16 de janeiro de 2021 – sexta aula de Seminários Clínicos

Como material para essa aula, o Henrique enviou para a turma um texto de sua autoria intitulado “O corpo na cidade: ansiedade e medo como campo de estudo da Psicanálise do sujeito urbano”, um artigo que, segundo ele, foi escrito para um colóquio entre a faculdade Santa Úrsula (onde ele já lecionou) e a Universidade de Sorbonne. É um artigo que traz uma proposta interessante, que acho bem apresentada no resumo do mesmo: “Este artigo procura discutir a possível relação entre as questões fóbicas do sujeito e o ambiente urbano. Parte do pressuposto que a construção das patologias se desenvolve na íntima relação entre a unidade psíquico-somática e o espaço social no qual o sujeito se constitui”.

Penso que esse tipo de reflexão é importante, principalmente dentro do campo das psicanálises, que tendem a desconsideram o contexto do indivíduo em nome de supostos complexos e estruturas internos dos indivíduos; não se trata de substituir um pelo outro (mesmo que se pense que a psicanálise precisa de uma revisão pormenorizada, o que é o meu caso), mas de se compreender que ambos os aspectos, internos e externo, se relacionam na totalidade do indivíduo, e que nenhuma abordagem que busque compreender (mesmo que minimamente) esse indivíduo poderá esperar consegui-lo se não olhar para ele de uma forma integrada. Como eu já disse em outros relatos, dividimos o conhecimento do mundo em áreas não porque o mundo assim se apresenta para nós, mas apenas porque não temos capacidade de compreender o mundo em toda a sua complexidade de um golpe só; assim, trabalhamos em cima de partes pequenas na esperança de conseguir aprender algo ali, mas esse algo não faz sentido apartado do todo, a divisão é apenas circunstancial, didática – como a personagem do filme “Ponto de Mutação” (Mindwalk) diz, o erro de Descartes não foi fazer a analogia de que o mundo era como um relógio e que poderíamos estudar as partes para entender o todo, mas sim esquecer que isso era uma analogia e não juntar as peças todas novamente.

Fazendo uma espécie de introdução da aula, o Henrique disse uma coisa que eu achei muito interessante, se referindo a ideias que existem dentro do campo analítico e que ele considera equivocadas: “outra questão que é colocada: só existe trabalho corporal quando o corpo – tô falando questões que são colocadas, tá? – é trabalhado diretamente, né, há exercícios, intervenções corporais, etc e tal. Isso também não é verdade”. Ele fez considerações sobre a questão energética em Reich a partir disso, mas a mim sempre chama a atenção como para muitas pessoas (ao menos do que eu conheço na experiência da formação) o trabalho reichiano é quase como que um trabalho de psico-massagem, no sentido de que as sessões precisam necessariamente de intervenções corporais. Essa noção de trabalho corporal, em si, não tem nenhum problema, mas eu acho complicado quando se compreende que o trabalho reichiano é isso, se dá dessa forma; no próprio Análise do Caráter, o único livro clínico que Reich escreveu, fica evidente quando ele descreve seu método clínico (mesmo na terceira parte do livro, escrita quando Reich já postulava a ideia de uma energia orgone) que não é dessa forma que ele trabalha. Eu vejo importância na abordagem da vegetoterapia, eu certamente a utilizarei na minha prática clínica, mas acho um erro teórico muito grava resumir a abordagem reichiana às intervenções corporais; nas perguntas, no anseios, nas dúvidas e nas preferências que aparecem durante a formação fica explicito que é justamente isso que as pessoas estão buscando; o “como trabalhar na clínica?” muitas vezes é exclusivamente “onde apertar e o que esperar disso?”.

Depois disso entramos em um exercício de cada pessoa dizer qual considera que seja o seu caráter, dentro da tipologia caracterológico reichiana; a partir da forma como as pessoas falaram (algumas mais diretas, outras trazendo mais considerações, algumas em dúvida, outras trazendo definições que não são um caráter dentro da tipologia reichiana), o Henrique foi trazendo considerações, geralmente em torno justamente da ideia de que o caráter é uma forma de defesa dentro da teoria reichiana. Uma coisa que sempre me chama a atenção nesses momentos é que por mais que o próprio Reich diga que haverão tantos caracteres quanto a sociedade puder produzir, que na formação várias vezes isso seja reforçado, dito que a tipologia caracterológica do Reich não é fechada, os tipos que são apresentados em momentos como esse (de autodeclaração, ou então em relatos clínicos, ou exemplos) são sempre os mesmos 3 ou 4 – e eu mesmo componho esse cenário. Se fosse somente nesses momentos de autodeclaração, poderíamos aventar a hipótese de que há um viés operando aí, pois somente as pessoas determinados caracteres procurariam uma formação como essa – mas nem isso faria sentido frente aos caracteres que são apresentados, pois o clássico “histérico” sempre aparece e, pelo manual, esse seria um caráter menos inclinado a estudos e mais desprendido das coisas, o termo que usam é “sem contorno”. No curso Análise do Caráter II o Marcus Vinícius trás definições de oito tipos de caráter, e nesses mais de dois anos de formação eu nunca vi ninguém trazendo nenhum exemplo que estivesse fora desses oito – e mesmo dentro dos oito tem alguns que aparecem bem menos ou nem aparecem.

Seguindo por esse caminho dos tipos apresentados de caráter, ele foi falando sobre o trabalho clínico e então chegou em um ponto que trouxe questões para algumas pessoas; ele falou sobre como inicialmente o trabalho analítico era feito todos os dias da semana, por questões mercadológicas passou a ser feito semanalmente e atualmente existem pessoas buscando e/ou oferecendo atendimento analítico quinzenalmente. Então ele disse que não via problema em um trabalho terapêutico ser feito quinzenalmente se as condições só permitissem isso, desde que houvesse o entendimento que esse não poderia ser considerado um trabalho analítico, pois a análise requereria, minimamente, o contato semanal. Foi então que uma pessoa perguntou o que exatamente diferencia a análise da terapia, e senti que o Henrique não conseguiu explicar muito bem – não sei se ele não compreendeu exatamente a dúvida da pessoa ou se apenas não estava conseguindo achar o caminho didático para construir a explicação, mas o que ele falava efetivamente não endereçava a questão que foi apresentada; ou talvez a pessoa estivesse esperando uma outra resposta (outros termos, talvez), e como ela não vinha, não consegue sanar a sua dúvida. Como essa foi uma dúvida inicial em meus estudos, mesmo antes de entrar na formação, eu perguntei se podia dar uma opinião sobre isso, e falei que para mim uma boa forma de pensar nisso é usando a analogia que o próprio Freud faz no primeiro artigo em que usa o termo psico-análise (Hereditariedade e a etiologia das neuroses, publicado em 1896), onde ele faz uma comparação com a análise química: “apontamos ao doente, nos seus sintomas, os motivos pulsionais, até então ignorados, como o químico separa a substância fundamental, o elemento químico do sal que, em composição com outros elementos, se tornara irreconhecível”; ressaltei, ainda, que o grande diferencial da psicanálise freudiana é a adoção do conceito de inconsciente e, por consequência, de aparelho psíquico, de onde derivam vários conceitos, sendo talvez o mais importante para a questão da frequência do tratamento a ideia de transferência; na elaboração da ideia de transferência não há um limite definido de frequência de encontros como diários, semanal ou quinzenal, e eu acabo achando que essas definições vão se consolidando em consonância com o contexto em que se inserem – talvez se fossem questionados sobre isso (talvez até tenha sido e hajam registros, mas eu desconheço) Freud e Reich diriam que atendimentos semanais são insuficientes para que se possa construir uma relação analítica. Essa foi uma discussão que ocupou um tempo considerável da aula, e eu acho que isso é importante, essa diferença é fundamental de termos bem trabalhada para conseguir, justamente, desenvolvermos um trabalho analítico.

Depois de um intervalo, voltando ao texto o Henrique trouxe a questão de como as diversas sociedades produzem e utilizam corpos diferentes, marcando principalmente como em nossa civilização é comum que nos diversos tempos hajam corpos tidos como aceitos, como belos, como desejáveis, e “os outros corpos”; há também uma questão de poder cortando esses corpos, quais são os corpos que precisam se esgotar no trabalho e quais os corpos que podem descansar, corpos que tem direito ao prazer e corpos aos quais o prazer é negado; assim, não é possível separar o corpo biológico do corpo social dos indivíduos. A partir dessa compreensão é importante entender que essas diferenças constituirão a relação terapêutica também; se não se pode dar por entendido que todo corpo é o mesmo corpo, se o corpo tem uma história, é importante que na relação terapêutica a analista conheça minimamente essa história para compreender os limites e as possibilidades desse corpo antes de intervir sobre ele. E isso se coaduna com a ideia fundamental que Reich traz no seu Análise do Caráter, que é a necessidade do trabalho analítico iniciar com as resistências, e que a analista tenha sempre muita atenção com a transferência negativa latente.

Conforme a aula foi acontecendo e os temas foram surgindo e sendo trabalhados, em um momento o Henrique perguntou a todas as alunas quais eram os nossos maiores medos; surgiu medo da morte (o meu maior medo), medo do fracasso, medo do novo, medo de agulhas, medo de ter medo. Depois ele fez uma outra rodada perguntando o motivo de cada pessoa ter esse medo específico, e disso foi-se desenvolvendo vários temas relativos aos assuntos que surgiam a partir das questões que eram levantadas, sem nos aprofundarmos em nenhum tópico.