12 de dezembro de 2020 – quinta aula de Seminários Clínicos

Nessa aula, discutimos o livro “O Normal e o Patológico” de Georges Canguilhem; essa leitura nasceu de um questionamento que uma pessoa fez em uma aula anterior baseando-se nessa obra, e então o Henrique disse que não havia lido o livro e propôs que em uma aula essa pessoa então trouxesse uma apresentação das ideias do livro e que centrássemos a aula na discussão dessas ideias. Uma versão digital da obra pode ser encontrada nesse link: https://we.riseup.net/assets/695274/O+Normal+e+o+Patolo%CC%81gico+Georges+Canguilhem.pdf

Achei um livro muito interessante, a começar mesmo pelo seu contexto/história. Georges Canguilhem já era formado e professor de Filosofia quando foi cursar medicina (não sei exatamente se foi se graduar ou já foi buscar o doutoramento nesse momento), e esse livro é resultado da sua tese de doutorado em medicina. É muito interessante perceber o impacto que isso tem na obra; a pegar pela temática, ele está se doutorando em medicina, produzindo uma tese, um trabalho que possui necessidade de originalidade (na tese de doutorado, ao menos aqui no Brasil, você deve apresentar uma ideia nova ao corpo de conhecimento da sua área), e não está investigando uma nova doença, nem uma nova técnica cirúrgica, nem um novo remédio – ele está se debruçando sobre o conceito mesmo de patologia na história da medicina, e propondo uma forma de se entender essa ideia. Acho que só por isso já é um livro fundamental de ser lido; seria ótimo que houvesse uma “versão resumida”, ou então um “livro do livro”, pois em muitos pontos a discussão fica técnica e específica demais, o que torna desinteressante a leitura a quem não tem interesse especial na coisa médica – assim, penso que seria ótimo poder espremer esse livro e ter em mãos o suco que mostrasse a importância da discussão de ideias, da reflexão e do pensamento, mesmo sobre algo que consideramos tão óbvio e evidente como o conceito de doença, e como isso pode afetar a prática de algo que consideramos tão pragmático como a medicina.

Canguilhem vai mostrar que se pode perceber na história da medicina duas ideias gerais de doença: em uma, se considera que a doença é uma alteração de quantidade daquilo que se compreende como normal (a febre seria mais temperatura, a dispepsia seria menos ácido gástrico); outra compreende que a doença é uma coisa outra que o normal, algo que tem uma ontologia própria (o verme que trás uma doença, a gripe que é trazida pelo vírus).

+- 33:30 Pessoa 01 “Só pra ver se eu entendi bem, assim, que eu concordo com vocês que o Canguilhem é muito difícil de ler, assim, de compreender, eu li na graduação também, terceiro período, fui pegar agora de novo e deparei com coisas que eu estou estudando no mestrado [inaudível] e aí alguns trechos ficou pra mim parecendo… ah, eu não sei se eu entendi se a Pessoa 02 está criticando a questão do que que o Reich chama de normal, se ele está fazendo uma comparação… pelo que eu entendi, eu achei muito parecido até com o que o Reich propõe, por exemplo o Reich fala de um equilíbrio neurótico, né, que vai ser aquela forma quando o equilíbrio energético é afetado e ele passa a funcionar de uma nova norma, né, como diz o Canguilhem, que é uma norma neurótica, é um desequilíbrio que o indivíduo achou… né, as couraças protegem e inibem, elas tem uma função ali de proteção daquele indivíduo na sociedade, então é mais ou menos o que a doença faz, é… a doença, como a Pessoa 02 falou, não é uma… não é feito de algo metafísico, do mal sobre a gente, a doença ela e tão normal quanto… o estado de doença é tão normal quanto o estado de saúde. Só que [inaudível] achou pra sobreviver, que é um… pelo que eu entendo Reich, pelo que eu [inaudível] na minha interpretação, de certa forma ela vai considerar os caráteres como novas normas de os indivíduos agirem no mundo – não significa que aquelas normas são funcionais ou estão boas, mas que a gente não consegue mudar o caráter como um todo, consegue afrouxar as couraças, a gente não… talvez com terapia lidar melhor com as nossas couraças, mas elas nunca desaparecem, e eu acho que não é nem a intenção desmontar todas as couraças do indivíduo porque senão vai gerar um processo [incompreensível], né, então assim, pelo que eu pude compreender, inclusive tem uma citação aqui no livro que ele diz do… ele fala de uma norma biológica (depois eu posso achar aqui e mandar), mas ele acredita que há… esse normativo faz parte da vida, há uma normatividade biológica, e aí isso ficou muito parecido com o ‘cerne biológico’ do Reich pra mim. Eu até queria ouvir mais o Henrique, mais todo mundo, mas de alguma maneira eles pensam de forma mais ou menos a mesma coisa

Como dá para perceber pela quantidade de coisas que ficaram inaudíveis ou incompreensível na gravação, o áudio para mim não estava colaborando; assim que a Pessoa 01 acabou de falar, o Henrique perguntou se mais alguém gostaria de adicionar algo. Eu me manifestei, disse que gostaria, fiz algumas considerações sobre a questão do áudio e da minha dificuldade de acompanhar por conta disso (a pessoa que fez a apresentação também estava com problemas de conexão, e isso não foi só para mim, toas reclamaram), e então trouxe a minha discordância com a fala da Pessoa 01:

“… pegando essa fala da Pessoa 01, esse último ponto que ela traz, eu discordo completamente. Eu acho que quando o Canguilhem está falando de normatividade… ele no próprio livro define que normatividade não é a existência de uma norma, normatividade é a capacidade do organismo de criar novas normas de frente a novos obstáculos. Então nesse sentido iria completamente de encontro, bateria de frente com a noção do Reich de ‘cerne biológico’; que o cerne biológico, se há, é a capacidade do ser de não ter uma norma biológica, uma regra biológica só a seguir – e aí posso recuperar aqui essas anotações. Mas eu acho que, nesse sentido, me parece que o Canguilhem vai na contramão do Reich

Depois dessa minha fala, uma pessoa também trouxe uma contribuição fazendo relações entre as reflexões que Canguilhem apresenta no livro e as concepções que atravessam o campo reichiano:

Pessoa 02: “Só pra adicionar isso, por exemplo, que é uma questão que eu acho que eu fico muito incomodado quando são trazidas por algumas pessoas, até por alunos mesmo, né, quando vão falar da questão energética no IFP, há esse ‘ah, é tudo energético e poderia ser resolvido portanto só energeticamente’. Por exemplo, essa problematização da quantidade de energia fluindo pelo corpo, por essa experiência quantitativa, da função normal do organismo, quando tem por exemplo um vírus do… existem vírus que sim, são processos que são diferentes do normal do organismo e produzem uma forma totalmente diferente do organismo se relacionar com a vida e que muitas vezes produzem uma taxa de mortalidade de quase 100%, às vezes 100%, então assim, é como se eu falasse que não existe nenhum tipo de, quase nenhuma chance daquele organismo voltar à sua própria norma diante daquela entidade patológica específica, né, porque ele passa a funcionar de uma maneira muito diferente, essa funcionalidade se distingue muito daquela funcionalidade digamos normal para ele sobreviver, e que não dependeria só dessa capacidade de se restituir a sua normal porque a sua normatividade já foi totalmente quebrada. Então assim, como a gente vai encarar essa parte de, por exemplo, radiação, câncer, vírus… né, dessa perspectiva reichiana? Como que seria possível?

Depois dessa fala o Henrique trouxe algumas contribuições sobre a sua interpretação das interfaces que encontrou entre a obra de Canguilhem, sua compreensão da teoria reichiana e as falas que foram feitas. Concordou com a Pessoa 02 que seria um equívoco atribuir tudo à questão energética, pois mesmo Reich não postulava dessa forma; o que eu acho interessante (no sentido de inquietador) é como nós passamos de uma materialidade concreta onde nunca se conseguiu demonstrar satisfatoriamente a existência do orgone ou de qualquer coisa semelhante, para uma onde hão pessoas que dizem não só haver essa energia, mas que tudo pode ser atribuído a ela. Aí, num cenário desse, quem disser que “nem tudo é energia” passa por moderado, razoável, dialógico, enquanto que quem continua a dizer “mas essa tal energia aí nem existe” é taxado de radical, irascível, mente fechada – essa é uma falácia lógica conhecida como “falácia do falso meio-termo” ou, em latim, “Argumentum ad temperantiam” (algo como “argumento da temperança”). Em seu livro “Attacking Faulty Reasoning: A Practical Guide to Fallacy-free Arguments” (algo como “Atacando o Raciocínio Falho: um guia prático para argumentação livre de falácias”), o professor de filosofia T. Edward Damer a define da seguinte forma (em tradução livre): “Assumir que o ponto de vista moderado ou do meio entre dois extremos deve ser o melhor ou o correto apenas por ser o meio-termo”. O que me espanta não é apenas o recurso à falácia (infelizmente, algo muito comum em nossa realidade), mas como dela se passa “um degrau àcima”; há algum tempo ouvi um exemplo muito ilustrativo disso: temos estabelecido, enquanto sociedade, que o trabalho infantil é algo nocivo e que deveríamos baní-lo, então fizemos leis para isso. Recentemente alguns grupos começaram a buscar flexibilizar essas leis, com algumas propostas falando em dez anos como uma idade possível para o trabalho. Então os grupos que concordavam com as leis já proibiam o trabalho infantil reagiram, e disse “não, sem trabalho infantil”, e então surge um grupo “conciliador” que diz “entre a proposta de trabalho aos 10 anos do grupo A e de trabalho só aos 18 do grupo B, fica a faixa dos 14 anos, então essa deve ser a melhor proposta”; ai as pessoas contra o trabalho infantil reagem, dizendo “não, NENHUMA criança tem que trabalhar” e, por isso, são taxados de extremistas, fechados, que não dialogam… Acho que algo semelhante se opera com essa questão da “energia orgone” dentro desses círculos reichianos e suas adjacências: a gente existe aí no mundo e não se relaciona com orgone, chi, prana nem nada disso, mas se relaciona com calor, eletricidade e magnetismo, e a vida vai continuando seu rumo, fogueiras, motores e computadores vão sendo construídos. Aí alguém propõe em algum momento algo como “ó, tem uma outra energia por aí também, e ela pode uns negócio muito maneiro”, mas nunca consegue demonstrar nada que só possa ser explicado por essa energia; fala que ela faz esquentar, mas aí alguém aponta que só a convecção térmica e suficiente pra explicar aquele aumento de temperatura; fala em um motor que seria acionado com essa energia, mas ninguém nunca vê o tal motor girando (falam até que ele gira sim, mas que ninguém mais sabe como ligá-lo); fala que essa energia poderia transmitir informação, mas nunca consegue acertar o que você guardou dentro de uma caixa. Enfim, alguém diz que uma coisa existe, mas não consegue provar, e só acredita nela quem já acreditava nela; aí, acredito que qualquer pessoa concordaria que é razoável, um grupo começa a dizer “olha só, acho que essa energia aí não existe não hein…”. Então passa um tempo e aparece alguém que diz “não só essa energia existe como ela está em tudo e tudo pode ser explicado por ela”; aí aquele grupo só repete o que sempre disse, “se você não pode provar, não pode dizer que existe”; mas um outro grupo, tentando conciliar as posições, diz que “é extremista essa posição que diz que ela explica tudo, mas também é extremista essa posição que diz que ela não explica nada. Devemos ficar no meio-termo e concordar que ela explica algumas coisas”; aí outro grupo diz “não, isso não faz sentido, se ela não existe ela não explica nada, nunca”, recebendo como resposta um “tá vendo, vocês não mudam de opinião, são extremistas de mente fechada que não sabem conversar”.

O Henrique trouxe também algumas considerações sobre a ideia de patológico e o impacto da Covid-19 em nossa sociedade; falou em conhecimento e ciência, trazendo a ideia de que existem outras medicinas que não apenas aquela que predomina na nossa sociedade (um discurso que eu acho importante mas também muito perigoso, ainda mais na forma como costumo ver em nossa sociedade – uma valorização de “outros saberes” apenas por serem “outros”, numa crítica que toma a palavra “ocidental” quase como uma ofensa); falou-se sobre modelo, ideal, construção, norma e regra; saúde e sua relação com o contexto social e também com a subjetividade individual. Depois disso a Pessoa 02 trouxe um ponto de vista discordando daquilo que eu havia dito:

Eu estava vendo, há pouco tempo, a discussão aí com o Marcus que entrou na fala, e com a Pessoa 01, no chat, falando sobre ah, o que que é esse cerne biológico em Reich, e falar que entrar em contato com essa normatividade do cerne biológico em Reich é estabelecer um princípio, digamos assim, autoritário, estabelecimento das normas diante da vida, né, e isso seria contrário ao que o Canguilhem está falando… Mas eu acho importante salientar que pra Reich… a biologia de Reich é uma biologia também que não é a hegemônia à sua época nem a hegemônica pra hoje, assim, que muitas vezes acaba caindo num reducionismo mecânico, ainda hoje por questões, eu acho inclusive que são político-econômicas, né, não são assim metodológicas necessariamente. O Reich inclusive era chamado de bergsoniano, como o Marcus Vinícius já falou, de bergsoniano louco; e Bergson ele está falando sobre a experiência criativa dos organismos diante da vida, da produção de nova vida. Ele era um evolucionista, ele acreditava na transformação da vida, na constante transformação e mutação da vida diante do seu ambiente e nos processos que se davam ao redor. Então assim, não cabe pensar que Reich está falando de um cerne biológico restrito e uniforme, né, o cerne biológico de Reich, quando fala de autorregulação é o estabelecimento de uma norma diante de conceitos restritos, de uma norma específica dentro de uma… setorizado, digamos assim, que vai de 100 ao 0, né, mas é sempre uma norma que está se autorregulando com o seu ambiente, porque a percepção de Reich do organismo é sistêmica, é um sistema que está interagindo com outros sistemas. Então o biológico de Reich é necessariamente um biológico que está se transformando o tempo todo, que está tentando se regular e produzir saúde, nos termos de Reich que é bem-estar, que é prazer, diante muitas vezes dos prazeres que estão no mundo. Então, assim, o biológico, pra Reich, assim quando a gente fala ‘o biológico de Reich’, ‘o cerne biológico de Reich’ é um biológico que não é mecanicista, que não é um biológico que nunca se transforma, é um biológico estático – não, pra Reich o biológico está sempre se transformando na relação com a própria vida. Então a meu ver não é contraditório essa perspectiva da norma, da normatividade biológica, se a gente pode dizer assim em Reich, com a proposta pelo Canguilhem, porque ambos estavam falando disso, né. Reich ele foi um leitor de Nietzsche, de Bergson, de Spinoza… todos eles pensam num devir, na vida como um vir a ser, como transformação, não como algo que é, sempre foi a mesma coisa e sempre será a mesma coisa…”.

Depois disso, o Henrique fez mais algumas considerações e fizemos uma pausa; infelizmente na volta eu esqueci de retomar a gravação, só lembrei um tempo de aula rolando, então perdi o registro de parte do que eu se seguiu a isso. Mas foi uma continuação da discussão sobre essa questão, pois não lembro exatamente como foi na volta, mas em algum momento eu falei que não concordava com o que foi apresentado pela Pessoa 02 e trouxe como exemplo da discordância entre os pontos de vista de Reich e Canguilhem sobre a doença a questão de que para este a doença só existe quando a pessoa percebe uma redução na sua capacidade normativa; usando suas palavras, “Não é, portanto, um método objetivo que qualifica como patológico um determinado fenômeno biológico. É sempre a relação com o indivíduo doente, por intermédio da clínica, que justifica a qualificação de patológico”. Para Reich, ao contrário, o indivíduo não precisa perceber a doença para que essa exista, e na verdade em sua teorização a não percepção do que ele entende como patológico é sinal de uma patologia “maior” ou mais bem instalada. Dei como exemplo que alguém pode ir à clínica reichiana sem qualquer queixa relativa ao peito, mas se o terapeuta acreditar que aquela pessoa possui um “peito travado”, vai acreditar que aquilo é expressão da doença sem que haja queixa por parte da pessoa. Aí a Pessoa 02 discordou da minha colocação, e só no meio da fala dela que eu me lembrei de tirar a gravação do pause

Pessoa 02 “…ela ia aplicar isso, sempre de uma maneira trans, né, recolocar essa respiração na vida dele, totalizando essa respiração na vida dele, mas, assim, de que modo eu consigo relaxar dessa forma, ter esse bem-estar, numa normatividade, num ambiente que muitas vezes não permite isso e exige que eu trave aqui, que eu trave lá, que eu faça isso, que eu faça aquilo. É isso que ele dialoga com o que ele experienciou, com as outras experiências de vida dele fora da clínica. Eu acho assim, é mais ou meno isso, então… bom, ao menos na minha experiência, né… É isso, se vocês acharem outra coisa”.

Na sua fala a Pessoa 02 trouxe o termo “autoritarismo”, como se fosse disso que a prática reichiana estivesse sendo acusada. O Henrique sentiu necessidade de endereçar essa questão e fez uma fala dizendo como não pensa que o trabalho reichiano seja autoritário, explicar que esse trabalho não visa “desencouraçar” os indivíduos, mas sim flexibilizar essas couraças. Depois disso eu falei novamente:

Eu acho que eu não estou conseguindo nas minhas explicações porque quando a Pessoa 02 fala que o que ela falou foi endereçando a minha fala, eu não consigo compreender como ele está endereçando, porque perceba, toda a fala da Pessoa 02 foi no sentido de legitimar as teorizações do Reich, ‘ah ele não tirou da cabeça dele, ele viu na clínica, ele fez…’ Eu em momento nenhum discuti validade, de certo ou errado. Porque a proposta que eu tinha entendido da aula era da gente discutir o Canguilhem dentro de um perspectiva reichiana, obviamente. E o que eu falei, e tudo o que eu falei, e que ainda mantenho é que sobre a definição de doença eles são autores discordantes. Não estou dizendo que o Reich está errado e o Canguilhem está certo, nem vice-versa. A única coisa que eu defendo e ainda insisto, porque pra mim é método, tem que ter método pra discutir senão um começa a falar daquilo, daquilo outro, é… e aí repito, sobre o conceito de doença os dois autores são discordantes. E aí vou, pra ter, né, não parecer que eu tiro da minha cabeça, pegar o Reich aqui n’ A Função do Orgasmo, quando ele está falando sobre o que que deve ser o economista sexual e que quem não é ele fala ‘não sabe que o homem é a única espécie biológica que destruiu sua própria função sexual natural e está doente em consequência disso’, ou seja, define doença como consequência de um fato, Canguilhem define doença como aquilo do qual a pessoa se queixa. Então o que eu ainda insisto é, e aí estou sendo repetitivo só pra ver se… é a ferramenta que eu tenho, porque eu sou meio limitado, pra tentar me fazer entender; sobre o conceito de doença o Reich e o Canguilhem são discordantes. Se eu concordo com o Reich ou concordo com o Canguilhem é uma segunda discussão; que aí eu nem entraria porque nem tenho gabarito pra entrar nela. Mas a questão pra mim era essa, eu queria… eu não falei também, para parafrasear o Henrique, eu não falei dele [Reich] ser autoritário, não falei que ele tirou isso da cabeça dele, não falei que o Canguilhem é um excelente epistemólogo, não falei nada disso – a grande questão, pra mim, é essa: nesse conceito, que apareceu lá no começo da aula como se os autores fossem concordantes, eu percebo esses autores como discordantes

Pessoa 02 “Tá, mas só pra colocar que o que eu falei me referindo a você, Marcus, foi a sua fala de que o Reich observa, muitas vezes, a doença no indivíduo e muitas vezes uma coisa que o indivíduo também não consegue perceber, assim que de alguma forma é uma imposição, e que é autoritária por causa disso, da perspectiva do Reich sobre a experiência do próprio sujeito com a doença dele. O que eu estou dizendo é, né, que o Reich quando faz isso ele não está falando isso apesar do sujeito, que experiencia a doença, ele está relacionando um fato observacional com a queixa que o paciente traz pra clínica, daquilo que ele não está conseguindo fazer, sentir, ou daquilo que ele está sentindo de desprazer ou de dor. Então, assim, quando ele fala que o paciente não sabe da própria doença, que é o que a gente está criticando assim, né, porque ele está falando que o paciente, ou a gente está defendendo, eu acho que todo mundo defende isso, que a queixa deve ser trazida pelo paciente sobre o seu mal-estar, que ele vai trabalhar na clínica, então nesse sentido o que o Reich fala é que sim, o paciente traz isso, mas o Reich ele trabalhou uma.. elaborou uma epistemologia, uma teoria que relaciona esse mal-estar com outras estruturas que estão pra além desse mal-estar, mas que estão sempre relacionadas com esse mal-estar, e portanto não é uma ‘ah, tô desconhecendo a realidade’ ou a perspectiva da pessoa que está aparecendo ali falando só do seu tórax, por exemplo. Por isso que eu estou falando sobre o tórax, porque o Marcus falou sobre o tórax, o peito enrijecido, só relacionando isso. E aí nesse sentido eu entendi que você tava colocando que seria uma perspectiva autoritária do Reich sobre o paciente, que ele não estaria fazendo essa escuta, e dizendo que o mal-estar deve ser entendido da perspectiva do paciente. Por outro lado, na outra fala que você faz, eu pelo menos na minha interpretação do Reich, e no meu estudo do Reich com o Marcus Vinícius, ele diz o tempo todo que é necessário entender a obra de Reich como um todo, entendendo as fontes que ele bebeu, os teóricos que ele bebeu, pra conseguir desvendar, né, ou interpretar Reich não só pelas frases soltas que muitas vezes induzem [travou a conexão] é isso, terminando a segunda fala, assim, dizer que é preciso entender o Reich na sua teoria como um todo, das fontes que ele bebeu, do que ele está falando de biológico que muitas vezes não é o biológico que a gente entender, e que, de fato, em frases soltas, em alguns trechos do Reich ele tende a ser reducionista, muitas vezes com ‘nada mais é’, ‘pode ser reduzido à questão energética’ e tal, que é complicado se a gente fazer essa análise, mas eu vou contra aquilo que o Marquinhos está dizendo que é possível sim dizer que o Canguilhem e o Reich concordam em muitos aspectos, em muitos pontos, se a gente fizer essa análise longitudinal da teoria reichiana, abarcando tudo como um cabedal teórico e as perspectivas científicas que o Reich está levando em consideração, né. E é problemático, é difícil, porque o Reich muitas vezes aborda a teoria dele com um certo reducionismo, com essas frases, então é isso

Depois disso o Henrique pediu a fala (havia uma pessoa “na fila”) para trazer que a obra de Reich é fragmentada e que a tradução dificulta, que não há uma organização dessa obra. Após ele uma outra pessoa trouxe uma fala sobre a questão da respiração no trabalho clínico, dizendo que era observável o impacto do trabalho (massagem biodinâmica) na respiração da pessoa, que “você vê a energia fluindo no corpo da pessoa”, que a constância do trabalho produz uma nova percepção da pessoa com seu corpo. Depois o Henrique retomou e fez considerações sobre a relação terapêutica, de como esse constrói esse espaço, essa relação, e quais são as potências disso. Como eu tinha acionado o botão de “quero falar” da ferramenta, assim que ele encerrou e devolveu o espaço pra turma, as pessoa disseram “o Marcus quer falar”:

Como a Pessoa 02 trouxe, falando do Marcus Vinícius, das coisas que ele fala e eu acho que ele fala muito bem, trazer um exemplo de uma coisa que aconteceu na aula do Marcus Vinícius. Uma aluna, Pessoa 03, perguntou pra ele como seria encarado dentro da teoria reichiana uma pessoa assexual; pra resumir, a resposta do Marcus Vinícius foi ‘é uma neurose isso, existe uma neurose nessa pessoa’, sem antes conhecer a pessoa, inclusive a Pessoa 03 perguntou assim ‘mas e se a pessoa não vai pra clínica se queixando disso, se ela vai se queixando de outra coisa?’ Marcus Vinícius falou ‘mas essa questão vai aparecer, porque ela é a origem daquilo’. E aí – obviamente eu estou citando o Marcus Vinícius e não o Reich – mas eu não consigo conceber um reichiano enquanto reichiano que não concorde com isso, então eu não tenho aqui uma passagem do Reich para citar sobre isso, poderia procurar aqui, mas pra mim, novamente, é nítido que pro Reich a doença independe da percepção da pessoa, e inclusive a não-percepção que está doente é fato da doença pro Reich. Então, novamente… e aí me parece que eu realmente não estou conseguindo me fazer entender quando a Pessoa 03 fala ‘ah, eu vejo que o Canguilhem e o Reich podem concordar em vários pontos’; eu não falei que eles não podiam concordar em vários pontos, estou falando de um muito específico, esse, e novamente não estou tomando partido de quem está correto ou não, não tenho gabarito pra isso, para dizer o que é ou não a doença, as duas abordagens me parecem interessantes. Agora, pra mim, e aí talvez haja uma discordância, que aí valera talvez um grupo de estudo sobre isso, ou um curso sobre isso, é, pra mim pro Reich não há como discordar que pra ele a definição de doença não passa, necessariamente, pela definição do doente, e inclusive o doente pode estar doente sem sabê-lo; então o Canguilhem vai falar inclusive… ele dá um exemplo lá, hipotético, o cara que tinha um câncer se desenvolvendo e morre atropelado, e só se descobre o câncer na autópsia – esse cara não estava doente, pro Canguilhem. Pro Reich é óbvio que estava. Então é nesse sentido que, pra mim, os autores discordam; a definição de doença de Canguilhem, sendo correta ou não, e aqui quero estressar esse ponto porque parece que não estou conseguindo me fazer entender, que parece que a Pessoa 02 por exemplo toda vez que fala traz ‘ah, porque o Reich não tirou isso da cabeça dele, foi em relação clínica’ teve uma fala que você fez, né Pessoa 02, você fala ‘ah, o paciente tinha realmente um prazer naquilo’ – eu não estou negando isso. Pode ser que o Reich esteja 100% certo e o Canguilhem 100% errado, isso não muda o fato que os autores discordam nesse ponto. É essa, e somente essa até aqui, a minha teimosia, meu traço de caráter obssessivo trazendo a repetição aí – saiba eu ou não dos traços eu estou doente

Depois disso o Henrique trouxe uma fala que confirma esse meu ponto de vista (sobre as pessoa que se entendem reichianas), pois em um momento ele disse “… agora quando você está falando do emocional por mais que você esteja enfermo existe um processo defensivo que faz que a gente não entre em contato com essa enfermidade, ela simplesmente desaparece de si. E isso dentro do processo clínico ela não aparece, mas isso não quer dizer que ela não está lá”; isso é impossível se utilizarmos a definição de doença de Canguilhem, pois o que define doença é justamente o contato da pessoa com algo que ele sente como estranho à vida, ao que ela entende como normal.

Essa discussão foi exaustiva para mim, pois traz em si um problema de método, como eu falei durante a aula, e infelizmente eu vejo isso ser muito comum dentro do Instituto de todos os lados, das coordenadoras que não trazem os conteúdos das aulas com uma metodologia (esse semestre está sofrendo especialmente disso), das alunas que não parecem possuir um método de estudo quando trazem as questões, das falas que não possuem um método que nos permita ouvir todas as pessoas… Não penso que método é enrijecimento, porque ele não precisa ser do jeito X ou Y, mas apenas que haja um método que permita e/ou facilite que alcancemos determinado objetivo, e não nos jogarmos no que quer que seja com esperança de que a coisa vá funcionar. Depois dessa aula eu ainda fiquei pensando nessa questão discutida, visitei algumas anotações, refleti por alguns dias sobre isso, e realmente não vejo como pode ser possível que se diga (ou pense) de forma consequente e coerente que o conceito de doença em Canguilhem e em Reich seja compatível. Enquanto lia o livro, essa foi uma questão que me chamou muito a atenção, e para mim a coisa estava tão evidente que nem exigia um estudo, não fui procurar em Reich definições possíveis de doença e/ou de patológico, pois durante várias aulas do IFP é estressada a diferença para Reich entre traço de caráter e sintoma de caráter, onde este é sentido pela paciente como algo desagradável, algo que ela não gostaria que estivesse presente em sua vida (uma claustrofobia, por exemplo), enquanto o traço de caráter não é percebido, não lhe chama a atenção como algo patológico, anormal, de enfermidade (um riso sempre que é contrariada, por exemplo – se questionada, ela dirá que riu porque aquilo foi engraçado, mesmo que a observação mostre que a mesma situação não a faz rir quando não lhe contrariam); na primeira parte do livro Análise do Caráter, a sua obra clínica por excelência, Reich fala várias vezes como é necessário que o trabalho terapêutico comece pela dissolução das resistências, pois essas são parte da doença, e que o paciente não percebe. As únicas possibilidades que eu vejo, então, são as de que as pessoas não tenham estudado corretamente o texto, ou então que o fizeram e que, concordando com a proposta/conceito de Canguilhem, não conseguem não vê-lo em Reich, porque possuem para com esse um comportamento de fã – acho, inclusive, que essa última hipótese é a menos imprecisa, pois estava evidente que as pessoas tinham lido o texto e tinham se apropriado dele, trazendo questões e apresentando boas reflexões. Quando falo em “comportamento de fã” não é sem lastro, não é uma tentativa de desqualificar ou algo que o valha; uso “fã” porque foi assim que uma pessoa no Instituto se descreveu em relação ao Reich quando discutíamos a questão da homossexualidade na sua obra, então essa pessoa disse algo como “é que eu sou fã do cara, então não consigo pensar que ele defenderia isso”. E das pessoas que se manifestaram nesse debate, a maioria possui uma intersecção dentro do campo reichiano com a trajetória dessa pessoa, e muitas outras que já passaram ou ainda estão no Instituto também, e acabo sempre percebendo nesse grupo esse comportamento de fã, de onde nunca sai uma discordância com Reich, mesmo quando obviamente se discorda, é feito um esforço revisionista, se trazem essas imagens de “tem que conhecer a obra toda” e todas essas atitudes que não são desconhecidas de quem debate com pessoas que se ligam muito fortemente a um autor/grupo/escola de pensamento. Para mim é uma infelicidade que isso seja assim, pois perdemos uma excelente oportunidade (sempre, e nessa aula de forma específica) de fazer uma discussão aprofundada, com método e enriquecedora sobre um conceito de importância fundamental na prática que nos construímos para exercer.