13 de setembro de 2020 – segunda aula de Reich e Conexões Contemporâneas

Essa aula, seguindo o esquema proposto pelo Marcus Vinícius, foi baseada no segundo capítulo do livro “Reich, Grupos e Sociedade”, denominado “Reich e o Holismo”; acredito que o pequeno parágrafo que abre esse capítulo é uma boa forma de iniciar esse relato:

Wilhelm Reich, assim como muitos autores, percorre diferentes caminhos ao longo de sua obra. Optou-se, neste trabalho, por uma análise que leve em consideração, além de sua rede familiar, três momentos específicos: um Reich psicanalista e marxista, analista de caráter e vegetoterapeuta, orgonomista e formulador da democracia do trabalho. Entretanto, que fique claro que estas fases se entrecruzam; portanto, não são estanques e completamente separadas umas das outras. Ao abordá-las, acredita-se que se está contribuindo para uma compreensão da obra reichiana

Ele iniciou apontando que preferia correr o risco de ser repetitivo em alguns conceitos e apresentações das ideias de Reich (visto que essas questões já haveriam sido apresentadas em outros cursos, ou mesmo conhecidas por fora do IFP) mas garantir que todas as pessoas presentes pudessem ter uma apreciação, ainda que superficial, da trajetória que Reich percorre em seu trabalho. Salientou também que embora se considere um analista reichiano, “pois essa é a base”, não se entende como ortodoxo, pois nenhum autor da conta de toda a complexidade da questão terapêutica e seus desdobramentos. Essa, para mim, é uma construção interessante, pois também tenho pensado em como me localizo dentro desses referenciais; Reich para mim não é uma base, no sentido que não acredito que é da sua obra que partem as questões, mas acaba sendo uma base em outra acepção, visto que a minha formação e primeiro contato mais detido e cuidadoso com a psicoterapia se faz a partir de Reich. Importante notar que essa fala do Marcus Vinícius coloca em jogo, entretanto, que essa formação não é tao exclusivamente reichiana assim; pensando somente no caso dele, que traz essa visão explicitamente não-ortodoxa, já temos que quatro dos quinze cursos que terei na formação são ministrados dentro dessa concepção. Quando converso que alguém que me pergunta se sou um terapeuta reichiano, gosto de apontar que não, que no momento me entendo como um psicoterapeuta de base reichiana.

Depois de apresentar rapidamente essas três fases do trabalho reichiano, falou-se sobre a infância de Reich, que nasceu no Império Austro-Húngaro, que tinha um irmão três anos mais novo, era uma criança tímida, cresceu em um ambiente rural, escreveu uma autobiografia sobre sua infância chamada “Paixões de Juventude”, que Reich ouve a mãe transando com um de seus instrutores, acaba contando para o pai em retaliação a uma acusação que sua mãe lhe fez e isso leva a uma depressão profunda de sua mãe que culmina em seu falecimento, e ao subsequente definhamento e falecimento do pai. Reich foi à guerra, alistando-se no exército, e quando volta tem condecorações, pede licença para estudar Direito em Vienna, depois mudando para Medicina; logo no início dos seus estudos médicos Reich também se interessa pela Psicanálise e pelo socialismo. Embora durante toda a sua vida Reich atenda em consultório privado, nunca ficou somente nessa posição, se envolvendo em movimentos sociais e políticos, inclusive iniciando seus atendimentos na policlínica psicanalítica de Vienna, que objetivava justamente atender trabalhadores de baixa renda. Achei interessante um trecho do livro aonde o Marcus Vinícius faz aproximação do pensamento de Reich com o anarquismo: “Por volta de 1920, Reich participou de colóquios e seminários onde se debatiam temas relativos à Ciência, à Filosofia e à Política e, já por esta época, demonstrou uma forma de pensamento social semelhante à ideologia anarquista” – ele vai fazer essa aproximação em outros momentos desse capítulo, e acredito que há um tema interessante para se pesquisa nisso.

O primeiro trabalho de Reich é “O Conceito de Pulsão e Libido de Forel a Jung”, fato relevante para percebermos como esse tema já se apresenta a Reich mesmo antes de ser psicanalista. O seu segundo trabalho, “O Conflito da Libido e a Ilusão de Peer Gynt”, é uma apresentação que fez para a sua candidatura a membro da sociedade psicanalítica de Vienna, onde explora através da abordagem psicanalítica da peça Peer Gynt de Henrik Ibsen. Após falar desses dois trabalhos o Marcus Vinícius foi explorando outras questões dentro da linearidade cronológica no trabalho de Reich; como ele explora isso no seu livro, e também no artigo “Wilhelm Reich: dados biográficos e orientações básicas” (http://www.ifp-reich.com.br/publicacoes/marcus/3)Cap.Livro.Jung%20e%20Reich.pdf), penso que não faz muito sentido ficar repetindo isso aqui. Uma exploração muito interessante nesse sentido foi a de como a ideia de comportamentos divididos binariamente entre os sexos, como ainda hoje os meninos são educados para longe do afeto e as meninas para uma valorização deste; eu sempre cito nesse tipo de discussão a importância do livro “Sexo e Temperamento” de Margareth Mead.

Mais à frente o Marcus Vinícius vai trazer que “Existiram três fissuras muito sérias [por parte do Reich] em relação ao Freud; duas delas toleradas – o termo é exatamente esse, pelo menos na minha opinião, né, tô falando assim na minha opinião porque tem reichiano que discorda de mim – toleradas pelo Freud. A primeira fissura é o conceito de potência orgástica; que que é potência orgástica? É a capacidade pra você atingir o orgasmo e fazer isso de forma frequente; isso ajuda a equilibrar o sistema energético, segundo o Reich (…) a segunda fissura é quando o Reich começa a trabalhar com os seus pacientes, percebe que alguns pacientes ficam muito defendidos, né, resistem ao processo de associação livre de ideias, método por excelência da Psicanálise como você sabem (…) o Reich começa a trabalhar essas defesas, quer as manifestas, quer as ocultas que vem a partir das manifestas (…) isso vai criar um segundo racha, uma segunda fissura – não exatamente uma ruptura, mas uma fissura – novamente tolerada pelo Freud. O Freud chega mesmo a pegar parte desses livros, um desses livros que eu acho que foi o Análise do Caráter, pega assim na mão, né, quando o Reich dedica a ele, né, da assim pro Freud (o Reich relata isso), aí o Freud bota o livro assim na mão, a primeira coisa que o Freud diz é assim – porque eles se tratavam de doutor, né, Dr. Freud e Dr. Reich, claro – aí o Freud vira pra Reich e faz assim ‘pesado, não, Dr. Reich?’, é a primeira frase do Freud em relação a isso, e isso arrasou o Reich, ele fica com essa frase, tanto é que depois ele relata essa frase, né, porque ele toma como uma rejeição inicial obviamente (…) E a ruptura de fato, técnica, digamos assim, se dá quando o Reich escreve sobre o masoquismo – o entendimento do masoquismo do Reich é completamente diferente do Freud e aí bota, de fato, parte da teoria psicanalítica em xeque. Porque para o Freud o masoquismo seria fruto da pulsão de morte, você tenderia a repetir como, a repetir situações masoquistas ou de cunho [inaudível] por uma busca na direção da morte, e isso seria uma força primária, isto estaria… isso comporia a existência humana [problemas de conexão com a internet me impediram de gravar essa parte, mas se trata de questão bem explorada em outros relatos]”. Depois disso passou-se muito pela construção de ideia de pulsão de morte e seu lugar dentro da teoria reichiana, e o Marcus Vinícius disse que para o Reich não se trata de entender que não há uma pulsão de morte, mas sim que ela não é uma pulsão primária.

Uma questão que eu levantei nessa aula é que sempre me ocorre é em relação ao termo “bexiga” usado por Reich no livro “A Função do Orgasmo” quando faz analogia com a questão do masoquismo; no IFP as pessoas da coordenação, quando vão se referir a esse exemplo, sempre falam em bexiga como balão de encher, mas desde que eu li isso no livro, antes mesmo de entrar na formação, eu faço referência à bexiga órgão do corpo, e isso se dá por conta de uma história que um colega de turma contou quando eu estava no primeiro período da primeira graduação; depois de terminar de escrever sobre isso aqui, percebi que ficou um tanto extenso e que caberia em outra postagem, algo com uma lógica interna própria, então decidi fazer dessa forma. Se quiser ler, é a próxima postagem desse blog: https://game.noblogs.org/post/2020/10/03/sobre-o-termo-bexiga-no-livro-a-funcao-do-orgasmo/

Na sequência dessa questão da bexiga enquanto bola de encher, o Marcus Vinícius trouxe que outro exemplo que ele acha interessante sobre essa teorização do masoquismo feita por Reich é a de um paciente deste que o oferecer a bunda para apanhar (foi engraçado que no chat da plataforma online, aonde sempre rolam comentários paralelos enquanto a aula acontece, as pessoas comentaram como o Marcus Vinícius falou “bumbum”, e como depois ele usou “pau” para se referir ao pênis, alguém disse “vamos combinar que quem fala ‘pau’ fala ‘bunda’, né?”) tinha que ver com se proteger da castração, era uma questão de mal menor. Isso me lembrou que uma postura muito comum em quem começa a praticar alguma luta, ou mesmo em brigas “leigas”, é da pessoa que começa a apanhar muito justamente virar as costas – essa não é uma postura muito segura, pois você fica indefeso aos golpes que lhe podem ser desferidos, mas é intuitiva porque você protege o rosto (nunca vi alguém que virasse as costas sem estar com os braços protegendo completamente o rosto) e as costas tem menos áreas sensíveis do que a frente do corpo. Fiquei imaginando as teorizações que os reichianos poderiam fazer desse comportamento, indo tão longe quanto “a pessoa que apanha se sente sendo castrada, então é natural que busque proteger o pênis”…

Depois do intervalo surgiu uma fala muito interessante de uma pessoa da turma sobre um médico que estuda a questão do orgasmo, e que eu acho interessante reproduzir aqui o diálogo que aconteceu pois ele traz muitos elementos interessante para pensarmos.

Pessoa 01: “É muito interessante porque ele rebate algumas das pressuposições freudianas na questão do orgasmo feminino principalmente; o Freud achar que o orgasmo clitoriano era um orgasmo parcial ou não desenvolvido, que o desenvolvido seria o vaginal, por exemplo. Aí eles fazem estudos de fisiologia, fazem medições e eles detectam que o orgasmo é superior, muitas vezes, o clitoriano, do que o outro, né, o vaginal. Isso eles fazem detecção por instrumentos e fazem medições orgânicas e fisiológicas, e aí é muito interessante, né, porque…

Marcus Vinícius: “Só um minutinho… Quando você diz o orgasmo maior vamos deixar claro que o que você está dizendo é da intensidade de um suposto orgasmo, né, é isso

Pessoa 01: “É, tá… exatamente…

Marcus Vinícius: “Da intensidade

Pessoa 01: “[inaudível]… teria mais prazer, teria as reações fisiológicas de prazer ou de relaxamento seriam maiores, né, no vaginal do que no clitoriano e muitas vezes eles fizeram as medições e essas medições eram as mesmas – as medições fisiológicas, que eles tinham – as mesmas para o orgasmo clitoriano, às vezes mais fortes, do que no vaginal. Então eles inverteram essa lógica freudiana de um orgasmo menos desenvolvido ou mais… é, menos maduro, do clitoriano do que no vaginal. E aí é interessante, tem até uma série que se chama Masters of Sex, que fala, relata, de uma forma bastante romanceada, né, dramática, o caminho que ele trilhou para conseguir fazer essas pesquisas e disseminar essas informações

Pessoa 02: “Só uma perguntinha: isso não envolveu em nenhum momento perguntar para as mulheres não? Pelo amor de deus (risos), que coisa estranha

Pessoa 01: “Não, é uma… são pesquisas muito famosas, eu vou até mandar para vocês. Mas de alguma forma, eu estava lendo, isso que ele encontrou cientificamente foi usado para validar a relação monogâmica heterossexual, mas quebrou também uma série de tabus, quebrou vários tabus sobre sexualidade, que assim, era…

Marcus Vinícius: “Pessoa 01, olha só…

Pessoa 01: “… era escandaloso, era escandaloso, ele fazia pesquisa [inaudível] tendo relações sexuais, por exemplo, no hospital, ele teve que batalhar muito pra conseguir fazer isso

Marcus Vinícius: “Só tem uma questão; as pesquisas deles, do casal lá, Masters e Johnson, tem a ver, assim, elas são pesquisas empíricas, tá, e como toda pesquisa empírica ela tem ali a força do imediato, né, ela… não existe uma teorização naquilo ali. O que que eu quero dizer? Por exemplo, você falou da intensidade do orgasmo forte, né? Isso não quer dizer, que sob o ponto de vista reichiano você tenha uma maior entrega, só tem uma intensidade maior, entendeu? Assim, olhando sob o ponto de vista reichiano; ali, aquelas duas pessoas na relação tiveram uma intensidade maior, mas isso não quer dizer que você tenha ali efetivamente uma [inaudível – qualidade?] de entrega e profunda relação com o outro, pode não ter. Então, assim, bem ou mal falando, porque não é exatamente isso, o casal de mulheres cavaleiro/amazona e cavalo/égua [exemplo anterior discutido em aula], que eu sei lá pra onde foi a fantasia das duas, colocada pela Pessoa 03, né, pode ter, todas as aspas nisso, um puta orgasmo, né, mas aquilo ser uma decomposição no todo da relação das duas, não sei. Então assim, a coisa empírica às vezes ela é enganosa, a gente tem que um certo cuidado com o que é empírico, entendeu? Só com a medição, só com isso sem entender um contexto um pouco mais amplo, né, quando você não tem uma teoria que respalde esse empirismo, entendeu? Porque senão fica só no empírico, né…

Pessoa 01: “É, assim, eu discordo em partes porque apesar da gente ter toda essa discussão na teoria reichiana, não só na teoria mas na prática reichiana, né, a gente tem, por outro lado, um mundo, o mundo acadêmico, que exige determinadas formas de medição, e de estudo, né, de simbologia, uma simbologia, né, signos científicos para que isso possa ser interpretado e validado para o restante da sociedade, né, e nesse sentido eu acho que essas pesquisas, esse empirismo, essas medições elas foram muito importantes porque foram formas de comprovar, sem sombra nenhuma de dúvida para a sociedade, que existe uma fisiologia específica do orgasmo e essa fisiologia é compartilhada tanto por homens quanto por mulheres, provoca uma série de reações no corpo e existe também uma série de bloqueios que não são corporais mas são mentais, são psíquicos, que fazem com que a pessoa não consiga desenvolver, ter esse tipo de reações fisiológicas, que bloqueiam o prazer, e nesse sentido corroboram certas perspectivas reichianas, né, auxilia a pensar uma série de coisas, tem suas limitações, mas por outro lado eu acho que assenta mais no meio científico grande parte das discussões que a gente tem aqui. Tem uma parte que a gente consegue medir, é isso, né, daquilo que a gente está falando reichianamente, né, uma parte fisiológica, da excitação, da mudança corporal por exemplo, a intumescência, as secreções, o movimento corporal, aquela rigidez corporal que ocorre antes do orgasmo, tudo isso ele fala, também. E ele conseguiu categorizar e medir uma série de pessoa e de casais; que eu acho muito importante, porque a gente vive numa sociedade que declara esse tipo de mediação a válida para declarar como verdade uma série de coisas

Marcus Vinícius: “Tá bom, mas a gente pode olhar pra isso também tendo essa clareza de que isso compõe um certo viés da história toda, que isso não pode ser tomado como algo absoluto, assim, só isso que eu tô colocando, que o empirismo ele demonstra alguma coisa ali dentro mas sem você teorizar efetivamente sobe aquilo; só estou dizendo isso, entendeu? Que o fato de ser mais intenso não significa que, afinal de contas, né, é mais intenso, por isso que eu falei, tem uma intensidade. Agora a discussão sobre o que é um orgasmo, aí é outra discussão, entendeu? Se aquilo que se está tendo, para usar os termos reichiano, é só um alívio de tensão e não um orgasmo, no sentido do que o Reich entende por um orgasmo, aí é outra coisa. Mas, enfim, eu entendo que isso é importante quando se diz, quando com isso se mostra que a mulher pode ter muito prazer também com o clitóris, até pra arrebentar certos preceitos machistas etc. eu entendo isso, eu entendo que isso possa ser uma ferramenta, pode trazer dados interessantes, mas a gente tem que ter um cuidado também com isso, porque senão é aquilo que eu falava lá na primeira aula, senão também a gente… se achar que a gente tem que demonstrar tudo dentro de uma coisa empírica etc. a gente vai seguir teoria, terapia cognitivo comportamental, entendeu, que só trabalha basicamente com isso, né, aliás não foi atoa que surgiu nos Estados Unidos entendeu, porque eles adoram esse tipo de coisa. Então eu não estou dizendo que não tenha serventia, eu só estou dizendo que a gente também tem que olhar pra isso com os limites que isso tem, entendeu? E com os alcances que também tem, eu concordo com você, tem alguns alcances, você conseguir demonstrar que a mulher pode ter um baita prazer clitoriano, se você pensasse então na sociedade vitoriana, conservadora, isso chega a ser quase revolucionário, né, bacana, por outro lado a gente tem que ter cuidado também de perceber os limites do empirismo – só isso que eu coloquei, entendeu, Pessoa 01?”.

Com a reprodução desse diálogo, eu queria apenas ilustrar a questão da construção do conhecimento que eu sempre insisto. O ponto trazido pela Pessoa 01 é muitíssimo interessante, e ele se expressa completamente já na primeira frase dela, já está contido ali; porque se o Marcus Vinícius está correto nas considerações que faz a respeito do empirismo (e eu acredito que ele está), de seus perigos e vantagens, é preciso pensar porque se evocam os seus perigos sempre contra aquilo que vem colocar em xeque a teoria reichiano e nunca se cobra dessa a exploração das suas vantagens. Porque é tão perigoso colher dados empíricos e acreditar que deles, sem nenhum tratamento, se produz uma compreensão da realidade, quanto pensar que de uma teorização construída puramente “no gabinete” se pode afirmar que descreve bem a realidade se são encontrados elementos que a endossem – já discuti aqui no blog muitas vezes o problema da indução na construção do conhecimento mas, em resumo, se você quiser encontrar elementos que provem que uma teoria é verdadeira, você muito provavelmente vai conseguir encontrá-los (vamos lembrar, por exemplo, que já acreditamos que a Terra era o centro do universo e acreditávamos ter dados experimentais para comprovar isso, assim como até hoje pessoas acreditam, teorizam e fazem testes que acreditam comprovar a eficácia dos princípios da homeopatia, que água tem memória e que diluir uma substância é aumentar o seu poder de ação), então a única forma de nos certificamos que uma hipótese que temos descreve bem a realidade é pensar em algum teste não que provaria que ela está certa, mas que provaria que ela está errada, e aí submetê-la a esse teste e ver o que acontece. Eu ainda não li sobre essas pesquisas (mas um lugar para começar a fazê-lo já me apareceu, indicado pela Pessoa 01, que é esse artigo https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2010000100014), então não posso dizer se elas se encaixam dentro de um paradigma empirista ou não, mas penso que se não podemos pensar que algo descreve bem a realidade só por ser um amontoado de dados coletados, também temos que desconfiar de uma teoria que não se confronta com nenhuma massa de dados colhida a partir de uma metodologia coerente – e esse me parece ser justamente o caso do Freud. Eu não estou familiarizado com a sua discussão sobre o orgasmo feminino (em verdade foi até espantoso para mim essa formulação), mas existem dois exemplos de excelência para mim sobre isso na sua obra. O primeiro é a sua conceituação sobre o Complexo de Édipo, que ele “descobriu” em sua auto-análise e postulou que era uma estrutura da mente humana; todo o seu trabalho clínico a partir daí pode ser lido como uma grande adição, por viés de confirmação, a essa teorização, sem tentar nenhum teste que pudesse efetivamente comprovar ou refutar a sua hipótese. O segundo é toda a teoria sobre a qual se assenta o seu livro “Totem e Tabu”, que segue a mesma estrutura do Complexo de Édipo (ele acredita ter encontrado uma explicação para algo, e então vai em busca de elementos que possam confirmar a sua hipótese – não testá-la, repito, confirmá-la), e foi criticada frontalmente na sua época por nomes importantes da área da Antropologia, sendo que Freud nem dialoga com essas críticas nem muda a sua construção teórica a partir disso. Quem não desconfia desse tipo de construção mas levanta ressalvas contra perigos do empirismo aparenta estar olhando para um lado só da questão…

Conforme foi seguindo com a aula, o Marcus Vinícius começou a falar da transição que compreende do trabalho de Reich da Psicanálise para a Vegetoterapia Caractero-Analítica; eu teria que me debruçar muito mais sobre a obra reichiana para poder afirmam alguma coisa com segurança, mas acho que é interessante pensar o quanto o Reich rompe ou não com a Psicanálise, o quanto continua ou deixa de ser psicanalista. Penso que uma tarefa importante para isso seria fazer um escrutínio dos relatos de Reich sobre seus atendimentos, buscando com isso criar um quadro cronológico das técnicas utilizadas, o tão minucioso quanto possível (discriminar, por exemplo, observação corporal de intervenção corporal, assim como fazê-lo também dentro de cada uma dessas divisões, catalogando o que se observou, como se interviu, que técnicas utilizou, em que ponto do tratamento isso ocorreu etc.). Não estou, com isso, dizendo que é importante em si o conhecimento de até quando Reich foi psicanalista ou de quanto de Psicanálise carrega o seu trabalho; mas entendo que é importante olhar com esses dados para o fenômeno dos reichianos que dividem a obra do autor em antes e depois da Psicanálise, com uma linha mais ou menos borrada (a depender de cada caso), e justamente entender com base em que posicionam essa linha aonde o fazem. Eu, particularmente, entrei na formação muito resistente à Psicanálise e muito satisfeito com a minha compreensão de que o Reich não era psicanalista; essas duas construções foram se tornando mais fracas, pois fui entendendo como o Reich foi certamente psicanalista (o livro Análise do Caráter, por exemplo, é sem sombra de dúvidas um livro de Psicanálise, em minha leitura. É uma obra que procura demonstrar o que seu autor entende como aspectos falhos na teoria e prática psicanalítica, sem dúvidas, mas que justamente o faz para tornar a Psicanálise mais sólida, oferecendo sugestões de como corrigir esses erros) e também fui compreendendo, precisamente por acompanhar esse movimento de Reich, que existem construções interessantes na Psicanálise e que é possível desenvolver em cima disso (e aqui me tem sido muito importante o autor que já citei diversas outras vezes, Antonio Imbasciati, que propõe e faz mover uma atualização da Psicanálise frente a novas descobertas em campos relacionados). Talvez em caráter de admissão, mas devo dizer que o que me convida a refletir sobre essa possibilidade é uma fala da Sueli Rolnik, aonde ela diz que o que ela faz é Psicanálise; se uma pessoa que conheceu e trabalhou com o Guattari, que estuda e produz sobre Esquizoanálise, pode falar isso, pensei que talvez eu pudesse olhar com mais cuidado para esse campo.

Enquanto desenvolvia sobre essa abordagem teórico-prática da clínica reichiana, a Vegetoterapia Caractero-Analítica, o Marcus Vinícius trouxe uma frase que eu gostaria de reprouzir aqui: “todo processo clínico é ou deveria ser de autonomização, de dar autonomia ao paciente. O que que é essa autonomia, sobre o meu ponto de vista? Autorregulação, capacidade de você se auto regular, se autogerir; então diz respeito não só ao equilíbrio ‘carga – descarga’, mas à sua capacidade de dar conta de algumas coisas que antes você não dava conta e que te levavam à despotencialização”. Por falas como essa que eu ainda vejo potencial na formação e continuo a fazê-la, por mais que eu saiba que é possível imaginar outras coisas a partir da leitura dos relatos que eu faço, sempre tão recheados de crítica. Mas é justamente aí que mora o meu apreço: se não me importasse, não visse valor, não perderia meu tempo construindo essas críticas; eu posso até falar mal daquilo pelo que não me interesso, mas certamente só construo uma crítica, no sentido forte do termo construir, quando a coisa criticada tem importância para mim.

No restante da aula o Marcus Vinícius apresentou o caminho que o Reich percorre em sua obra da vegetoterapia caractero-analítica até a sua postulação da energia orgone e a invenção da orgonomia e orgonoterapia, passando pelas questões sociais – como esse relato já está um tanto longo e essas informações já constam em outros relatos, assim como no próprio livro Reich, Sociedade e Grupos, prefiro não desenvolver sobre isso (mesmo que a questão com as “pantufas orgônicas” que o Marcus Vinícius traz pudesse render muitas reflexões interessantes).

Eu planejava encerrar o relato com o pequeno parágrafo acima, pois como o estou finalizando quase três semanas depois da aula ter ocorrido, não me lembrava de algo em seu final. Ao longo do capítulo que exploramos nessa aula, algumas vezes o Marcus Vinícius faz aproximações da teoria reichiana com o paradigma anarquista – importante deixar explícito que ele não fala, e nem se acharia subsídios para dizer algo assim, que Reich era ou se dizia anarquista; ele apenas vai mostrar como se podem ser feitas aproximações da sua obra e pensamento com a teoria e prática anarquista. Como próximo do dia em que fiz a leitura desse capítulo eu também li o capítulo “Aos Jovens” do livro “Palavras de um Revoltado”, do anarquista Pior Kropotkin (quem se interessar pode baixar o texto aqui: https://we.riseup.net/assets/674602/Aos+Jovens+Piotr+Kropotkin.odt), encontrei relações com essa obra e o recorte oferecido pelo Marcus Vinícius, pois o Kropotkin está justamente falando de como podemos utilizar as nossas vocações para a construção de um sociedade mais justa – o que, me parece, é uma evocação que muito interessava também ao Reich. O Marcus Vinícius vai apontar que aproxima a obra reichiana dos anarquistas através do conceito de autogestão, pois em sua leitura de Reich seria impossível ter uma sociedade autogerida sem indivíduos autorregulados; aqui me lembrei de dois textos, muito curtos e muito bons: “O Paradigma Anarquista em Educação” (https://difusaolibertaria.files.wordpress.com/2015/09/gallo-o-paradigma-anarquista-em-educac3a7c3a3o.doc), de Sílvio Gallo, me ajudou a pensar no anarquismo enquanto princípio gerador, apresentando quatro conceitos que seriam o que há de comum nos diferentes anarquismos, entre eles os de Autonomia Individual e Autogestão Coletiva, que dialogam diretamente com isso que o Marcus Vinícius falou de “sociedade autogerida X indivíduos autorregulados”; “A Autogestão da Sociedade Prepara-se na Autogestão das Lutas” (https://bibliotecaanarquista.org/library/joao-bernardo-a-autogestao-da-sociedade-prepara-se-na-autogestao-das-lutas), de João Bernardo, mostra como é importante a aplicação hoje daquilo que você defende para o amanhã, e é um texto que poderia ser entendido como uma demonstração da aplicação do conceito de autogestão.