Sobre o termo “bexiga” no livro A Função do Orgasmo

Quando li o livro A Função do Orgasmo de Reich, antes mesmo de entrar na formação do IFP, pensei haver entendido perfeitamente a analogia que Reich traz em relação ao masoquismo: ele diz que não se trata de um desejo de sofrer mas, pelo contrário, de um desejo de se livrar do sofrimento. Ele então faz uma analogia com uma bexiga que, completamente preenchida e esticada, não tendo mecanismos para aliviar-se, vai desejar ser furada para que possa voltar a relaxar. Isso me remeteu a uma história que um colega de turma da minha primeira graduação me contou: disse ele que sofreu um acidente de moto e foi hospitalizado, e que não estava conseguindo urinar; ao passar um dia, isso já estava incomodando muito, pois a vontade existia mas ele não conseguia, então uma enfermeira ofereceu que colocassem uma sonda, que passaria pela uretra, chegando até a bexiga e permitindo o alívio da urina acumulada; ele disse que recusou de pronto, a ideia de uma sonda sendo inserida pela uretra era incômoda demais; mas depois de três dias nessa situação, a dor da bexiga cheia e distendida era tão grande que ele pediu para que colocassem a sonda, o que efetivamente foi incômodo mas gerou um alívio grande e imediato.

Eu penso que esse exemplo ilustra perfeitamente o que Reich diz sobre o masoquismo, de que a pessoa masoquista, mesmo que de forma inconsciente, não deseja ser lanhado, batido, furado por gostar da dor, mas justamente porque não possui capacidade de descarregar, assim fica cheio e precisa de algo externo para lhe proporcionar essa descargar. Esse colega de turma pedindo que lhe introduzissem a sonda é exatamente isso, pois ele está desejando algo que sabe que será incômodo e que em outra situação não desejaria, mas sendo a única possibilidade ao seu alcance de se livrar de um incômodo maior, a desejou. Como ouve uma oportunidade durante essa aula, perguntei ao Marcus Vinícius sobre essa questão, se o termo bexiga se referia ao órgão do corpo ou à bola de encher, e contei inclusive essa história do meu colega de turma; ele disse que por a tradução ter sido feito por pessoas de São Paulo, aonde é comum que se refira a bola de encher por bexiga, era a segunda opção. Não me convenci com esse argumento, o exemplo que eu tinha me parecia perfeito demais para que Reich não fosse pensar em algo assim e fosse se referir a uma bola de encher, tendo que convidar a imaginarmos ela viva. Com esse incômodo, fui procurar outras versões do livro para ver se conseguia explorar alguma coisa na tradução, e minha primeira aposta foi procurar o livro em alemão, língua em que Reich escreveu a maior parte de suas obras, mas essa tarefa se mostrou muitíssimo complicada, primeiro pela própria dificuldade de conseguirmos materiais confiáveis e mais raros assim na internet, ainda mais que as obras de Reich, pela lei dos EUA, ainda não são de domínio público, segundo porque Reich tem dois livros chamados “A Função do Orgasmo”, o que já multiplica qualquer dificuldade (procurar dois livros com o mesmo título já gera alguma confusão, mas aí pelo nome de quem o escreveu conseguimos filtrar fácil; aí procurar dois livros com o mesmo nome do mesmo autor já complica, vamos pela data de publicação, coisa que nem todos os lugares disponibilizam) e terceiro porque procurar por isso em uma língua que você não compreende e fica dependente de tradutores pode se mostrar muito ingrato. Assim, frente a essa dificuldade, depois de algumas horas de pesquisa resolvi procurar o livro em inglês, e mesmo não sendo completamente simples consegui encontrar uma versão; como no item dentro do capítulo que ele traz essa analogia a palavra bexiga está no título, não tive dificuldade em encontrar esse ponto e lá vi a palavra bladder, acreditando então que minha dúvida estava sanada, pois não se tratava da palavra ballon. Mas, como as conclusões precipitadas são inimigas da boa pesquisa, fui verificar em alguns dicionários online a palavra bladder; achei várias definições que corroboravam a minha hipótese (uma boa compilação delas pode ser encontrada no “meta-dicionário” The Free Dictionary: https://www.thefreedictionary.com/bladder), mas no Oxford Learners Dictioneries (algo como Dicionário Oxforno para Estudantes – https://www.oxfordlearnersdictionaries.com) encontrei o seguinte: “a bag made of rubber, leather, etc. that can be filled with air or liquid, such as the one inside a football” (“uma bolsa feita de borracha, couro, etc. que pode ser enchida com ar ou líquido, como aquelas dentro de uma bola de football”, em tradução livre). Essa definição me obrigava a ir mais fundo na minha pesquisa, pois incluía um ponto de incerteza; pensei em duas possibilidades para continuar a aprofundar a minha investigação: uma seria encontrar a obra em alemão, pois a palavra utilizada ali poderia eliminar essa ambiguidade, e a outra era explorar mais o livro em inglês, em busca de outras ocorrências da palavra para perceber como ele se relacionava com as frases em que aparecia. Como essa segunda opção era mais simples, me coloquei nela, e se o próprio título da seção do livro aonde Reich faz essa analogia não oferecia já uma evidência para a minha hipótese (The Functioning of a Living Bladder – O Funcionamento de uma Bexiga Viva), encontrei sem muito esforço a seguinte frase: “But the organic sphere, e.g., a pig’s bladder, would have a charging apparatus which operates automatically in the center” (“Mas a esfera orgânica, por exemplo, a bexiga de um porco, teria um aparato de carga que opera automaticamente no centro”, em tradução livre).

Essa frase me apontava para uma direção, mas também impunha que tirasse uma hipótese do caminho para prosseguir: poderia ser que o termo “pig’s bladder” fosse uma gíria, uma sinônimo, para “party ballon” (balão de festa) ou algo parecido, assim como aqui no Brasil nós temos um brinquedo que se chama Língua-de-Sogra, que não é literalmente a língua de ninguém. Pensando em como trabalhar essa possibilidade, me veio a ideia de ir em algum espaço de chat aonde houvessem falantes nativos de inglês e perguntar por essa possibilidade; assim, acessei o canal ##chat da rede de IRC Freenode e fiz a pergunta em três etapas, para evitar “contaminar” as respostas com alguma pré-noção minha. Como primeira pergunta, coloquei uma imagem de um balão de festa e perguntei que outras palavras além de ballon as pessoas poderiam usar para aquele objeto; entre algumas piadas (como, por exemplo, tentar descrições literais como “esfera de borracha preenchida de ar”) e questionamentos dos meus motivos, ninguém apresentou outra palavra, no máximo dizendo que ball (bola) poderia ser utilizado mas seria muito impreciso. Depois, então, perguntei se a palavra bladder poderia ser usada para descrever aquele objeto, e aí algumas pessoas disseram que sim, que se fosse para pensar na literalidade a palavra poderia ser usada, mas que isso não acontecia no dia-a-dia. Por fim, perguntei se o termo pig’s bladder era conhecido, se era alguma gíria para se referir a algo, e todas as pessoas que estavam me respondendo (cerca de quatro ou cinco) disseram que nunca ouviram algo semelhante e que achavam muitíssimo improvável, com a minha insistência o máximo foi uma pessoa dizer que o termo pigskin (algo como “pele de porco”) era usado para se referir à bola de futebol americano. Agradeci à ajuda das pessoas, não saí com nenhuma certeza dali, mas me afastei um pouco mais da ambiguidade no uso do termo. Estava convencido, contudo, que o mais próximo que eu poderia chegar de alguma conclusão envolveria ter acesso ao livro em alemão.

Voltei a pesquisar na internet pelo livro em alemão, já cogitando talvez a possibilidade de começar a juntar dinheiro e tentar comprar uma cópia física (para além da dificuldade que não é só entrar em livrosemalemao.com e encomendar um), até que depois de algum tempo pesquisando no DuckDuckGo, no archive.org e na Z-library, eu encontrei um site pessoal de alguém que disponibilizava várias obras de vários autores em alemão (pelo site ser em alemão, eu ia procurando apenas por “Reich” ou pelo nome do livro, então não faço ideia do objetivo da pessoa com esse site), e nele havia uma página sobre o livro, inclusive com o primeiro capítulo disponibilidade no próprio site (em html) e um link para baixá-lo ao final da página – mas o link não estava funcionando. Revirei o código fonte da página em busca de alguma coisa, fiz buscas pelo conteúdo do site, e acabei encontrando uma página para a qual aparentemente não havia link mas que era uma tabela com todos os autores e obras que eram disponibilizados no site, com um link para baixar um arquivo .zip com todas as obras de cada autor – o relativo às obras de Reich não estava funcionando… Procurando mais, revirando o site conforme eu podia (fazendo buscas restritas ao domínio do site no DuckDuckGo, olhando o código fonte de cada página aonde o nome Reich aparecia, usando o analisador de tráfego do Firefox, pesquisando pelo nome do dono do site…), acabei por encontrar um e-mail do dono do site. Escrevi uma mensagem curta explicando a minha necessidade do livro em alemão e informando que os links no site não funcionavam mais, joguei no tradutor (fiquei fazendo um trabalho de “traduz e retraduz” pra me certificar que os erros eram os mínimos possíveis, e fiz a tradução do inglês pro alemão pois é geralmente assim que os tradutores funcionam, usando o inglês como intermediário entre outras línguas) e enviei o e-mail. Quando acordei no dia seguinte, a pessoa havia me respondido já enviando o arquivo do livro; voltei ao tradutor, escrevi uma mensagem de agradecimento e voltei fui ao livro explorar a minha hipótese.

Com o livro em alemão em mãos eu haveria de poder investigar o mais fundo possível essa minha hipótese, de se Reich se referia a uma bola de encher para fazer uma analogia com o masoquismo; mas, como é possível de imaginar, para uma pessoa que não entende alemão isso é uma tarefa complicada. A chance seria se o termo utilizado em alemão fosse inequivocamente utilizado para se referir a somente uma coisa, seja a bexiga enquanto órgão do corpo, seja uma bola de encher, seja qualquer outra coisa – infelizmente, esse não foi o caso. O termo que Reich usa em alemão é Blase, que pode se referir a uma bolha (nas duas acepções, como em “bolha de sabão” [bubble] ou em “bolha de queimadura” [blister]), balão, vesícula, bexiga ou até mesmo, informalmente, para designar uma gangue ou multidão (mob). E o alemão ainda tem uma complicação, que novas palavras se formam ao unir duas; então, por exemplo, uma coisa que eu fiz foi procurar pela palavra “porco”, para comparar com o que eu encontrei na tradução inglesa – porco, em alemão, é Schwein, e procurando por essa palavra no livro encontrei “Schweinsblase”, literalmente “Bexiga de porco”, unindo as duas palavras. Olhando para isso até aqui, parecia que havia trabalho demais a ser feito para se chegar a uma conclusão que ainda teria uma quantidade de dúvida invulgar, então seria uma empreitada contraprodutiva – melhor, então, abandoná-la e usar esse tempo e energia para outras coisas (fazer esse relato, por exemplo). Mas um detalhe me chamou muito a atenção e me apontou que há alguma questão muito interessante para ser pensada nisso: na versão em português do livro não se encontra a palavra “porco” no mesmo local que se encontra no livro em alemão e na sua tradução para o inglês. Há de se questionar, acredito, tal escolha de tradução. Esse questionamento, no entanto, certamente não cabe aqui e requer mais tempo e dedicação para ser feito com responsabilidade, podendo inclusive ser que vire um artigo que pode ser apresentado como trabalho de conclusão de curso da formação.