22 de agosto de 2020 – primeira aula de Seminários Clínicos

Essa foi a primeira aula online que tivemos na formação que se realizou “inteira” – as aulas de encerramento do semestre anterior, que também foram online, foram divididas em duas partes. Eu estava um tanto apreensivo em relação a isso, pois as atividades que tenho feito online e por telefone até aqui tem sido cansativas, muito mais do que quando feitas presencialmente, então a ideia de um dia preenchido por videoconferências não parecia muito sedutora. Mas o Henrique, professor desse curso, criou um esquema que achei bem interessante de pausas, e penso que isso permitiu que a aula não ficasse cansativa: ele fez tempos decrescentes, primeiro com um momento de 90m e uma pausa de 15m, depois mais uma hora e outra pausa de 15m e um último segmento de 30m. Outra coisa que penso que ajudou nisso foi que nos intervalos eu efetivamente saia da frente do computador, ia para o quintal e ficava olhando para longe (um lindo ipê amarelo que estava florido perto de casa ajudou bastante nisso), além de me esticar um pouco, estar sempre me hidratando e coisas assim. Se o meio muda é importante que as estratégias mudem também; isso vale para tanta coisa e, mesmo assim, ignoramos demais a potência dessa ideia.

O Henrique passou antes do encontro dois materiais por e-mail para a turma, um deles com algumas definições e considerações etimológicas sobre percepção, e outro com uma adaptação da fábula dos ratos cegos falando sobre o elefante, substituindo os ratos por analistas cegos, buscando trazer a reflexão sobre a necessidade de compreender o objeto estudado em sua integralidade e não acreditar que conhecer um fragmento permite que conheçamos o todo. E escolher essa analogia dos analistas cegos também cumpriu o papel de fornecer essa imagem/reflexão de que é muito fácil para os analistas deixarem de perceber as suas limitações e acreditarem que conseguem entender a totalidade de uma situação. Ao reler conosco o conto e perguntar por nossas impressões, eu disse que me chamou a atenção como a maioria dos analistas compreendeu o elefante a partir de uma percepção do que seria útil para os humanos (“é um grande abanador para refrescar as crianças”, “é uma pedra com um espanador para espantar os insetos de nós”, “é uma fera com presas que os caçadores podem fazer lanças”); pela ferramenta de chat da plataforma, uma outra pessoa da formação, que também é vegan, comentou sobre como essa leitura pode ser pensada a partir do especismo, e eu disse que foi justamente daí que eu parti – sempre acho muito interessante encontrar esses pontos de intersecção entre as coisas que eu faço e/ou acredito, porque penso que se sou o núcleo de onde essas coisas partem, faz sentido que a minha forma de ser e estar nesses “lugares” vai ter semelhanças. O Henrique, ao comentar a minha, trouxe uma fala que se comunicou com estudos (tímidos) que eu tenho feito sobre afeto, cognição e memória, mas acho que as pessoas não necessariamente captaram o que se pode tirar disso: “Toda vez que um paciente vai à sessão, se você pedir para ele repetir seja um sonho, seja uma situação vivida, ou seja uma experiência que ele colocou da outra vez, vocês vão perceber que cada vez que há um relato há uma mudança, primeiro no conteúdo do relato, segundo na própria emoção como é que diz ou fala sobre o relato, e terceiro, uma série de omissões ou de agregações a esse relato. Se você ficar preso, o tempo inteiro, a uma primeira situação que foi colocada e acreditar que essa primeira situação colocada ela é a determinação do teu trabalho, você começa a entrar por um cano redondinho”. Sem uma compreensão do funcionamento da memória, sem compreender que a nossa memória não é um dispositivo de armazenamento, mas que toda a vez que lembramos de algo estamos reconstruindo aquele algo, essa frase pode não ter efeito algum; mas uma pessoa que entenda ao menos esse funcionamento básico da memória poderá compreender melhor os efeitos do tratamento analítico e, assim, refletir e construir melhor aspectos teóricos e práticos da sua clínica. Para dar um exemplo de como o impacto disso pode ser profundo, embora eu vá apresentar de uma forma caricata pelo bem da síntese, a partir dessa informação torna-se completamente relevante pensar se a efetividade do trabalho analítico reside em um “acessar memórias reprimidas e lidar melhor com elas” ou em uma reconstrução de certas memórias a partir das compreensões que surgem na relação terapêutica. Acredito que já citei em outro relato aqui no blog o artigo da Dra. Tzofit Ofengenden “Memory Formation and Belief” (não deixa de ser irônico eu não lembrar exatamente se já citei um artigo sobre formação de memórias), que é um bom conteúdo para fundamentar essa reflexão.

Outra fala muito interessante do Henrique ainda nesse mesmo “fôlego” foi quando ele disse: “A nossa percepção das coisas ela não é correta; ela pode até ser correta, mas você só tem ideia disso a partir do momento em que você constrói a partir de várias ligações, de várias multi-relações, e aí você consegue capturar a questão principal”. Com essa frase ele estava falando em cima da fábula/conto dos analistas cegos tentando compreender o elefante, mas ela é bastante adequada para pensarmos também no método científico: não se trata de dizer que a nossa percepção das coisas é correta ou não mas de, entendendo a possibilidade dessa percepção não representar adequadamente a realidade, estabelecer um método que possa agregar outras fontes de informação com objetivo de diminuir a nossa incerteza. Lembro de em alguma aula durante a minha vida escolar ouvir de um professor que os gregos se dedicam ao estudo da lógica quando, através de seus estudos de óptica, descobrem as ilusões de óptica – se nossos sentidos podem nos enganar, temos de buscar um outro meio de conhecer a realidade que não possa nos enganar, e eles acreditam que a razão e a lógica poderiam ocupar esse lugar. Hoje compreendemos que essa posição dos gregos estava equivocada, mas não porque detecta a possibilidade de engano ao confiarmos apenas em nossas percepções, mas sim por acreditarem tanto ser possível excluí-las do processo de produção de conhecimento quanto por acreditarem que o raciocínio lógico não poderia levar também a equívocos – importante notar que não é a lógica que leva a equívocos, mas o uso que fazemos dela, por isso a importância de conhecermos nossos limites em relação à produção do conhecimento, para assim entendermos que tipo de conhecimento podemos produzir. É por esse tipo de consideração que eu considero que o método hipotético-dedutivo é a forma mais refinada que temos hoje de produção de conhecimento, pois compreende que não podemos classificar informações como exatamente verdadeiras (adiciono o “exatamente” pois também penso que é uma discussão muito importante aquela que distingua “verdade” e “realidade”), mas que temos plena capacidade de identificar hipóteses que sejam falsas.

Um pouco mais à frente nessa aula o Henrique trouxe, para ilustrar uma questão que ele estava falando, o conceito de contratransferência, e jogou a pergunta para a turma, que algumas pessoas responderam e ele deu seguimento. Acho interessante registrar aqui duas definições encontradas em dois dicionários/vocabulários de Psicanálise, pois é um conceito fundamental da teoria psicanalítica: “Conjunto das manifestações do inconsciente do analista relacionadas com as da transferência de seu paciente” (Roudinesco e Plon, Dicionário de Psicanálise); “Conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do anali­sando e, mais particularmente, à transferência deste” (Laplanche e Pontalis, Vocabulário de Psicanálise). Por essas definições, já se percebe que esse conceito tem relação direta e estreita com o de transferência, e que portanto não pode ser compreendido sem uma compreensão deste; e se pensarmos na história da criação e desenvolvimento do conceito de contratransferência, fica evidente como é fundamental uma compreensão para além do superficial do conceito de transferência.

Uma coisa que o Henrique insistiu bastante durante essa aula foi sobre o fazer terapêutico se pautar na construção da relação entre analista e analisando muito mais do que no domínio dessa ou daquela técnica específica; não se trata de dizer que a técnica não tem importância, que não é necessário o estudo e o desenvolvimento da técnica (e de sua teoria) ou de qualquer coisa desse tipo, mas sim de compreender, como Reich aponta muito explicitamente no livro Análise do Caráter, que a técnica de cada caso será elaborada dentro de cada caso, a partir das questões que esse caso suscite, das necessidades que ele apresente, daquilo que ele faça se movimentar. E, dentro disso, ele falou algo que me remeteu a uma outra situação em aula dele, que foi dizer que dentro do campo reichiano se produz muito pouco material escrito (ele chegou a falar sobre material em vídeo também, dizendo que hoje isso é uma possibilidade), e atribui a isso um certo receio da crítica: “Há alguns anos atrás… não, até hoje, a produção escrita reichiana é muito pequena, né, poucas pessoas produzem, né, por escrito alguma coisa, ou gravam por escrito alguma coisa… talvez por isso o pânico de ‘não pode gravar a minha aula’, muitas pessoas são assim – acho que você tem que perguntar pro outro se pode gravar ou não, isso é um direito do outro querer ser gravado ou não, mas muitas vezes por trás disso esconde um certo receio de estar ali marcadamente acessível a todos. O que que isso esconde? Que a história do movimento corporal aqui no Brasil, ele foi muito experimental, né, o experimentalismo existia muito, então o que acontece, cada grupo, cada pessoa, cada organização, construía a sua forma de trabalhar o corpo e dando certo ou dando errado, corretamente ou incorretamente, isso ficava num lugar que não podia ser analisado pelos outros porque eram grupos fechados. Então a gente está falando que você não escreve, não coloca isso em vídeo (que agora é a modernidade, né), porque você ao botar o que está escrito vale o que está escrito, se botar no vídeo vale o que está no vídeo – a priori, né. Então você pode questionar essas coisas, e você questionar você mexe exatamente no narcisismo das pessoas, no lugar certo delas; existem pessoas que se você falar qualquer coisa diferente delas elas vão ficar zangadas, não vão falar mais com você, porque elas se sentiram feridas narcisicamente”; a outra situação em aula dele (agora fico em dúvida se foi em aula ou em supervisão do CAP) a que isso me remeteu foi uma vez que eu falei justamente disso, de haver pouca produção por escrito por parte dos indivíduos e grupos reichianos, e falei justamente por ter lido isso em um escrito dele, aí ele questionou e já ia me interromper, então eu “corrigi” (aspas pois eu não achava que estava errado, apenas sabia o que ele queria ouvir e disse logo para não ser interrompido) dizendo que escreviam pouco sobre a teoria da técnica – na hora eu não tive certeza, nem fui conferir depois, mas a impressão que eu tive foi de que no artigo dele que li ele falava justamente em pouca produção escrita, não só sobre pouca produção escrita sobre a teoria da técnica. Bom, fica o registro aqui que ele efetivamente percebe uma baixa produção escrita dentro do campo reichiano, e com a adição da sua hipótese das causas, motivos, razões ou circunstâncias.

Uma coisa que me chamou a atenção no material que o Henrique enviou para a turma foi o seguinte trecho:

Por outro lado, a percepção extrassensorial (ou PES), é conhecida como o ato de obter um certo tipo de conhecimento por meios que não são considerados padrão ou que não são reconhecidos pela ciência. Alguns exemplos de percepção extrassensorial são: telepatia (quando há transferência de conteúdos ou pensamentos entre duas pessoas), clarividência (ver claramente objetos ou eventos mesmo à distância) e premonição/precognição (conhecimento de um facto que vai ocorrer no futuro)

E isso me chamou a atenção porque me preocupa quando essas coisas começam a se imiscuir em um discurso que busca objetividade, algo que é muito comum no meio reichiano, devido ao fascínio que as postulações de Reich sobre energia exercem sobre as pessoas com inclinação para o místico e o transcendental. Se falarmos em linguagem do dia-a-dia, telepatia, clarividência e premonição não existem; se nos preocuparmos com o rigor científico, o mais acertado seria dizer que não podemos dizer que esses fenômenos não existem, mas é fato que até hoje não foram apresentadas provas de que tais fenômenos existem. Sou muito grato por existir no mesmo tempo/espaço que James Randi, pois ele dedica a sua vida a desmascarar charlatões e pseudo-ciências, e criou uma fundação que até 2015 oferecia um milhão de dólares para qualquer pessoa que prove a existência de qualquer fenômeno dito sobrenatural – esse desafio não está mais disponível, pois a Fundação gastava muito tempo explicando às pessoas que seu formulário estava incompleto e/ou que elas deveriam se inscrever se afirmassem possuir algo comprovável (descobri isso enviando um e-mail à Fundação perguntando sobre o The Million Dolar Challenge). A Fundação foi criada em 1996, e mesmo antes disso o próprio James Randi já oferecia uma soma invulgar de dinheiro a qualquer pessoa que pudesse produzir evidências de atividades paranormais sobre circunstâncias controladas; então foram, no mínimo, 24 anos de um prêmio milionário oferecido e que nenhum telepata, clarividente ou “premonitor” foi capaz de reclamar. Quando trouxe essa questão sobre PES na aula, o Henrique o fez em forma de questão, perguntando se as pessoas achavam importantes esses elementos (telepatia, clarividência, premonição) dentro do processo terapêutico; a primeira pessoa a falar fez uma consideração sobre a palavra “importantes”, mas disse que considerava sim esses elementos úteis dentro da terapia, e ao Henrique pedir para ele desenvolver mais, ele falou na importância que concede à intuição na clínica. O Henrique perguntou se mais alguém tinha alguma consideração a fazer sobre isso, e a próxima pessoa que falou colocou em palavras tão exatamente o que eu estava pensando que eu tive que comentar isso na ferramenta de chat que a sala de videoconferência possui; ela disse “eu acho que a intuição é diferente da clarividência e da telepatia”. Mesmo sendo completamente suspeito de falar isso, acho que perceber isso é condição necessária para produzir conhecimento – não é condição suficiente, ou seja, não é só com esse tipo de percepção que se construirá algum conhecimento, mas sem esse tipo de percepção não se consegue produzir conhecimento através do método científico. Porque aconteceu uma mudança de elementos e ela não foi destacada na fala; isso pode acontecer por acidente, por falta de conhecimento do processo de construção de conhecimento ou mesmo por tática retórica, mas estando em um espaço de disputa de enunciados (toda discussão pode ser entendida a partir dessa chave, e ali na formação isso se dá de forma acentuada – na minha leitura, obviamente) e ainda mais em um espaço que se apoia numa estrutura discursiva que entende todas as nossas ações permeadas (se não inundadas) de conteúdo inconsciente, alguns contornos de hipótese se tornam mais delineados do que outros. Então se você está falando de “telepatia, clarividência e premonição” e subitamente passa a falar de intuição sem marcar que houve uma mudança, há que se prestar atenção. Embora algumas pessoas possam acreditar que o que chamamos de intuição é fruto de processos de percepção extra-sensorial, não há nenhuma base material para isso, é apenas crendice; porque acredito que não é difícil entender a intuição como algo que não dependa de nada que já não tenhamos consensualmente compreendido – ela é um pensamento que você cria a partir de percepções, afetos e representações dos quais não está, integral ou parcialmente, consciente. Isso não anula a possibilidade de uma percepção extra-sensorial, mas apenas mostra que é possível formular uma hipótese coerente sobre a intuição sem precisar aventar algo extraordinário como a ideia de percepção extra-sensorial; “a ausência de provas não é a prova da ausência”, essa é uma ideia tão certa quanto mal compreendida, porque já a vi sendo usada para justificar crenças injustificáveis – a mais simples de exemplificar: deus. Dizem alguns crentes “a falta de prova de que deus existe não é a prova de que deus não existe”, e eu acho impossível discordar disso; mas é importante notar que a falta de provas de que deus existe prova… que não existem provas da existência de deus! Pode parecer apenas algo óbvio, até tautológico, mas penso que passa longe disso; pois se já está provado para alguém que não existem provas daquilo que ele acredita, por que causas, motivos, razões ou circunstâncias ele continua a acreditar naquilo? Se acredita em algo sem ter provas, e se continua a acreditar mesmo quando se esforça para encontrar provas e não as encontra, é uma pessoa com fé, e para a fé as provas não importam – mas se não importam, não deveria tentar mostrar que elas existem, e se elas importam, deveria mudar de ideia quando não as encontra, certo? Uma coisa que faz muito sentido para mim na teoria reichiana é o olhar holístico (uma palavra que reluto muito em usar, pois sinto-a cada vez mais inserida num contexto namastê-gratidão, metafísico, e não gosto nem um pouco disso), a ideia de observar as relações e não as coisas isoladas (porque o isolamento, sticto sensu, não existe); então eu não consigo compreender que uma pessoa que tem fé “em um campo da sua vida” vai conseguir manter um pensamento coerente em outros campos, porque a nossa vida, a nossa mente, as nossas relações, não são atomizadas, não conseguimos ser algo aqui e outro algo sem interseções lá. Ao longo desses relatos das aulas já fiz várias considerações sobre essas questões, então acho que já me alonguei o suficiente aqui, mas realmente acho que essa é uma questão sobre a qual nós, enquanto sociedade, deveríamos nos debruçar muito mais.