13 de dezembro de 2020 – quinta aula de Reich e Conexões Contemporâneas

Seguindo o modelo desse curso, nessa aula continuamos com os capítulos do livro “Reich, Grupos e Sociedade”; como também costumo fazer nos relatos, acho que uma boa introdução da aula são os parágrafos iniciais de cada capítulo, que fazem uma espécie de introdução do mesmo – nesse capítulo, em especial, a coisa é bem bonita:

Apesar de todas as forças contrárias, descortina-se o coletivo. Lá estão seus elementos: o inconsciente, o drama, a consciência, a contestação da onisciência, a unidade psique-soma, as instituições, a fraternidade e tantos outros. É, exatamente, no seio da construção, manutenção e exacerbação do individualismo, que surge o sonho, a utopia social sem pai, nem patrão.

Esta nova onda força a passagem, escapa aos controles conservadores, produz histórias esperançosas de um mundo melhor pautadas na via dos direitos e dos deveres comuns. Ações comunitárias destituídas da subserviência ao Estado e ao poder econômico. Existe um frescor no ar. Traçados solidários agenciados Por grupos – veículos do inusitado: o nós vale mais do que o eu. E se vai mais além: há que se ultrapassar o nós e ir questionar lá onde tudo é produzido, onde as subjetividades são agenciadas.

No entanto, tamanha força que esmaga o sujeito individual guarda um certo ranço totalitário. Desconsiderar a individualidade não é a melhor forma de combater o individualismo, ao contrário, só o faz cada vez mais forte. São necessários novos tempos, espaços e dobras. Desse modo constitui-se o lugar que Reich e outros podem ocupar: produção da articulação entre a auto-regulação pessoal e a autogestão social. Para isto a atualização dos conceitos reichianos, inspirados em outros saberes, é indispensável. Assim como também o é toda vida que quer ser vivida ao máximo, em conjunção com outras tantas vidas”.

A ideia da aula/capítulo é trazer uma compreensão teórica de como alguém que trabalha com psicoterapia de grupo intervém dentro do grupo. O Marcus Vinícius iniciou falando como da época em que escreveu o livro era mais comum que as pessoas fizessem psicoterapia de grupo, mas o crescimento do individualismo em nossa sociedade teve como uma das suas consequências as pessoas procurando cada vez mais psicoterapia individual, chegando no cenário atual em que é muito raro que existam grupos psicoterapêuticos. Não é um movimento linear, certamente existem forças para um lado e para o outro, movimentos de ida e de vinda, mas o que ele relata da sua experiência é que esse movimento de escassez da psicoterapia grupal. Trabalhando as formas de intervenção, primeiro ressaltou a ideia de que existe a “Psicanálise no grupo” (escola americana, Shilder e Slavson), uma abordagem que se preocupava principalmente com os indivíduos que compõe o grupo, como se fosse uma terapia individual dentro de um grupo. Outra possibilidade de abordagem (escola inglesa – Bion, Foulkes e Shuterland – e da América Latina – Grimberg, Langer, Rodrigué) seria aquela da “Psicanálise de grupo”, que partem do entendimento de que o grupo é uma unidade, como se “o paciente fosse o grupo”. Essa divisão não significa que essas coisas são estanques durante o processo, não se pode efetivamente tratar seja o grupo ou sejam os indivíduos de forma isolada; é sempre importante lembrar que nesses casos de grupos terapêuticos a ideia de que “o todo é maior do que a soma das partes” é completamente válida. Um trabalho psicanalítico em grupo deve partir da compreensão de que uma identidade de grupo irá se formando, e acompanhar essa formação é uma tarefa importante da terapeuta; por exemplo, certamente durante o processo terapêutico resistências individuais emergirão, mas também emergirão resistências grupais, que não existem em nenhum daqueles indivíduos separadamente mas que surge da dinâmica própria daquele grupo. Um grupo clínico, que foi formado para o trabalho terapêutico, traz uma característica muito interessante para pensarmos conceitualmente o trabalho psicanalítico – um grupo assim formado não possui história (no sentido em que se diz que na Psicanálise a transferência será resultado da projeção de elementos da história do paciente sobre a terapeuta). Por conta dessa particularidade, o trabalho psicanalítico em grupos se concentra muito mais no “aqui e agora”, nas coisas que efetivamente estão acontecendo durante o encontro; essa ideia me faz lembrar de duas coisas. A primeira é a proposta de Gestalt terapia, pois a ideia, até onde compreendi, é justamente essa, de lidar com o aqui e agora (existe um vídeo ótimo sobre isso, um programa de televisão cuja proposta era apresenta três abordagens psicoterapêuticas, e uma delas é a Gestalt, na figura de seu criador, Frederick Perls; nela vemos como o foco do terapeuta é completamente voltado para o “aqui e agora”: https://www.youtube.com/watch?v=DRcszf0n6ig). A segunda coisa que me lembrei foi das aulas de Análise do Caráter I, em meu primeiro semestre na formação, em que o professor disse que o principal no processo terapêutico é aquilo que o paciente experiencia com você na relação; claro que dentro da concepção caractero-analítica a ideia de transferência é central e certamente a hipótese é de que aquilo que estará sendo experimentado na sessão terapêutica é uma atualização de elementos infantis. Perls, que insiste na centralidade do presente momento na análise, foi paciente de Reich, e isso certamente nos permite pensar um pouco em como a experiência que teve em seu próprio processa analítico contribuiu para a formulação da sua proposta terapêutica. Não sei se já apresentei isso em algum outro relato aqui no blog, mas embora ainda seja um pensamento muito primário e que ainda preciso me debruçar para ver se realmente vale a pena o desenvolvimento, mas eu penso que a proposta de Análise do Discurso de matriz foucaultiana pode (e deve) ser utilizada como ferramenta psicoterapêutica; uma característica dessa abordagem, talvez a sua central, é de que ela não se presta a procurar significados ocultos por trás do discurso, não por dizer que eles existem ou não existem, mas porque se ocupa do discurso em sua materialidade, trabalhar com o discurso que se pode efetivamente conhecer e, a partir disso, buscar conhecê-lo. Acho que essa lógica é muito potente dentro de um trabalho psicoterapêutico de cunho analítico: não se trata de dizer que há ou não um complexo de édipo em todas as pessoas, mas sim de observar aquela pessoa que está ali na sua frente e lidar com ela, não com o que já se traz de suposto do que ela é. Em algum momento no futuro eu pretendo desenvolver melhor isso, e tenho segurança de que o arcabouço teórico da Gestalt terapia me será útil também para pensar nessa questão.

Com o amadurecimento do trabalho, o grupo irá caminhando para a autogestão; um exemplo pode ser a necessidade de que no início a terapeuta intervenha muito no sentido de garantir que as falas não se atropelem e de que todas sejam ouvidas, mas com o desenvolvimento do trabalho o próprio grupo já adota uma lógica de operação que respeita as falas de todas. Um autor que também trabalha com grupos, Max Pagès, coloca que as questões sociais e políticas atravessarão necessariamente o grupo, não é possível um grupo não ser atravessado pelo seu contexto, então é importante que a terapeuta esteja consciente disso em seu trabalho; no atual momento do Brasil, por exemplo, será importante ter em conta o cenário político-social, de recrudescimento do conservadorismo e fortalecimento das instâncias autoritárias em nossa sociedade. Conforme a identidade do grupo vai se formando, começam a surgir desejos que são do grupo (novamente, o todo é maior do que a soma de suas partes) e não apenas do indivíduo, e essa é uma ferramenta importante para a terapeuta, pois o desejo do grupo, não sendo o desejo dos indivíduos, se relacionará com cada pessoa de uma forma diferente. O trabalho com a autogestão dos grupos coloca Pagès contra a ideia de condução de consciência dentro dos movimentos de esquerda, algo que eu vejo bem comum dentro dos coletivos de matiz marxista – a ideia de que ha de se ter um lider, um coletivo, um partido, uma vanguarda, que lidere “as massas”, que as conduza para um caminho que é o correto e que elas mesmas não poderiam identificar sozinhas – essa é uma noção autoritária que muitos grupos bem intencionados acabam por adotar em nome de um pragmatismo do tipo “tem que ser feito, se não nada acontece”. Essa é uma concepção perigosa e desastrosa, pois quando falamos em autogestão temos que concordar com Parmênides: ou é ou não é, não existe meia autogestão; então todo caminho que não seja o desenvolvimento da potência de vida das próprias pessoas envolvidas no processo, todo movimento que crie poder ao invés de destruí-lo, não poderá resultar em maior autogestão – exemplos abundam na história.

Depois o Marcus Vinícius falou sobre o Psicodrama; eu acho essa uma abordagem muito interessante e sobre a qual eu tenho vontade de conhecer mais, e como o trecho do livro que fala sobre o Psicodrama é constituído de apenas três parágrafos, acho mais interessante reproduzí-lo aqui:

Jacob Levy Moreno é o fundador do psicodrama (Schützenberger, 1970). São temas do psicodrama: o diálogo, a inversão de papéis, a espontaneidade, o encontro (telé), a interação direta entre os atores e o drama. O método moreniano de psicodrama segue a linha da encenação teatral respeitando a demanda de uma ou mais pessoas do auditório, com a participação deste último. São componentes essenciais do psicodrama: o palco, o protagonista, o diretor (terapeuta, analista e diretor), os egos-auxiliares (assistentes de direção ou auxiliares do protagonista quando representam pessoas de seu meio), o público. Há uma fase de aquecimento, depois a de ação com a utilização de inúmeras técnicas psicodramáticas, entre elas: a apresentação pessoal, o solilóquio, a técnica do doublé, do espelho, a inversão de papéis etc. Nesta etapa se faz ‘como se’, mas não se finge. As ab-reações advindas da encenação são em uma terceira fase analisadas, comentadas e assim se presentifica a elaboração dos conteúdos emocionais em uma sessão de psicodrama.

A dinâmica grupal no psicodrama permite reviver ali no palco o que se passou lá, em outro lugar. O sentido do encontro humano, da solidariedade e da compreensão são reafirmados a cada instante. O auditório, por exemplo, constrói um novo lugar concreto, inexistente na terapia bipessoal (terapeuta-paciente individual), o que propicia uma outra dimensão à terapia. Os temas significativos a cada grupo são trabalhados de acordo com a demanda grupal e geram recriações de vida em cada participante.

Em que pese a sua importância, uma crítica que se pode fazer é quanto à inexistência de trabalhos sobre os conteúdos sócio-políticos no Psicodrama. Parece que a ação psicodramática abarca menos as ‘relações sociais’ (entre as classes sociais, por exemplo) sob a concepção sócio-histórica e mais as ‘relações interpessoais’ (entre pessoas tidas como a-históricas)”.

Depois dessa passagem pelo psicodrama, o Marcus Vinícius entrou na Gestalt-terapia falando da linha existencial-humanista; para exemplificar o caminho que essa abordagem toma, cita uma frase de Sartre, existencialista: “o homem está condenado a ser livre” – ou seja, dentro da Psicologia, o movimento existencialista coloca em cena a capacidade do indivíduo de fazer escolhas, ao contrário da Psicanálise, que vai dizer que “somos frutos das nossas pulsões inconscientes, na maior parte das vezes, somos levados pelo nosso inconsciente, que não temos consciência disso. Disse que para a Gestalt o ponto central é a conscientização daquilo que a pessoa está vivendo e sentindo, elemento que torna possível uma aproximação com a valorização do “como” na análise do caráter reichiana. Perls, inicialmente, era psicanalista, mas conforme vai desenvolvendo o seu pensamento abandona essa abordagem em direção à criação da Gestalt-terapia, que se aliando mais a um referencial existencial-humanista deixa de trabalhar com a noção de inconsciente e se concentra nas experiências concretas e presentes da pessoa em terapia. Um resumo do posicionamento de Perls sobre a terapia em grupo pode ser encontrado no livro “Gestalt e grupos: uma perspectiva sistêmica” de Thérèse Tellegen:

Foi em 1966 que Perls se posicionou publicamente em relação à psicoterapia de grupo, em conferência proferida para a American Psychological Association. Nesta conferência, intitulada Terapia Individual versus Terapia de Grupo, ele colocou: ‘Durante algum tempo tentei resolver este conflito em Gestalt-Terapia, pedindo aos meus pacientes que se submetessem à ambos. Ultimamente entretanto, eliminei totalmente as sessões individuais, exceto nos casos de emergência. De fato, cheguei à conclusão de que toda terapia individual é obsoleta. (…) Em meus workshops agora integro o trabalho individual e grupal. Entretanto, isto somente tem resultado com o grupo, se o encontro do terapeuta com o paciente individual dentro do grupo for efetivo’. (…) Mais tarde, Perls foi mais longe, dizendo: ‘Agora estou começando aos poucos a perceber que os workshops e a terapia de grupo são obsoletos, e no ano que vem vamos dar início ao primeiro gestalt-kibutz (…) A divisão entre a equipe terapêutica e os participantes será superada. O principal é o espírito de comunidade propiciado pela terapia. Vamos chamá-la assim por enquanto, na falta de uma expressão melhor’”

Depois ele entrou na abordagem da Análise Institucional com grupos; a primeira questão que traz nessa abordagem é a utilização do conceito de agente coletivo de enunciação, segundo ele “uma articulação que seja coletiva e que se expresse ao mesmo, grupos em que as pessoas se relacionam se articulando e criando possibilidades outras que não somente grupos sujeitados (ao próprio sistema), ou seja, criar grupos que sejam muito mais grupos-sujeito, ou grupos-dispostivos (que acionam alguma coisa), e não grupos sujeitados”. O grupo-sujeito seria aquele que tem capacidade de interpretar aquilo que ouve, de criar e não apenas de repetir, de intervir e não apenas de reagir. A proposta aqui então é muito centrada no desenvolvimento da autogestão do grupo, de que o caminho terapêutico seja um de desenvolvimento dessa capacidade autogestionária e criativa do grupo. A fala toda sobre a abordagem da Análise Institucional sobre os grupos se pautou nessa ideia, passando por conceitos como cartografia (o mapa sempre em construção, sempre se adaptando às mudanças do ambiente), potência (que não é poder), e outros; minha impressão é que também foi muito marcado por um certo cansaço, as coisas acabaram não sendo muito bem desenvolvidas, também por conta do horário que já avançava, então havia uma certa pressão de “fechar o capítulo” – essa impressão se reforçou com a continuidade da aula, pois os próximos pontos, como o trabalho com grupos comunitários, também teve esse tom de mais pressa e menos desenvolvimento do que se ofereceu no início da aula. Por fim, invertendo um pouco a ordem do capítulo, veio uma exposição sobre o trabalho de Reich com grupos; embora ele nunca tenha escrito nada sobre o trabalho analítico em grupo, é muito importante em sua vida e obra a sua atuação na Sexpol, o grupo de trabalho com a questão sexual (contracepção, aborto, educação sexual, masturbação etc.) que ele desenvolveu.