12 de setembro de 2020 – segunda aula de Orgonomia

O Nicolau iniciou essa aula fazendo um pequeno e rápido resumo da aula anterior, dizendo que nela ele fez um apanhado geral da história da orgonomia e que nessa a ideia seria compreendermos a lógica da orgonomia, dizendo que “a orgonomia ela se propõe, ela chega a ser, um modo não só de entender, de compreender, as vicissitudes da vida emocional, a relação mente e corpo, mas ela se propõe a ser, na verdade um modo novo de se entender a própria realidade, quer dizer, ela extrapola, em muito, a dimensão da, entre aspas, psicologia ou psicanálise, extrapola em muito também a dimensão, digamos, da fisicalidade, da fisiologia, e essa lógica que eu quero tentar mais uma vez apresentar a vocês e tentar desenvolver esse modo de ver as coisas”.

Eu penso que essa dimensão é muito importante das pessoas compreenderem, antes mesmo de conhecerem as postulações que sustentam a orgonomia: ela não é um ajuste de um ou outro entendimento que se acredita equivocado, ela é uma proposição que muda muito do que compreendemos até hoje da realidade. Isso não nos aponta para o erro ou acerto dessas proposições, mas nos dá mais ferramentas para trabalhar, para pesquisar, para desenhar e testar hipóteses; afinal, uma explicação radicalmente diferente de um fenômeno deveria ser mais simples de se provar ou desprovar do que uma muito parecida com aquilo que já temos, correto? Penso aqui como exemplo em uma situação social aonde se acreditava que a Terra era plana – haviam motivos de sobra para isso, certo? Se você soltar algo ele sempre cai em direção ao chão, o sol e a lua giram sobre nossas cabeças, olhando para o horizonte você não curvatura nenhuma… Não haviam motivos para acreditar que o nosso planeta era algo além de uma extensão plana. Se alguém viesse com uma proposição levemente diferente disso, talvez de que a Terra fosse plana mas tivesse as bordas mais elevadas, teria que conseguir algum teste bem específico para provar isso, visto que não alteraria a compreensão da realidade de forma muito brusca; mas alguém que propusesse que o nosso planeta ao invés de plano era esférico poderia propor testes muito mais “definitivos”, visto a diferença de concepção da realidade – pensar nas diferentes estações do ano, por exemplo, poderia ajudar a demonstrar a sua hipótese, ou mesmo propor uma viagem em direção ao oeste para chegar em um local que geralmente se alcançava viajando para o leste.

Depois o Nicolau falou sobre como compreender as questões que o Reich traz no Análise do Caráter e no A Função do Orgasmo permitem “dar contra razoavelmente da clínica”; esse é outro ponto que eu insisto bastante quando dialogo sobre essas questões com outras pessoas da formação. Embora o Reich tem feito adições e notas no Análise do Caráter depois de ter postulado a existência do orgone, ele inicialmente escreveu o livro (na verdade essa obra é um conjunto de artigos escritos em momentos diferentes, apresentados em congressos etc., que Reich reúne para formar um livro) sem postular essa existência, ou seja, pensar na existência do orgone não foi necessário para observar o que ele observou na clínica e nem para concluir o que ele concluiu a partir disso. E mesmo depois que postula a existência do orgone e pensa técnicas terapêuticas a partir disso ele não afirma que a análise do caráter está equivocada, apenas que ela atinge indiretamente os pontos possíveis de atingir diretamente através da orgonoterapia – em sua clínica ele nunca deixou de utilizar a técnica da análise do caráter, mas a sua prática clínica já existiu sem a postulação da orgonomia. Eu não me entendo como reichiano e nem tenho a intenção de sê-lo (não tenho a intenção de ser nenhum “-ano” ou “-ista” até o momento), mas acho que é importante mantermos esse olhar cronológico sobre a obra reichiana para conseguir diferenciar o que é um “esquartejamento teórico” do que é apenas concordar com uma construção sem concorda com outras.

Apresentando a ideia de que para Reich a orgonomia não seria possível sem a Psicanálise, o Nicolau apresentou uma definição interessante sobre os aspectos tópico, dinâmico e econômico do aparelho psíquico: “os postulados freudianos nisso, quando ele fala de aparelho psíquico ele coloca a dimensão tópica, dinâmica e econômica: [tópica fala de] consciente e insconsciente, dinâmica se está vinculada a afeto ou não, a econômica tal energia, mais uma vez, essa energia ela é postulada como alguma coisa que está na interface do somático com o psíquico”. Acho interessante registrar essas definições aqui pois foram dimensões que eu senti muita falta de ter melhor exploradas no início da formação, e inicialmente pensei que essa dificuldade era advinda do fato de eu não ser da área, mas logo percebi que muitas outras pessoas, mesmo graduadas ou se graduando em Psicologia não tinham uma definição do que eram essas dimensões – foi me debruçando sobre isso em dicionários/vocabulários de Psicanálise que eu consegui ter algum entendimento sobre esses termos e compreender um pouco melhor o que estava sendo evocado quando se falava nisso. Nessa capitulação ele foi retornando algumas outras definições, como libido, sublimação, recalque, pulsão, buscando com isso apresentar esse movimento teórico-conceitual que Reich faz de suas postulações sobre a clínica dentro de uma abordagem psicanalítica até a sua hipótese de uma energia no campo da física.

Mais à frente na aula ele trouxe uma construção que achei importante de registrar, porque traz elementos que ensejam aprofundamento:

vocês sabem que a Psicanálise – eu vou chamar de Psicanálise com P maiúsculo, porque é da ordem daqueles entendimentos que apontam para a ideia de inconsciente. No mundo acadêmico em geral essa ideia é bastante desacreditada hoje em dia, vocês sabem disso; quando eu falo ‘mundo acadêmico em geral’ eu não estou falando das universidade de ciências humanas, sociais, né, eu estou considerando a academia como um todo. Os epistemólogos consideram, todo eles, a Psicanálise como pseudociência – um conjunto de crenças, sem nenhuma base significativa por trás disso. O Reich está percorrendo… não, deixa eu dizer uma outra coisa também. Eu entendo, várias pessoas entendem, que isso se dá assim não só porque o mundo é mal ou porque o mundo não tem sensibilidade, mas por culpa da própria ou das próprias psicanálises que criaram uma hermenêutica própria, como se fosse uma linguagem, um quadro referencial que só é entendido pelos iniciados que compartilham aquelas premissas e aquelas crenças e nunca soube dialogar com outras disciplinas, e quando tenta dialogar, há uns vinte ou trinta anos atrás, com as neurociências e assim por diante, ela é simplesmente reduzida a um espaço secundário. Há um psicólogo cognitivo americano, famoso, que ele ilustrou essa questão da seguinte maneira, ele disse assim ‘se existissem ou se existirem marcianos, talvez um marciano comente uma experiência sua da seguinte maneira, ao invés de dizer assim, eu pensei em fulano, eu lembrei de fulano, ele diria assim, meu neurônio 3-4, localizado na minha base ocipital, conectou-se com o neurônio 5-6. O que que ele quer dizer com isso, ele reduz o que nós chamamos de psiquismo a uma mera correlação entre neurônios; ou seja, aquilo que nós vivenciaríamos como experiência psíquica não seria nada mais do que uma espécie de ilusão dessas conexões. Veja que essa ótima mata absolutamente toda a perspectiva psicanalítica. O Reich faz o contrário, ele pega a psicanálise e a partir do seu interesse pela questão energética ele modifica a física; então o entendimento que o orgonomista tem de certas premissas da física como nós temos conhecimento hoje em dia muda bastante em função disso. Claro, não tem nenhuma aceitação acadêmica, mas isto acontece, isso é possível”.

Primeiro, acredito que cabe explicitar que participei dessa aula sob condições menos favoráveis do que se fosse uma aula presencial: nesse dia estava bastante calor, a casa aqui é muito desconfortável termicamente (ela não possui circulação de ar por conta da sua construção, só tem janelas para uma direção e é completamente colada nos muros nas outras três), e se eu ligasse o ventilador prejudicaria a minha audição da aula e ainda atrapalharia com a gravação que faço (até aqui gravo essas aulas online posicionando o gravador de som próximo às caixas de som do computador, então ligar o ventilador significaria ter o ruído do vento o tempo todo – tem um efeito desastroso na captação de som), prefiro ter menos atenção no momento da aula mas ter uma boa gravação (que posso ouvir depois em um contexto mais favorável, como faço agora, de madrugada, bem mais fresco), e na aula online a dispersão fica mais fácil, há mais barulhos no ambiente, as pessoas interagem mais pelo chat da plataforma, enfim, não é uma condição ideal. Tem fatores meus também, como por exemplo eu ter um raciocínio um pouco vagaroso para processar novas ideias, e também a minha preferência por não ficar interrompendo uma linha de pensamento para com a qual eu já tenho discordâncias, pois na minha experiência isso acaba levando para uma postura mais resistiva da pessoa e a impede de construir uma linha de raciocínio completa, então prefiro ouvir primeiro para pensar e apresentar discordâncias, se for o caso, depois.

Trouxe essas questões acima para ajudar a compreender por que não apresentei durante a aula essas questões que quero trazer agora; na verdade quando ouvi essa fala do Nicolau me surpreendeu que não tenha me chamado a atenção no momento em que ele falou. Primeiro, não me parece que a ideia de que existe um inconsciente é “bastante desacreditada no mundo acadêmico em geral”; pelo contrário, em um episódio do podcast Naruhodo que discute justamente se a Psicanálise é ciência ou não (https://www.b9.com.br/shows/naruhodo/naruhodo-76-psicanalise-e-ciencia) o que é falado é como a Psicanálise parte de um pressuposto não falseável (a existência do inconsciente), portanto ela não produziria conhecimento científico, mas que isso não a torna pseudociência; e que mesmo se apoiando em um pressuposto não falseável ela alterou a forma de encararmos o mundo, pois hoje não conseguimos mais entender a realidade sem o conceito de inconsciente. Realmente muitas pessoas colocam a Psicanálise como uma pseudociência, e penso que ouvir esse podcast pode ajudar a pensar nisso sobre outras perspectivas; o fato de se apoiar em um conhecimento não falseável não a torna uma pseudociência, mas insistir em algumas postulações quando já temos outras hipóteses melhores pode torná-la uma pseudociência. Acreditar que a Terra era plana e estudar a realidade a partir disso já foi ciência; mas hoje em dia tentar produzir conhecimento assim é pseudociência, pois já se provou falsa a hipótese de que a Terra é plana. Aqui teria sido importante pedir referências para o Nicolau sobre isso que ele afirmou, que ele pudesse citar artigos e autores que apontem para esse consenso do qual ele fala. Depois há a questão que ele traz da Psicanálise não dialogar, enquanto campo do saber, com outras áreas afins (como a Psicologia Cognitiva, a Neurociência, a Biologia Evolutiva etc.); esse é exatamente um ponto fundamental para compreendermos essa possibilidade de um conhecimento não científico tornar-se pseudocientífico. Nós, enquanto indivíduos, somos limitados em nossa apreensão da realidade, e para compreendê-la precisamos “esquecer”, “ignorar” muitas coisas em nossos processos reflexivos, simplesmente porque não damos conta da quantidade avassaladora de informações que a realidade comporta; estudar a realidade de forma fragmentada não significa compreender a realidade como algo fragmentado, mas apenas que é necessária alguma estratégia para lidar com as nossas limitações. Então estudar as emoções e sua relação com o psiquismo não deveria significar uma negação dos processos cognitivos ou da materialidade do corpo na construção da vida emocional das pessoas, nem uma primazia daquela sobre estes; deveria significar, apenas, que precisamos fazer recortes quando vamos estudar algo. Mas hipóteses e (principalmente) descobertas em outros campos, como o estudo do comportamento ou da morfologia cerebral, deveriam produzir diálogo dentro da Psicanálise, revisão de postulados, adequação de conceitos, e vice-versa. Mas como colocado não é isso que acontece, a Psicanálise se ressente muito das críticas que lhe são feitas e ao invés de procurar se construir como um campo mais permeável à revisão e ao diálogo, se fecha e se atomiza. Um autor que já citei em outros relatos aqui do blog, Antonio Imbasciati, procura fazer justamente esse movimento de revisitar conceitos psicanalíticos à luz de descobertas e informações advindas de outras áreas do saber; me parece um movimento ainda um tanto tímido, não por falta de iniciativa do autor, mas por questão do seu ineditismo e dificuldade mesmo, mas que me parece bastante promissor enquanto proposta.

Mais à frente na aula o Nicolau trouxe uma boa construção sobre o conceito de transferência: “Aquela experiência do Reich encontrar um paciente dele na rua que disse que nunca confiou nele levou-o a prestar atenção na clínica, em especial, ao fenômeno da transferência. De novo, o fenômeno da transferência não é nada novo, o que que é a transferência? Uma atualização, no aqui e agora, dos elementos essenciais do desenvolvimento psicossexual, dos impulsos e desejos que não obtiveram satisfação, estão envolvidos em conflito, foram recalcados, então, na teoria, o paciente neurótico, de forma indireta e inconsciente transfere para o analista a busca dessa satisfação; seria tarefa do analista reconhecer-se nesse lugar, reconhecer essa dinâmica, essa busca de satisfação indireta, não simplesmente fornecer satisfação (senão tem um gancho contratransferencial), frustrar essa satisfação e interpretar. Resumidamente”. Eu acho importante sempre termos esses conceitos fundamentais bem definidos, porque somente a partir dessa precisão conceitual é que temos condições de avaliar o quanto estamos ou não de acordo com uma teoria e pensarmos na sua adequação com aquilo que experienciamos, seja através de estudos práticos ou teóricos. Na minha limitadíssima experiência clínica, por exemplo, me parece que o conceito de transferência realmente é uma ferramenta útil para se pensar a situação analítica; no entanto, não estou plenamente convencido de que ela se processa a partir desse referencial que o Nicolau apresentou; pensar que a pessoa transfere para a figura do analista sentimentos e emoções que tem origem e referência na sua história (e não na relação presente) me parece adequado, mas não sei se isso tem que ver com essa postulação de um desenvolvimento psicossexual, da questão das fases oral, anal, fálica e genital – aqui me parece, mas ainda não tenho estudos para fazer qualquer afirmação, que a esquizoanálise fornece elementos para pensarmos melhor nisso. Um pensamento que me é recorrente quando estudo essas questões da formação é “as coisas podem funcionar independente da sua teoria sobre esse funcionamento estar certa”; isso me parece tão óbvio e ao mesmo tempo tão ignorado, que se faz urgente pensarmos mais nisso. Me lembrei agora do filme “Jamaica Abaixo de Zero”, pois nele há um bom exemplo disso: um dos membros da equipe credita o sucesso a um “ovo da sorte” que ele carrega durante as competições – para ele, cada vitória que conseguem tem relação com o fato de ele carregar o ovo consigo nas provas, e esse é um elemento cômico no filme, pois ninguém além do próprio personagem acredita nesse “poder” do ovo. Ou seja, quando eles ganham, não tem relação com a teoria que essa pessoa tem sobre o ovo, embora eles ganhem mesmo assim. Vale registrar também, embora de forma breve dada a quantidade de vezes que esse tema já foi explorado na formação e, consequentemente, nos relatos que faço aqui no blog, que no que se seguiu a isso da aula se falou bastante sobre transferência negativa latente – um conceito fundamental para a clínica reichiana e para compreender as diferenças desta com a teorização freudiana sobre a clínica.

A partir de uma pergunta ele também trouxe uma outra definição interessante que, segundo ele, advém da compreensão desse modelo hidráulico do aparelho psíquico: “O que a maioria dos freudianos chamam de sublimação o Reich chama de formação reativa. O que é formação reativa? É quando parte um impulso, que busca satisfação, é voltado contra si mesmo como defesa, e aí cria-se uma forma secundária de funcionamento que tem como finalidade, ao mesmo tempo, dar vazão a algo quantitativo desse impulso enquanto mantém em xeque o próprio impulso. Então, na ótica reichiana, um vez existindo genitalidade, uma vez existindo satisfação genital, pode continuar existindo fixação pré-genital de alguma monta mas 1) essa fixação pré-genital não vai ser investida, porque não vai ter energia, não vai ter… isso aqui é um capítulo à parte, que eu vou falar mais tarde, não vai estase, na teorização do Reich, que só faz sentido no modelo econômico-energético,não faz sentido no modelo freudiano. Então a gente tem que pensar no quantitativo, né, como se fosse algo afluindo num tubo, um conjunto de tubos, então, se a água sai não vai ter acúmulo, a água não vai parar antes ou aqui, se não sai na genitalidade tem acúmulo, ou a mesma coisa que dizer, numa pessoa que vive uma condição incestuosa, escolhe parceiros a partir de um desejo incestuoso, por exemplo, isso acontece não porque édipo existe, não porque a experiência edipiana existe simplesmente, mas porque na própria estruturação a situação neurótica da ensejo a um acúmulo, que o Reich chama de neurose, que alimenta a própria neurose, que alimenta o acúmulo – é circular. Então, respondendo à sua pergunta: o que não pode ter sublimação… não pode no sentido não seria possível de fato, seria uma falsa compreensão dizer que genitalidade pode ser sublimada – não, tem que ser descarregada. Oralidade e analidade pode ser sublimada, desde que a genitalidade não seja, até porque o que vai haver para ser sublimado é muito pouco. Olha, mas ‘genitalidade não pode ser sublimada’ não quer dizer ‘sexo livre’ ou qualquer bobagem do tipo. Vou até ilustrar dessa maneira: se uma pessoa tem uma relação, e essa pessoa tem satisfação afetiva e sexual, satisfação de fato, isso não quer dizer que ela não vá achar outra pessoa interessante, eventualmente, mas isso quer dizer que o abrir mão, se assim a pessoa o decide, abrir mão de uma relação com outra pessoa em função desta não vai ser nada custoso, nem emocionalmente, nem psiquicamente, nem nada, porque existe a satisfação. Já se não… se é um casamento compulsório, compulsivo, né, não existe satisfação ali, então a tentação mora ao lado, então aí não buscar uma outra relação não é sublimação, é pura repressão, mas é algo que só pode ser compreendido se você leva em consideração toda a sistêmica do acontecimento”. Aqui existe uma construção teórica que eu vejo necessidade de problematizar apenas por ser afeito ao método científico, porque há também um desejo de simplesmente aceitá-la, visto o eco que faz com coisas que eu sinto e vivi. Quando ele diz “abrir mão de uma relação com outra pessoa em função desta não vai ser nada custoso”, parece nos levar à conclusão se não de que a monogamia seria a forma adequada de relação afetivo-sexual humana, ao menos que ela é uma das formas mais adequadas. Mas quando se diz “não vai ser nada custoso”, está implícita uma teoria, a ideologia do homo maximizantus, essa ideia de que as pessoas agem sempre buscando extrair o máximo de valor em tudo; apresentar que um argumento para não fazer algo é que “não custa nada”, sem apresentar nenhum outro motivo, é super que algo ser gratuito é razão suficiente para que o façamos – para os reichianos que gostam tanto dos ditos populares, é o famoso “de graça até injeção na testa”, que justamente mostra o absurdo dessa ideia, pois efetivamente não conheço ninguém que estivesse disposta a receber uma injeção na testa apenas pelo fato dela ser gratuita. Isso, claro, deve nos apontar para o fato de que as discussões sobre as formas de relacionamento que criamos e fazemos circular envolvem muitas variáveis e, por isso, sua discussão é muito complexa; mas justamente por isso chama a atenção quando a coisa é apresentada, mesmo em um resumo, como se fosse muito simples.

Falando sobre os experimentos de Reich com a teoria da abiogênese (que a vida vem do não-vivo), o Nicolau trouxe uma afirmação interessante de ser verificada: “É nesse momento que surge o Pasteur, que faz uma série de procedimentos que o levam à conclusão de que isso não é verdade, que não, que quando você trata essas substâncias de uma forma adequada, isola, faz com que esse conteúdo seja… sofra uma assepsia bastante boa, você pode fazer esses procedimentos que não vai surgir nenhuma manifestação da vida aí não. Ora, acontecia que os defensores da abiogênese tinham entre seus defensores os darwinistas. Por que? Porque parecia muito lógico para um darwinista que a vida surgisse espontaneamente da não-vida, a vida surgir espontaneamente da não-vida era obviamente o contrário do procedimento divino, instaurava, né, o processo criativo, o processo criativo divino que instaurava a vida sobre a Terra. Então ideologicamente falando e também culturalmente falando, a abiogênese era uma teoria bastante palatável, natural, à época. Uma, é, não um experimento (chega até a ser um experimento), uma descrição de como a vida teria surgido na Terra [inaudível], pensa justamente lá certas substâncias, algumas gorduras, os raios e não sei o que e daí poderia ter surgido uma mistura que é basicamente a teoria, digamos assim, que os defensores, entre eles o [inaudível e, provavelmente, (Henry Charlton) Bastian] defendiam, mas defendiam inclusive apresentando resultados de laboratório nesse sentido, Pasteur dizia que não, que simplesmente eles tinham trabalhado mal esses materiais, que a experiência tinha sido contaminada por esporos que vem pelo ar e caem sobre o experimento, que eles estava bem selados [sic] e que, por isso, sequer seria possível observar essa vida naqueles experimentos e depois, né, que seria um experimento mal sucedido na verdade. Sabe-se hoje em dia, biógrafos do Pasteur que o Pasteur em segredo acreditava na abiogênese e ele fazia os mesmos experimentos, assim como sabe-se que ele falseou, modificou, os resultados de vários experimentos dele para ter os resultados esperados”. A informação importante de ser verificada aqui é essa afirmação sobre o Pasteur. Mas, para além disso, nota-se uma fala muito tendenciosa, mesmo para algo que cumpra a função de resumo; qualquer pessoa que estude um pouco a história dos experimentos no campo da microbiologia verá que não se tratou de Pasteur (ou qualquer outro) “simplesmente dizer” que os experimentos continham falhas, mas sim de buscar corrigir procedimentos que considerava poderem levar a respostas inconclusivas (para quem lê em inglês, um bom resumo pode ser encontrado aqui https://evrenatlasi.com/en/2020/05/the-birth-of-microbiology-louis-pasteur-abiogenesis-experiments-and-the-origins-of-life/). Apresentar essas questões como se fossem mera discordância ideológica é sinal de desconhecimento e/ou desonestidade intelectual; me entristece que seja importante ressaltar, mas com isso não estou dizendo que não há disputa ideológica envolvida na ciência, nem mesmo que não houve essa disputa nesse caso em questão – o uso do “mera” na minha frase não é acidental.