis entre uma leitura sobre efeitos de poder e a sexualidade das pessoas, e então jogou para a turma a pergunta “o que isso tem a ver com a teoria reichiana?”, e como de pronto ninguém respondeu, ele chamou nominalmente uma pessoa, que também não respondeu, então ele me citou, e não sem antes fazer uma piada sobre ele dizer que adora o silêncio mas não sustentá-lo por cinco segundos (que foi respondida com outra piada sobre como eu sou chato) eu disse que a relação que eu via ser possível fazer entre isso era justamente a partir da ideia, que até já havíamos endereçado de alguma forma anteriormente nessa aula, de que para uma certa leitura reichiana só há uma possibilidade de sexualidade saudável, e que todas as outras, por consequência, seriam não-saudáveis ou, para ficar no jargão, desfuncionais, e sendo o indivíduo um todo, essa desfuncionalidade na sexualidade provocaria efeitos em outros setores da vida da pessoa. Aproveitei para apresentar um pensamento que tenho nutrido, muito tímida e vagarosamente, há algum tempo: existe alguma dificuldade em dialogar sobre o amor em nossa sociedade (não de forma exclusiva) pois nomeamos muitas coisas diferentes usando essa mesma palavra, “amor” – então é comum em conversas sobre isso ouvirmos coisas como “ah, mas isso não é amor” ou então “aquilo sim era amor de verdade”. Acredito que esse não é um fenômeno restrito a essa palavra, mas como é um dos poucos temas que vejo as pessoas se dedicando a conversar um pouco mais detidamente no dia a dia, me chamou a atenção essa questão. Outra pessoa trouxe um exemplo também muito interessante para pensarmos nessas questões das múltiplas sexualidades e dos condicionamentos sociais: disse ela que um amigo lhe disse que estava em crise com sua sexualidade, pois se entendia um homem homossexual, mas durante esse período de [pseudo] quarentena estava consumindo pornografia heterossexual e se interessando por isso. Acredito que esse exemplo ajuda a pensar na sexualidade como abordada pela teoria queer (a ideia de que os rótulos, as classificações sobre preferências sexuais e afetivas – heterossexual, homossexual, bissexual etc –, apenas criam mais dificuldades do que resolvem questões, ou seja, são ferramentas inadequadas para nos ajudar a compreender e operar a realidade social) e também nos problemas da pornografia e da forma como a nossa sociedade se relaciona com ela.

  Continuando a desenvolver a partir do texto, o Henrique foi trazendo considerações sobre como construir uma prática clínica e uma vida coerente com valores que acreditamos potentes e necessários. Falou da importância da contextualização dos conteúdos, de sempre entender aonde se está inserido e qual o sentido que fazem as coisas que se lê e que se discute. Trouxe algumas ideias sobre a relação entre indivíduo e sociedade, principalmente em relação à ideia de genitalidade (“caráter genital” seria o modelo de indivíduo saudável para Reich), de que para ele não seria possível a construção de uma genitalidade a nível individual se não se modifica uma estrutura social opressiva. Enfim, ele trouxe falas que eu achei muito interessantes, mas não aprofundou nenhum ponto que eu possa desenvolver aqui (tendo-se em conta todo o desenvolvimento feito até aqui nesse relato, que já está bem extenso); mas sempre que ouço coisas interessantes assim sendo ditas nas aulas fico num misto de esperança de que isso seja efetivamente absorvido e elaborado na vida e na prática das pessoas da formação, e de tristeza de perceber que mesmo que superficialmente concordando com pontos as pessoas não se aprofundam, não desenvolvem as consequências de se afirmar certas coisas, não pensam em como transformar em realidade aquilo que defendem, como que certas afirmações deveriam modificar o seu dia a dia praticamente.

One thought on “10 de outubro de 2020 – terceira aula de Seminários Clínicos

Comments are closed.