12 de setembro de 2020 – segunda aula de Seminários Clínicos

Para essa aula o Henrique enviou alguns dias antes dois materiais; o texto “Memória, Recordação E Ficção: a imagem fotográfica na clínica da Análise Psicorporal Reichiana”, escrito por ele e por quem acredito que foi seu orientador no doutorado, Ricardo Silva Kubrusly, e um vídeo chamado “Transcending Heidegger – The Cinema Of Terrence Malick”, um vídeo muito interessante que traz reflexões que interligam os dois autores, mostrando de uma forma muito bonita como o cinema também pode ser uma atividade filosófica – o vídeo está disponível na plataforma YouTube e tem legendas em português, recomendo fortemente que quem se interessar por cinema e/ou filosofia, ou mesmo quiser olhar as coisas de um ponto (talvez) novo, assista ao vídeo.

Para mim assistir a esse vídeo me trouxe uma memória que já tem uns nove anos, de quando eu fazia uma oficina de audiovisual e ao sair de lá fui caminhando com uma amiga até o ponto de ônibus e ela foi parando em todas as banquinhas de DVDs perguntando sobre o filme “A Árvore da Vida”, e não encontrávamos, os vendedores nem tinham conhecimento do tal filme, ela me dizia que já tinha procurado em vários locais e não achava. Não lembro exatamente do diálogo que tivemos, mas lembro de perguntar sobre o que era o filme e ela não conseguir me explicar direito, mas a empolgação dela e a insistência na procura me marcaram; não sou uma pessoa que assiste a muitos filmes e que ativamente procura obras específicas, mas vez por outra eu me lembrava dessa história. Esse filme é do Malick, e o vídeo fala sobre ele, então me trouxe de novo essa lembrança e novamente bateu a curiosidade de assisti-lo, então acessei um fórum de cinema onde as pessoas disponibilizam muito material e procurei pelo filme, achei uma postagem disponibilizando-o, mas fui ler os comentários e ao ver uma das pessoas que mais contribuem com o fórum (o que, na minha concepção limitada e distorcida, significa que é um cinéfilo – e as postagens dessa pessoa no fórum apontam pra isso também, vale dizer) dizendo que foi uma das experiências mais entediantes que já teve com um filme, juntando com as coisas que o vídeo traz, desisti de assistir – uma vez me permiti essa experiência de pegar um filme que as pessoas do fórum estava recomendando, um filme polonês, pensei em explorar “outras narrativas”, mas efetivamente não gostei da experiência, e na postagem muita gente estava elogiando o filme.

O Henrique iniciou a aula falando sobre a questão dos atendimentos online, das suas limitações e potências; ao mesmo tempo em que há uma perda considerável de elementos e possibilidades, essa modalidade também expande algumas possibilidades em relação a datas, horários e distâncias. A partir dessa discussão entramos nas definições de emoção e sentimento; o Henrique inicia essa questão de uma forma bem reichiana/psicanalítica, construindo as definições a partir de uma busca das origens, indo falar dos bebês, do nascimento, e de uma discussão que há entre os reichianos se o primeiro movimento deriva do medo ou da raiva. Eu certamente percebo a importância de compreendermos o nosso desenvolvimento biopsíquico, mas acho danosa essa compreensão que vai buscar nas origens a explicação para o presente; embora seja uma reflexão que eu ainda preciso desenvolver muito, tenho pensado em como os conceitos que Michel Foucault traz no texto “Nietzsche, a Genealogia e a História” (presente no livro Microfísica do Poder) podem nos ajudar na construção de uma prática clínica livre desses vícios de origem. Outra coisa que tenho pensado a partir das contribuições de Foucault é em como a sua proposta de análise do discurso pode ser utilizado como ferramenta terapêutica; embora não tenha uma relação direta, entendo que há um diálogo possível entre as considerações sobre o estudo da História e das origens que Foucault faz, a ideia da análise do discurso como o trabalho sobre a materialidade e da proposta de uma psicoterapia a partir do entendimento da integralidade da pessoa (a não divisão entre os aspectos mentais, corporais e sociais). São ideias que eu ainda desejo me debruçar sobre para pensar e desenvolver, deixá-las registradas aqui é mais um exercício de memória e compartilhamento do que a apresentação de alguma coisa pronta ou mesmo coerente.

A partir de uma pergunta de uma pessoa da turma o Henrique pediu que diferenciássemos emoção e sentimento; eu tinha colocado no chat da plataforma de videoconferência o livro “The Cambridge Handbook of Human Affective Neuroscience”, no qual sob o ponto “o que é emoção?” encontramos a seguinte ideia: “Fehr and Russell (1984) sublinham a dificuldade em produzir uma definição explícita de emoção quando escreveram que ‘todas as pessoas sabem o que é a emoção é, até que lhes peçam para dar uma definição. Então, aparentemente, ninguém sabe” (p. 464). Definições de emoção variam não apenas em função de disciplinas ou abordagens mas também através da história e culturas” (tradução livre minha). Respondendo à pergunta do Henrique, eu disse que entendo que emoção é aquilo que você experiencia mas não consegue definir, enquanto sentimento é a explicação que você elabora sobre essa experiência. No mesmo livro que citei encontramos a seguinte distinção feita por Antonio Damasio “o termo sentimento deve ser usado para descrever o complexo estado mental que resulta de um estado emocional” (tradução livre minha); nessa definição, portanto, a emoção é algo mais básico, que “dispara” outras respostas e reações, sendo o conjunto dessas chamado de sentimento. Houve dentro disso uma pequena discussão sobre a origem etimológica da palavra “Soma”, que ela viria de uma palavra que significa “túmulo” e que, por isso, ela deveria ser revista; eu achei essa questão não só desimportante, mas problemática, porque advém dessa concepção de que a explicação das coisas está na origem (olha o debate em torno do Foucault se repetindo aqui), e isso é muito comum com essas coisas de etimologia; não se trata de dizer que a etimologia é um estudo sem importância, mas de ressaltar que a língua é uma coisa viva, então dizer que uma palavra não seria adequada por conta de uma origem à qual ninguém mais se refere (ou conhece) é um equívoco muito grave. Depois o Henrique também trouxe algo que eu discordo, mas por motivos diferentes; ele marcou que a palavra “psicoterapia” traz em si a ideia de que aquilo que será trabalhado é apenas o psíquico, então que é importante utilizarmos outros termos, como “psicoterapia corporal”, “análise psicorporal” e coisas assim; eu entendo e concordo que a impressão que se causa pode ser essa, mas também penso que há uma questão conceitual importante aí, pois se entendemos que não psíquico sem corpo, que não é possível acessar um sem o outro, falar em psicoterapia já é colocar presente o corpo. Mas isso é uma questão conceitual, como eu disse, pois embora eu não me incomode com o termo psicoterapia eu recusaria o termo terapia corporal; acredito que ainda tenho que refletir sobre isso, explorar mais possibilidades, mas não é uma questão que se afigura como importante para mim no momento. Tenho pensado, no entanto, que não me entendo como um terapeuta reichiano, pois ainda mantenho pontos de discordância com a teoria de Reich e tantos outros de desconhecimento; dentro desse campo me compreendo como um analista de base reichiana, pois a minha formação se dá dentro dessa perspectiva e não tenho como modificar isso – talvez com o tempo essa base mude, mas no momento a minha formação ainda exerce uma influência enorme sobre o meu pensar e fazer clínico.

Depois disso o Henrique trouxe a discussão sobre o vídeo que ele indicou, perguntando primeiro quem havia visto o vídeo e o que as pessoas haviam pensado a partir dele; algumas pessoas trouxeram a suas reflexões a partir do vídeo, focando no que acreditavam que o Henrique objetivou trazer a partir do vídeo, e ele inicialmente disse que a ideia era trazer a discussão de que a realidade é algo maior do que o recorte que conseguimos fazer quando nos relacionamos com ela. A partir disso ele perguntou “qual é a primeira coisa que fazemos quando o paciente entra no consultório?”, e a primeira pessoa que respondeu trouxe “pede pra ele respirar”, aí o Henrique perguntou “por que?”, e a pessoa “para ver como ela está funcionando, aonde estão os bloqueios”. Depois que passaram alguns minutos eu pedi pra falar e disse como acho “doido” essa coisa que já virou jargão de “deita e respira”, porque quando você faz isso a última coisa que vai acontecer é a pessoa respirar “naturalmente”. O Henrique concordou prontamente (mais até do que eu poderia esperar), e me parece que esse era exatamente o ponto que ele queria atingir, pois foi desenvolvendo a partir disso a ideia dos perigos de engessamento que existem nos protocolos, trouxe até uma cena dos filmes do Malick para ilustrar essa ideia. Essa é uma potência que eu vejo na teoria reichiana ou, ao menos, na interpretação que fazem dessa teoria as coordenadoras do IFP, que coloca a ênfase na construção da relação; nessa aula isso apareceu na fala do Henrique nessa crítica à adoção rígida de protocolos pormenorizados, que segundo ele deve ser abandonada em nome da construção de uma relação. E isso também está, efetivamente, no próprio Reich, quando ele diz que a técnica para cada caso emergirá do próprio caso.

Na volta do intervalo, enquanto as pessoas ainda voltavam, falamos um pouco sobre o silêncio terapêutico, aquele momento aonde o paciente não fala nada e como o terapeuta lida com isso; como estávamos em um clima descontraído, eu brinquei que não imaginava o Henrique sustentando um momento de silêncio – todas as vezes que ele fez alguma pergunta e ninguém falou nada por mais de 10-20 segundos ele interrompia esse silêncio, e muitas vezes interrompia justamente falando algo como “eu adoro o silêncio”. O interessante na clínica psicorporal é que esse momento de silêncio ainda estará preenchido de informações relevantes para a relação terapêutica, permitindo um aproveitamento desse momento por outras perspectivas; eu já vivi um momento interessante nesse sentido atendendo por telefone, pois a pessoa “fugiu” de uma pergunta que eu fiz dizendo “qualquer coisa” e eu fiquei aguardando, devemos ter ficado mais de um minuto em silêncio, até ela me perguntar o motivo de eu estar em silêncio – imagino que se fosse uma sessão presencial eu teria muitos outros elementos para analisar, mas justamente o fato de ser por telefone que me permitiu perceber um recorte transferencial nessa pergunta, final a pessoa também estava em silêncio, mas o seu incômodo me colocou no lugar da pessoa responsável por ele.

Depois dessa pequena conversa sobre o silêncio na terapia, o Henrique entrou no texto que ele nos indicou para leitura, que é um artigo sobre a experiência dele com o uso de fotografias dentro do processo. Pelo que ele apresentou, a ideia é trabalhar com fotografias pessoais dos pacientes, usando-as como elemento iniciador de relatos, pedindo que os pacientes contassem a história por trás daquela foto. Ele salientou que é interessante perceber como a partir de uma mesma fotografia, em momentos diferentes histórias diferentes surgem, outras relações são construídas; aqui é um ponto que, para mim, evidencia a importância do estudo sobre memória para o fazer-se analista, pois a memória é um elemento central no trabalho clínico. Dentro disso em algum momento surgiu uma pergunta de alguém da turma sobre a diferença entre “traço de caráter” e “caráter”, e embora na própria formulação da pergunta a pessoa já tenha mostrado que compreendia suficientemente essa distinção (certamente para uma compreensão mais profunda é preciso entender o conceito de caráter para Reich, como ele forma e se desenvolve), mas mesmo assim o Henrique devolveu a pergunta para a turma, perguntando inicialmente para as alunas que ele identificava como mais antigas, até que chegou em mim, ao que eu disse que a diferenciação era mesmo aquela que a pessoa havia intuído, de que o caráter é um todo e que os traços são partes que constituem esse todo, acrescentando também que uma diferenciação importante é aquela entre traço de caráter e sintoma, pois o primeiro, por fazer parte da personalidade da pessoa, não é (inicialmente) percebido como um problema, enquanto que o sintoma é percebido enquanto algo ruim. No diálogo que se seguiu uma pessoa trouxe uma construção que já vi sendo nutrida no IFP mas que entendo como problemática: “então eles [os traços de caráter] são ao mesmo tempo defesa e também são potências de desenvolvimento para um lado oposto que o caráter leva a pessoa; por exemplo, da questão do caráter obssessivo e você levar a pessoa para uma flexibilização que vai em direção ao histérico, nesse sentido né, de maior abertura, maior fluidez”. A fala do Henrique logo após essa endereçou bem a questão, embora eu pense que com menos ênfase do que se faz necessária: “você estar em um caráter obssessivo não é saudável você ir para um caráter histérico, tá, ambos são construções neuróticas não saudáveis”. Entendo que essa concepção equivocada deriva de uma interpretação da proposta de desenvolvimento psicossexual proposta por Freud e endossada por Reich que, neste, propõe que havendo uma direção nas fases do desenvolvimento psicossexual saudável (fases oral, anal, fálica e genital) são de pior prognóstico terapêutico os caráteres que se assentam nas fases anteriores desse desenvolvimento (uma pessoa masoquista, de caráter oral, em princípio seria de pior prognóstico do que uma obssessiva, de caráter anal, que por sua vez seria de pior prognóstico que uma pessoa histérica, de caráter fálico). Da mesma forma que considero um equívoco acreditar que você vai construir uma sociedade libertária através de ferramentas autoritárias, considero um equívoco acreditar que você vai construir saúde causando doença. Certamente essa não é uma discussão simples de ser feita (podemos pensar na quimioterapia para trazer problematizações, por exemplo), mas penso que é importante refletir sobre isso.