12 de dezembro de 2020 – quinta aula de Orgonomia

Percebendo que havia pouca participação nas aulas, no fim do encontro anterior o Nicolau pediu que as pessoas lessem um de seus textos e trouxessem questões para essa aula, que a aula seria toda baseada nessas questões. Durante a aula ele comentou de um outro texto e disse que poderíamos utilizar ele para trazer as questões também, então algumas pessoas já pesquisaram na internet pelo texto e acabaram encontrando outro, que ele disse então que poderia também ser utilizado para levantar as questões. Esses textos são “Dialética, Complexidade e Funcionalismo Orgonômico: Engels, Morin e Reich”, “Resistência Caracterológica, Defesa Biofísica e a Aplicação Do Princípio Crânio–Caudal Na Clínica Orgonômica (Reichiana)” e “Wilhelm Reich: Psicanálise, Corpo e Ciência”. Como os três são textos curtos, acabei por ler os três e anotar algumas questões que achei interessante de explorar em aula, colocando em um arquivo de texto e salvando no diretório do curso que tenho em meus documentos no computador. Mas na semana da aula, revisitando e pensando nessas questões, me ocorreu que possivelmente eu seria uma das poucas pessoas, talvez três ou quatro, que levariam questões para a aula, e pensei que isso seria ruim pois acabaria “fazendo a aula acontecer” apesar disso, ao invés do que eu acho ser o certo, que seria discutirmos as causas, motivos, razões e circunstância disso acontecer dessa forma. Por conta disso, então, enviei um e-mail para o Nicolau com as questões que eu havia anotado, falando para ele que por conta dessa possibilidade se ser um dos poucos a formulá-las, preferia me manter em silêncio durante a aula, e que se ele achasse relevante poderia utilizar as questões que eu enviei como uma forma de conduzir a aula. Acabou que no dia do curso eu não fui um dos únicos que elaborou as questões, fui o único, e então a minha intenção, como havia dito, era permanecer em silêncio e ver qual seria o caminho que a turma (alunas e professor) iria tomar em relação a essa questão; não deu certo, pois o Nicolau de pronto anunciou que eu havia enviado questões e me perguntou se eu não queria lê-las para que nós trabalhássemos em cima delas.

Por bem iniciamos com duas pessoas trazendo questões, mas que não se relacionavam diretamente com os textos; uma delas, inclusive, eu devo dizer que não compreendi o ponto que a pessoa estava desejando trazer – como uma pessoa falou no chat, aparentou mais ser uma daquelas “perguntas” aonde a pessoa pega o espaço-tempo de fala para apresentar um ponto. Não que eu tenha nenhum problema específico com isso, embora em alguns eventos isso seja utilizado de forma abusiva, mas é que aqui nessa aula eu realmente passei ao largo de entender a necessidade do longo preâmbulo que a pessoa fez para trazer o seu ponto, que me pareceu ser fazer um questionamento da “prática meramente intelectual” da orgonomia; um bad timming, na minha opinião, trazer isso em uma aula onde a proposta de atividade “meramente intelectual” requerida não foi feita por ninguém – a crítica é sempre importante e sou um defensor em todos os espaços que ela seja não só praticada, como exercitada, mas criticar uma “atividade meramente intelectual”, um estudo de um tema, fazendo uma crítica meramente intelectual, que não se apoia em uma materialidade oferecida, me parece complicado. Eu cheguei a falar disso numa pequena reunião que algumas pessoas fizeram após a última aula, pois as pessoas estavam apresentando desconfortos e críticas à aula (muitos dos quais eu acho completamente legítimos); eu disse então que deveríamos passar dessa catarse para uma organização dessas questões, e que ele pedir que questões fossem trazidas para a próxima aula (essa presente, no caso) era uma ótima oportunidade para que as pessoas construíssem a aula de uma forma mais interessante, e que o contrário, não trazer as questões, não nos deixaria no mesmo lugar, mas sim criaria esse marco de “a chance foi dada e a turma continuou na postura de não estudar”.

A partir de uma pergunta sobre qual seria a importância desse curso para a prática clínica, o Nicolau fez um resumo de como a partir do seu trabalho como psicanalista Reich chegou à postulação da energia orgone. Psicanálise: interpretar o inconsciente – passo 1. Passo 2, Freud, não dá pra interpretar o inconsciente direto porque tem resistências, resistências inconscientes, tem que trabalhar as resistências antes de interpretar conteúdo ideativo. Como é que faz isso, ah, quando tiver maduro você interpreta. Reich entra em cena, examina o conjunto das experiências clínicas que não deram certo no Seminário de Viena nem nos outros analistas, vê que não existe, fica estupefato que não existe uma teoria da clínica, cada um opina ‘ah, você devia ter feito isso’, ‘não, você faz aquilo outro’, não tinha um porque. Por que que deve ser feito isso e não aquilo? Então ele vai construir uma teoria da clínica, o Reich constrói uma teoria da clínica, uma teoria da clínica no sentido de um estruturação; aí ele chega à seguinte conclusão: pra cada caso existe uma maneira, e não outra, de abordar. Qual é essa maneira? Ou seja, não tem dez opiniões diferentes, tem uma, não outra. Qual é essa maneira? Essa maneira é, a partir da postulação da resistência observar o que é resistência e observar o que resistência também é caráter, jeitão do paciente, o conceito de caráter já existia antes, mas o caráter, herdado como uma coisa cristalizada e então secundária, o Reich vê que não, caráter é um conjunto dinâmico de forças, ele está lá atuante. O que que é caráter? Caráter é o conjunto de impulsos recalcados mais o conjunto de defesas contra esses impulsos, e por que que existe defesas contra o impulso? Pra manter a integridade do ego. E esse conjunto de defesas mais esse conjunto de impulsos implica na utilização de forças, não é só num plano de valor ou num plano simbólico, são forças estruturais. O que que é caráter? Caráter é o jeitão que predomina. Se o fulano é obssessivo, se o fulano é oral, se o fulano é fálico-narcisista… isso não quer dizer que ele não tenha outras características, quer dizer que ele tem uma que predomina. Aí o Reich percebe, primeira colocação, primeira questão, que eu formulei acho que na primeira aula, que é: o que deve ser feito prioritariamente, interpretar o inconsciente, torná-lo consciente, ou mudar a estrutura libidinal? Interpretar o inconsciente não funciona; porque que não funciona, simplesmente, mesmo quando se trabalha no patamar freudiano resistências, por que que não funciona? Porque não tem acesso ao conteúdo, ao entendimento de caráter, que é o conjunto de forças. Não funciona por quê? Porque o analista pode perceber o impulso recalcado, pode perceber a defesa dentro do impulso, ele aborda isso não acontece nada? Por quê? Porque o conjunto não é forte, o conjunto mantém o equilíbrio neurótico. Estamos falando todo o tempo do referencial energético. E por que que a análise do caráter funciona? Bom, funciona desde que eu reconheça corretamente qual é o caráter. Funciona por que, uma vez que eu reconheço corretamente qual é o caráter, é como um castelo de cartas, aí eu posso acessar, eu posso trabalhar a resistência que se expressa no caráter; o caráter não é só a totalidade, o caráter é um jeito específico que predomina. Então quando eu faço isso, aí eu mobilizo o equilíbrio energético – o que que é mobilizar o equilíbrio energético? A defesa não tem tanta força, o impulso ganha força, mexe no equilíbrio energético, tem uma certa quantidade de energia que a defesa estava utilizando que ela não consegue utilizar mais, aí os impulsos ganham forças, vou ter aí em paralelo, tem um acumulado que o Reich chamou de estase, que diz que produz ansiedade, mas a energia caminha em direção à genitalidade. Aí vem um segundo momento, não só de eficácia da clínica mas de valorização do referencial freudiano do desenvolvimento psicossexual; qual é essa valorização? No momento em que ele está trabalhando com análise do caráter surgem (…) antes do trabalho corporal surgem reações corporais que são interessantes, reações neurovegetativas, né, varia desde tontura, ânsia de vômito, até tremores, formigamento, vasoconstrição, vasodilatação, e o paciente está trabalhando deitado, é importante lembrar disso. (…) Essas reações neurovegetativas elas eram conhecidas na Psicanálise, isso era chamado de acting out, atuação, e qual o conceito de atuação na Psicanálise? É quando as defesas agem no sentido de impedir conscientização via descarga motora direta. Fecha um curto-circuito no sistema pra não deixar a pessoa se tornar consciente do impulso reprimido, do desejo reprimido e proibido portanto. Mas o Reich observa, ele não toma a priori isso como absoluto, e aí essas reações neurovegetativas em alguns pacientes se desenvolvem num nível mais forte em reações involuntárias mais fortes, até que em alguns pacientes (…) isso chegaria a uma forma convulsiva e serpenteante que o Reich chamou de ‘reflexo orgástico’ dada a forma evidente desse reflexo – para isso não significa que a pessoal estivesse sexualmente excitada naquela hora porque isso não era necessário. Aí o Reich vê uma comprovação da teoria freudiana, da etiologia sexual das neuroses, né [inaudível, falha na conexão] na construção da personalidade a sexualidade, a erogenidade é um elemento muito importante, né, a criança não mama só, no sentido de colocar comida pra dentro da barriga, ela satisfaz um desejo, ela satisfaz uma estimulação erótica que ao ser satisfeita dá prazer e deixa um registro mnésico, deixa uma representação da satisfação oral, que pode surgir anos depois como alcoolismo, se a coisa for mal-resolvida, ou como fome de conhecimento, pra fazer um salto pelo ar. Muito bem, desse momento do reflexo orgástico aí sim começa um salto quântico, é que agora por mais polêmico e amplo que seja o conjunto das observações e postulações, está dentro, de um determinado campo ainda. Qual é o salto que o Reich faz nesse momento? Ele examina o reflexo orgástico e vê lá uma [inaudível, falha na conexão – ‘fórmula’, talvez] da vida, ele imagina que há um algoritmo ali presente, que há um elemento central ali que é central não só no orgasmo mas é central no funcionamento da vida como um todo. Aquela pulsação que está presente em basicamente os funcionamentos involuntários do corpo, ela é um elemento central daquilo que diferencia o orgânico, vivo, do não orgânico; aí qual o salto quântico que ele faz, nesse sentido? Vai fazer experimentos de laboratório, vai pegar esses quatro tempos e submeter certos elementos a essa fórmula e ele encontra os bions – que agora vou correr aqui senão vou passar a aula inteira falando sobre isso. Os bions, por sua vez, tem característica que o levam a pensar que ele encontrou uma forma embrionário entre o vivo e o não vivo, mais importante ainda do que isso, os bions tem uma radiação. Essa radiação que o Reich tenta isolar usando uma caixa Faraday a princípio, daí observa fenômenos luminosos, daí ele faz um acumulador, e daí ele postula sobre a existência da energia orgon como uma energia mais primordial do que as quatro forças”.

Quando essa mesma pessoa pediu um exemplo prático, clínico, que só pudesse ser explicado pela questão energética da orgonomia e não pelos pressupostos da vegetoterapia, o Nicolau trouxe um exemplo de uma paciente que na primeira consulta tirou a roupa, e quando ele perguntou porque ela havia feito isso ela apenas respondeu que não tinha nenhum problema com o próprio corpo e que trabalharia daquela forma; disse ele que “assim que ela começava a respirar entrava em convulsão orgástica, mas perfeitinha. ‘Puxa, veja só um caráter genital aqui na minha frente’”, mas que ela sempre fazia essa respiração e convulsão o fazia com os olhos fechados, e quando ele pediu para ela abrir os olhos ela disse que não havia necessidade, resistindo ao pedido, e que quando finalmente abriu os olhos foi tomada por uma crise de ansiedade, sensação essa que nas próximas sessões começou a surgir logo que atravessava a porta do consultório; nunca mais tirou a roupa nas sessões e em pouco tempo se filiou a uma seita que não permitia que ela ficasse sozinha em uma sala com um homem, o que a levou a interromper o processo terapêutico. Eu acho esse exemplo (que ele já utilizou em outras aulas) muito interessante, ele certamente traz muita coisa para pensar, seria certamente um caso instigante de ouvir ou ler mais a respeito, e eu não duvido que tudo possa ter se passado exatamente como o descrito. No entanto, esse caso não respondeu à questão colocada, pois nada do que foi descrito precisa que se postule a existência de uma energia como a ideia do orgone; certamente que o referencial orgonômico oferece explicações para algumas das questões que surgem nesse caso, mas elas só são explicações se se aceita a postulação de que existe tal energia – usar um exemplo para sim buscar provar ou demonstrar que o orgone existe é incorrer em uma petição de princípio. A pessoa insistiu que essas questões não precisavam do arcabouço da orgonomia para serem compreendidas, pois o referencial da vegetoterapia já daria conta de explicar esses fenômenos; aqui eu discordo, não no sentido de que isso não acontece, mas de que o motivo para se negar uma explicação deva ser o fato de você possuir uma outra explicação mais simples para aquele fato – certamente o princípio da Navalha de Occam tem sido valioso para a construção do conhecimento até aqui, não estou buscando negá-lo. A questão é que esse tipo de raciocínio pressupõe que algo está correto se cria um modelo cognitivo para compreender alguma coisa, sem avaliar antes a validade desse modelo. Se o exemplo fosse de transmissão de pensamento (e vamos ver um exemplo bem próximo disso adiante), certamente o referencial vegetoterapêutico não seria suficiente, enquanto que as propostas da orgonomia fornecem um modelo que permitiria explicar o que se acredita ser um fenômeno. A questão, no entanto, é saber se esses referenciais fazem sentido com a realidade; a teoria geocêntrica deu conta de explicar várias em sua época, mas isso não faz dela algo correto – como sempre insisto aqui nos relatos, procurar elementos que confirmem a sua hipótese vai muito provavelmente nos levar a encontrá-los. Quem quer elementos que confirmem que a Terra é plana, que a posição das estrelas no nascimento da alguém influenciam sua personalidade, que água tem memória, que vacinas causam autismo, que 5g causa Covid-19, que deuses existem etc. vai encontrá-los. A história registrada que temos, muito pouco perto do que efetivamente é a história da nossa espécie, possui inúmeros casos de pessoas admiradas por coisas que consideram só poder ser explicadas por elementos místicos, e muito disso sempre passa por essa ideia de que existe uma energia livre de massa, que pensamentos são algo transmissível, que existe uma alma, e sempre essas coisas são defendidas com variações da frase “eu vivi isso” – mesmo que tenhamos estudos e demonstrações em número invulgar de como nossa mente funciona de forma a nos fazer ignorar a realidade.

Como a pessoa insistiu (muito adequadamente, na minha opinião) na sua questão, o Nicolau trouxe um outro exemplo: disse ele que tinha uma paciente com “condição pré-psicótica”, com a qual se instalava um silêncio durante uns 5-10 minutos da sessão, e que toda vez que ele a via não conseguia se lembrar do que haviam conversado na sessão anterior, a ponto dele cogitar que estava tendo uma reação constratransferencial muito forte em relação a ela; o que ele percebeu foi que esse período de silêncio se encerrava quando o estômago da paciente emitia um ronco muito alto, então o dele também, e ela começava a falar, e disso ambas lembranças voltavam. Aqui, a ideia é que esse ronco do estômago compartilhado “coincidir” com a rememoração das questões tinha que ver diretamente com características postuladas por Reich dessa energia orgone. A questão, que imagino que deva ser evidente para qualquer pessoa, é que essa é uma anedota tentando fazer as vezes de prova de algo; vamos supor mesmo que tudo aconteceu da forma que foi relatado – qual a base que temos para atribuir relação de causa e efeito entre essas coisas? Só se está plenamente convencido de que há uma energia atuando nesse “ronco estomacal compartilhado” quem já acredita que há uma tal energia.