27 de junho de 2020 – sexta aula de Análise do Caráter III (primeira parte)

O Pedro iniciou essa aula falando que trabalharia nela o conceito de peste emocional de Reich, que ele desenvolve no último capítulo do livro Análise do Caráter; anunciou também que fez um vídeo e disponibilizou em seu canal do YouTube sobre esse tema (https://www.youtube.com/watch?v=f_t_qDQghgc), que seria recomendável que as pessoas assistissem ao vídeo. Disse também que trabalharia os conceitos de banalidade do mal e totalitatismo de Hannah Arendt, o livro “Escuta, Zé Ninguém” de Reich e que traria algumas questões clínicas relativas a essas questões.

Começou falando que Reich escreve o capítulo sobre a Peste Emocional em 1945 e publicou em 1948; segundo o Pedro, inicialmente Reich afirmava que esse não era um conceito depreciativo, mas que quando em um segundo momento do desenvolvimento do conceito Reich passa a utilizar o termo modju para designar o comportamento e ações de seus adversários, aí percebe-se claramente uma carga pejorativa na utilização do conceito. Para o Pedro, devido a toda a perseguição que sofreu, o próprio Reich havia se “empesteado”; mas disse que não trataria dessa parte do conceito, apenas do desenvolvimento inicial. Aqui entra uma questão que eu sempre acho interessante nos estudos que se fazem sobre a obra de uma pessoa, pois é muito comum vermos essas obras sendo divididas em “fases”, “momentos”, por vezes até em filiações a escolas de pensamento distintas; para mim é evidente que isso acontece, claro, a vida é dinâmica e as pessoas vão construindo coisas que vão lhes afastando mais ou menos do “ponto inicial”. No próprio Reich, para mim, existem três fases muito evidentes da sua abordagem clínica: a Análise do Caráter, a Vegetoterapia e a Orgonomia; entender que existiram três fases facilmente identificáveis, contudo, não é o mesmo que dizer que as fronteiras entre essas fases são algo fortemente delimitado. O próprio livro Análise do Caráter de Reich dá uma amostra disso: o livro é um apanhado de artigos que Reich foi escrevendo e apresentando em momentos diferentes de sua vida, e é perceptível como nos primeiros capítulos não há na teoria ali descrita a noção de “energia orgônica” ou qualquer coisa semelhante – e o que deixa isso mais patente são as notas de rodapé que o próprio Reich adiciona em edições posteriores do livro, justamente para incluir referências à sua invenção, a orgonomia. Embora alguns autores reneguem coisas que escreveram no passado, Reich não faz isso; ele continua afirmando a importância da Análise do Caráter no processo clínico mesmo quando já trabalha com a orgonoterapia, mas, por uma questão lógica de precedência temporal, quando desenvolve e vê coerência na sua técnica psicoterapêutica da análise do caráter não sente falta da “energia orgon” ou nada desse tipo. Acho que não estou conseguindo expressar bem a minha ideia, o que quero dizer são duas coisas: é complicado perceber exatamente quando termina uma fase e inicia outra olhando um grande recorte da obra de alguém; embora certamente existam continuidades e rupturas ao analisarmos a produção teórica de alguém, as pessoas tendem a forçá-las para endossar a sua argumentação, seu ponto de vista, sua interpretação sobre aquela obra. Eu acho que isso acontece, por exemplo, com o conceito de energia em Reich, quando dizem “mas ele sempre falou de energia, a libido é uma energia” – primeiro, sempre acho importante destacar que “energia” nunca é utilizada, nesses contextos, como um conceito bem definido (ninguém sabe responder precisamente à pegunta “o que é energia?”), e eu vejo como forçar uma continuidade e coerência dizer que a libido, que pode nos mover e fazer desejar, é uma energia e que a tal “energia orgon”, que pode brilhar no escuro e curar o câncer, é também uma energia, como se fossem o mesmo tipo de coisa. Eu mesmo tenho vontade de dedicar um pouco mais de tempo, em algum futuro, a pesquisar mais sobre o conceito de energia, buscar boas definições para ele e a partir disso procurar esse conceito na obra reichiana; pessoalmente, não estou convencido de que a libido, ou qualquer coisa semelhante, seja uma energia no sentido que as pessoas do campo psicanalítico geralmente lhe atribuem, de que é algo mensurável, que possui fluxo, quantidade, exerce pressão e ocupa espaço.

Depois disso o Pedro trouxe mais uma vez o conceito de biopatia, explicando a construção da palavra (bio – biológico, vida; patia – doença), uma “doença do vivo”, e que Reich classificava isso que chamou de Peste Emocional de biopatia. O processo de vida, frente a um cenário adverso, se voltaria contra si próprio; o Pedro trouxe, como semelhante, o conceito de intrusão para Winnicott. Falando desse conceito de biopatia, ele usou como exemplo o câncer: “então, por uma predominância mais física, a gente pensar no câncer; óbvio que existem condições externas que causam câncer, por exemplo, uma radiação, né, que independe de como o sujeito está porque isso é uma intrusão muito forte, né, e o organismo não tem como reagir – para dar o exemplo. Mas a maioria dos cânceres é uma auto-produção do próprio sujeito, né, a própria maneira de ele lidar com a vida, né, vai construindo uma forma de que vai atacar o físico, né, e ele começa a produzir as células de baixa qualidade – de multiplicação muito grande, mas de baixa qualidade”. Essa é uma daquelas afirmações que eu acho muito importantes que realmente sejam feitas, não porque eu concorde com elas, nem porque eu discorde, mas porque marcam posições; um exemplo que eu gosto de usar (e que, por isso, talvez já tenha aparecido em algum outro relato) é o da teoria da relatividade de Einstein. Para não ficar entrando em muito detalhes (até porque eu não sou um estudioso dessa área), em um momento de elaboração/desenvolvimento da sua teoria Einstein disse que se ela estava certa, um certo fenômeno poderia ser observado durante um eclipse (uma estrela que esperaríamos ver no ponto A seria vista no ponto B, e esse deslocamento seria não da estrela, mas de sua luz, desviada pela massa do sol, e o eclipse nos permitiria ver isso por não estarmos ofuscados pela luz solar); um grupo de pesquisadores foi lá, durante um eclipse, fez as medições, e as predições de Einstein se mostraram corretas – como eu sempre digo aqui, isso não prova que a teoria estava certa, mas nos dá a segurança de que ela esta menos errada, nos afasta um pouco mais do erro, uma diferença que pode parecer sutil mas que é fundamental para a construção do conhecimento científico. Se as observações mostrassem que as predições de Einstein estavam erradas, isso não jogaria toda a sua teoria no lixo, mas nos apontaria que ela não descreve adequadamente a realidade e nos daria material para trabalhar em cima, para que pudéssemos entender por que ela acertou aonde acertou – essa é uma compreensão que eu também acho muito importante: nem sempre quando acertamos algo, o fazemos pelo motivo que acreditamos; a gente pode estar certa sobre algo sem fazer ideia do motivo, mas como nossas mentes sempre correm atrás de um motivo para tudo, criamos logo uma explicação para ficarmos em paz. Juntando esses dois elementos, então, acredito que fica mais fácil entender porque vejo importância que afirmações categóricas como essa que o Pedro fez ao definir o câncer segundo a sua visão são importantes, pois elas permitiram ser confrontadas com a realidade quando pudéssemos testá-las, e sabendo se elas se sustentam ou não nós poderíamos continuar a produzir conhecimento dentro dessa área, seja buscando novos testes e aplicações para uma teoria que se sustenta, seja buscando entender os motivos de uma teoria que explicou algumas coisas não explicar outras, ou seja abandonando ideias que não fazem mais sentido. Só que, infelizmente, esse meu “pensamento desejoso” não conta com a ação dos nossos vieses cognitivos, e assim teorias que já falharam em todos os testes possíveis continuam a figurar como possíveis, por vezes como as únicas possíveis, para um grande número de pessoas; se você pensou nas pessoas que acreditam que a Terra é plana, pensou no caminho certo. Novamente, embora eu não seja um estudioso do câncer, me parece que hoje temos bastante informação sobre essa doença, que permitiria comparar as afirmações de Reich (e dos reichianos) sobre o câncer com o material que temos hoje – imagens, exames, estatísticas, tratamentos. Mas usando essa explicação/definição que o Pedro trouxe, acredito que nem precisamos ir muito longe, a própria informação que o câncer pode ser causado por radiação já deveria exigir mais poder explicativo dessa teoria; tendo lido e ouvido algumas coisas nesse sentido, eu consigo imaginar por quais caminhos essas explicações iriam, algo como “a radiação age no corpo danificando-o, isso cria uma ‘situação adversa’, e então o próprio corpo, o processo da vida, age contra si” e, a princípio, não há nada de bizarro nesse argumento. A questão, para mim, está na comparação: como que “a maneira do sujeito lidar com a vida” poderia produzir o mesmo efeito que a radiação? Pois se as duas coisas produzem a mesma doença, em algo elas são semelhantes – no que? Enfim, talvez eu esteja me prolongando aqui (tendo em conta que já abordei essa temática em outros relatos), mas acho que há muita coisa para se pensar nesse campo, e me intriga como não existem estudos abundantes partindo do campo reichiano e inundando o debate público sobre essas questões.

Segundo o Pedro, no campo psíquico haveriam dois tipos dessa biopatia da peste emocional, uma momentânea, que teria o potencial de afetar qualquer pessoa por um período de tempo, e uma “mais crônica”, que seria um perfil de caráter do indivíduo, que se estenderia para além do indivíduo, buscando afetar o social. Entre as características desse indivíduo cronicamente empesteado, estariam uma “alta carga energética” e, ao mesmo tempo, “um bloqueio emocional muito forte” – a energia tanto alimenta a nossa potência de vida quanto as nossas couraças. Esse embate entre o desejo de vida e a impossibilidade de vida geraria uma grande frustração nesses indivíduos, que traria tristeza e raiva, e seria essa raiva, que se estendendo para as relações pessoais do indivíduo e para o campo social, que geraria a peste emocional, uma tentativa do sujeito de “preservar o seu precário equilíbrio neurótico” fazendo com que todas as pessoas “pensem, sintam e ajam como ele”. A ideia é que controlando a vida dos outros ele, o indivíduo empesteado, não se sente ameaçado (aquilo que está sob o nosso controle nunca será uma ameaça, afinal); uma caraterística central da peste emocional, então, seria que o indivíduo empesteado quereria que todas as pessoas fossem como ele, tivessem as mesmas ideias e os mesmos comportamentos.

Como o Pedro já havia falado sobre isso em outros momentos, e mesmo desenvolveu essa ideia no vídeo que fez sobre a peste emocional, uma coisa já minha se maturando na minha cabeça, tanto por já ter vivido algumas situações aonde esse argumento de “é autoritário não permitir que alguém seja autoritário” apareceu quanto porque atualmente esse tipo de discussão também tem aparecido muito. Como o Pedro pediu (e eu achei uma coisa boa) que as perguntas e comentários que nós desejássemos fazer durante a fala dele fossem feitos através da ferramenta de texto da videoconferência, tentei pensar alguma coisa que pudesse ilustrar o meu ponto para evitar escrever muito. Então eu fiz a pergunta de se ele achava que a frase de Ãngela Davis, “Numa sociedade racista não basta não ser racista – é preciso ser antirracista”, se aproximava do conceito de peste emocional, visto que ela está defendendo como necessário que as pessoas pensem como ela. Ele respondeu o seguinte: “É, aí, assim, é complicado no sentido, assim… não é tanto o discurso da pessoa, né, mas as ações. Que ele está falando aqui da Ângela Davis (é o Marcus que está falando), ele acha que a Ângela Davis quer… que não basta ser, não ser racista, mas ser antirracista, ou seja, ter atitudes antirracistas. Vai depender se isso é um parâmetro pra ela própria, beleza, né, eu até concordo com isso, né, você tem que ter atitudes antirracistas, não só não ser racista, né, mas isso não pode ser impingido aos outros, isso não pode ser uma coisa… você pode tentar seduzir os outros para a sua ideia, mas não impingir aos outros a sua ideia como sendo a única, né, e aí talvez seja a grande diferença também da peste emocional, porque ela vai construir, né, exatamente porque, como diz o nosso poeta, né, ‘as suas ideias não correspondem aos fatos’, que dizer, o Cazuza fala isso, né, na verdade o ideário dele não corresponde, de fato, aos fatos. Então o que que ele vai construir? Ele vai construir toda uma racionalização, ideária, em que ele vai acreditar cegamente.. depois a gente vai falar da Hannah Arendt e ela vai falar de vazio do pensamento, né, então nesse vazio do pensamento vai se construir um falso pensamento, vamos dizer assim, uma fake news nossa, uma auto fake news, a gente vai contar uma grande mentira para nós mesmos. Então essa racionalidade ela está descolada de todo o fluxo emocional energético do sujeito”. Eu acho que esse argumento de “não se pode obrigar as pessoas a pensarem como a gente” é muito utilizado para justificar uma postura passiva (e com isso cúmplice e mantenedora) diante de muitas violências, autoritarismos e atrocidades. Ficando no exemplo do racismo, como pode ser errado querer garantir, mesmo que à força, que o racismo deixe de existir? Obviamente pode-se argumentar que não é possível tirar o preconceito do coração e da mente das pessoas à base da força, e eu certamente concordo com isso; mas em uma sociedade onde o racismo permite que pessoas negras sejam assassinadas diariamente sem que nada aconteça, em uma sociedade onde um policial, tão certo de que assassinar uma pessoa negra é algo legítimo, mata um homem sufocando-o na frente de várias testemunhas e câmeras, em uma sociedade na qual policiais espancam e assassinam pessoas negras na rua sem o menor constrangimento, em uma sociedade assim eu entendo que querer que pessoas não sejam racistas é um dever moral que não passa perto de qualquer coisa que possa chamar de peste emocional. Acho que um debate sobre a diferença entre a violência do opressor e a resistência do oprimido é urgente. Matar alguém sufocado, entrangulando-o por mais de três minutos, é tortura, e isso é algo abjeto, algo que eu não veria, a princípio, problema em ser categorizado como um comportamento empesteado; desejar que um torturador seja torturado, por mais que eu possa entender os sentimentos legítimos de onde esse desejo advém, também é algo abjeto, nem a tortura justifica a tortura, e eu concordaria com uma classificação desse desejo como empesteado; desejar que um torturador convicto morra, para mim, é algo saudável e indicativo de uma mente razoável. Mais para frente na aula o Pedro trouxe que não seria um comportamento empesteado nós agirmos contra aquilo que nos “afeta diretamente”, e achei importante que essa ressalva exista, embora eu ache que seria preciso trabalhar mais um pouco em cima do que seria esse “diretamente”. Falando desse comportamento de atacar aquilo que não afeta diretamente, o Pedro deu como exemplo uma pessoa que se incomoda com demonstrações de amor de um casal homossexual, dizendo que se aquilo não afeta diretamente a vida da pessoa, ela não deveria se incomodar; a partir disso, então, eu fiz outra pergunta, pois no meu entender essas questões podem sim afetar diretamente a vida da pessoa, como no caso de pessoas religiosas – para alguém que crê na bíblia ou no corão, por exemplo, a própria existência de homossexuais atenta contra a sua religião, pois diminui a glória de deus no mundo e/ou vai contra as regras que sua religião entende como sagradas. Eu gostei bastante da resposta do Pedro, embora tenha achado que não se aprofundou o suficiente: “Sim, a gente vai entrar nisso muito na questão do totalitarismo, né, porque aí essa coisa como epidemia… quando a peste emocional se torna uma epidemia, e isso é dado a certas condições, ela se torna um movimento social mais amplo, seja ele religioso, seja ele ideário, né, enfim, e aí tem consequências de destruição mesmo dos inimigos”; acho que comparar religiões com uma doença epidêmica é um bom caminho de pensamento. Só não me parece que foi aprofundado o bastante pois em seguida o Pedro começou a dar exemplos que parecem levar para um lugar de “não é que a religião seja o problema, o problema são certos comportamentos fanáticos de algumas pessoas” – bom, para mim toda e qualquer religião é um problema, e problema maior ainda é a nossa sociedade aceitar a religião como se fosse uma necessidade intrínseca ao ser humano. Isso, na minha opinião de merda, é um grande atestado de uma falha que insistimos em manter funcionando – ou, para utilizar do jargão reichiano, isso é uma biopatia do socius, é uma desfuncionalidade que a nossa sociedade produz ao aceitar e cultivar certas formas de pensar e que se volta contra a própria sociedade.

Depois de explorar vários exemplos de comportamentos e ações que considera terem origem na peste emocional, o Pedro falou um pouco sobre Hannah Arendt (1906 – 1975), filósofa judia alemã que cria o conceito de “banalidade do mal” a partir do julgamento de Adolf Eichmman, um oficial nazista que foi responsável pelo projeto de extermínio dos judeus. Arendt participou como repórter do julgamento de Eichmann, escrevendo posteriormente um livro aonde apresenta que Eichmann não era um anti semita, era um cidadão considerado “de bem”, que apenas cumpria ordens com intenção de ascender na sua profissão, incapaz de discernir entre o mal e o bem por conta do um discurso sociopolítico que permeava o seu contexto. Outro conceito que o Pedro trouxe a partir de Hannah Arendt foi o de absolutismo, que seria aquele poder total aonde a figura central, ao invés de ser detestada, é adorada pela população. Dado o horário avançado, ele só conseguiu trazer esses conceitos de forma superficial, e disse que trabalharia melhor essas questões no próximo encontro, junto com questões do livro “Escuta, Zé Ninguém” de Reich.