26 de junho de 2020 – sexta aula de Clínica Psicorporal das Psicoses e dos Transtornos Mentais (primeira parte)

Com a pandemia de COVID-19, as aulas no IFP foram interrompidas; mesmo as últimas aulas pré quarentena (ou isso que chamamos por aqui de quarentena), em março, foram dadas bem no limite das primeiras ações nesse sentido. Tivemos algumas interfaces de contato ainda existentes entre pessoas do Instituto por conta de quatro coisas que aconteceram: um grupo de estudos do Centro de Atendimento Psicoterapêutico, que se reunia semanalmente para estudar um curso sobre Freud e Nietzsche; as supervisões e intervisões da Escuta Sensível, uma modalidade de atendimento por telefone ou videoconferência que o CAP está oferecendo como cuidado emergencial nessa época de quarentena, então temos nos encontrado periodicamente para comentar e debater os casos; um grupo que se reuniu algumas semanas para debater uma atividade proposta pela Denise Dessaune, professora de Vegetoterapia II, que deveria ser feita em grupo; encontros/aulas que o Henrique, professor desse curso (Clínica Psicorporal das Psicoses e dos Transtornos Mentais), puxou, que ele insistiu que não fossem considerados aulas do curso mas que eu entendi como algo bem próximo disso. Assim, não houve um completo desligamento das pessoas da formação durante esse período de quarentena; pelo contrário, essa confusão toda que estamos vivendo até proporcionou o surgimento de uma coisa muito interessante, a Escuta Sensível do CAP, que inclusive foi como eu atendi como psicoterapeuta pela primeira vez.

No meio de tudo isso, entretanto, não houve muito diálogo sobre a relação entre o Instituto e as pessoas da formação, e o pouco que houve foi entre algumas pessoas apenas, pois o Instituto, enquanto tal, não procurou dialogar de forma alguma conosco. Mesmo entre as pessoas da formação o dialogo era pouco, as coisas foram acontecendo mais por iniciativa de uma e outra pessoa do que pelo esforço conjunto do grupo. Nesse cenário, algumas pessoas acreditavam que o semestre da formação deveria ser encerrado através de aulas por videoconferência, eu imagino que isso chegou de alguma forma à coordenação do Instituto, e sem nenhum aviso prévio chega um e-mail dessa coordenação marcando as aulas, informando que as “teóricas” aconteceriam em dois encontros separados por 14 dias, e que a “prática” teria uma aula online e outra presencial, essa a marcar. Eu não me senti satisfeito com esse esquema, mas como haviam muitas outras coisas me atravessando nesse momento e como não houve nenhuma manifestação sobre isso por parte das outras pessoas, resolvi apenas “seguir o fluxo”.

O Henrique iniciou essa aula dizendo que exploraria dois transtornos nela, o obssessivo compulsivo (TOC) e o de estresse pós traumático (TEPT); para ele, o TOC seria “mais democrático”, no sentido de atinge mais pessoas em extratos sociais distintos, ou seja, não tem um marcador determinante de classe, enquanto que o TEPT atinge mais as pessoas que estão expostas à violência, o que em nossa sociedade acontece muito patentemente com as pessoas das classes populares.

Umas das primeiras coisas que ele falou em relação a esses transtornos foi a questão do laudo, que muitos vezes é exigido pelo trabalho da pessoa; ele ressaltou a necessidade de se ter muito cuidado nessa produção do laudo, pois se torna um documento que pode ser utilizado para fins que lhe fogem do controle (ao chegar nas mãos do empregador da pessoa, por exemplo). Um grande perigo nisso é que ao assumir esse estatuto de documento, o laudo acaba por determinar quem é esse sujeito (em termo de sua saúde mental), lhe congelando em uma identidade e, assim, lhe impedindo de se construir a partir de outras referências, ao menos nos espaços em que esse laudo seja utilizado dessa forma. Esse laudo, vale ressaltar, é algo que só pode ser construído por um psicólogo, alguém formado em psicologia e/ou registrado no conselho profissional da categoria; assim, não é algo que um psicoterapeuta possa oferecer – embora hoje em dia as fronteiras entre psicoterapia e psicologia clínica estejam muito borradas, elas existem e seria muito importante serem mais seriamente discutidas. A forma que o Henrique utiliza para construir seus laudos em casos como esse me pareceu muito interessante: ele deu o exemplo a partir de um caso de TOC, e disse que num laudo assim ele ressaltaria que a condição de compulsividade/obsessividade da pessoa a torna muito focada e competente em seu trabalho (ou seja, ele usa o documento que poderia ser motivo de afastamento do emprego como um peso a mais para a permanência dessa pessoa em seu trabalho), e que ela necessita de acompanhamento terapêutico porque suas questões emocionais, que atravessam o campo pessoal e familiar, podem lhe trazer muitos transtornos se não forem trabalhadas, o que poderia inclusive acarretar em danos para o trabalho. Eu achei essa solução muito interessante, pois não apela para mentiras, ocultações ou jogos de palavras, mas também não defende uma posição neutra do psicólogo, o inserindo no contexto e lhe implicando a responsabilidade por aquilo que produz.

Depois ele trouxe que a característica principal de uma pessoa obsessiva compulsiva seria “uma necessidade imensa de manter a ordem”, algo que estaria ligado a uma necessidade de controle por parte da pessoa, e a perda desse controle significa para essa pessoa uma dor muito grande. Eu sempre tendo a achar que nesse campo psicanalítico se generaliza por demais alguns conceitos, tornando eles assim um tanto sem sentido; acho que com a ideia de “controle” isso acontece, pois embora seja evidente que no caso de alguém com um TOC muito agudo existe uma desfuncionalidade (sempre lembro de uma entrevista que vi há muito anos com a Luciana Vendramini aonde ela narrava uma situação aonde ficou paralisada porque entrou em um ciclo de que para fazer A ela precisa fazer B, para fazer B precisava fazer C mas para fazer C precisava fazer A, era algo com entrar no carro, não lembro exatamente da situação, mas lembro dela dizendo que entendia o quão sem sentido eram aquelas coisas mas que ela não conseguia simplesmente se convencer a não fazê-las, mas como fazê-las era impossível dado essa estrutura circular, ela simplesmente paralisou na calçada, em extremo sofrimento psíquico, que se bem me lembro evoluiu até para problema com exposição prolongada ao sol, dada a gravidade da situação e do tempo que ela ficou nela), acho que atribuir uma diversidade de comportamentos à unicausalidade do controle é um tanto reducionista – bom, a Psicanálise como um todo é reducionista, se olharmos com cuidado, pois quer justamente reduzir uma gama complexa de características e comportamento a um punhado de causas, causas essas que derivam de uma única estrutura. Afinal, se pensarmos nos termos, uma obsessão é um pensamento que você não consegue deixar de ter, e uma compulsão é um comportamento que você não consegue evitar de fazer; esses não seriam, justamente, aspectos de uma falta de controle da pessoa?

Dentro desses determinismos que povoam com presença inescapável a Psicanálise e seus derivados, sempre surge com muita evidência o sexismo; já citei em vários outros relatos como os exemplos sempre são no masculino, o que não deveria chamar a atenção visto que o português utiliza o masculino como comum de dois gêneros, mas se torna grosseiramente visível a construção de gênero para além da questão linguística quando em quase todos os exemplos de caráter histérico se utiliza o feminino – é sempre “o obsessivo”, “o impulsivo”, “o masoquista” e tantos outros “o”, mas é sempre “a histérica”. Nessa aula também ocorreu algo interessante nesse sentido: o Henrique foi falando da constituição corporal de uma pessoa obsessiva compulsiva, de como essa questão do controle impede que essas pessoas vivam plenamente o afeto e como isso se reflete em seus corpos como uma contenção, um enrijecimento, uma falta de mobilidade, e ele citou que isso seria especialmente verdade no caso da pélvis de um obsessivo-compulsivo, pois toda vez que ele quer viver esse prazer sexual ele fica tão ansioso, ele fica tão angustiado que ele tem ou 1) ejaculação precoce ou 2) não sustentação da ereção peniana; na verdade a gente está falando de uma pessoa que está impotente orgasticamente, é uma grande característica desse… TOC”. Ou seja, a problemática que o transtorno traz para a vida de uma pessoa no campo sexual só se traduz em problemas para indivíduos que possuem pênis – isso não faria o mínimo sentido em qualquer teoria que se propusesse minimamente séria. Mas a frase do Henrique deu a impressão de que ficaria por aí, não fosse a pergunta de uma aluna, que com uma pequena frase apenas ressaltou o evidente “Na mulher é o que?”, ao que ele respondeu “Na mulher é vaginismo, por exemplo (…) a secura vaginal… tem outras possibilidades, entendeu? Às vezes até a sustentação do prazer, pode causar uma frigidez, por exemplo, né, a dificuldade de viver o prazer. Às vezes só consegue ter orgasmo pela via clitoriana, mas não de uma forma prazerosa, mas de uma forma angustiada, como se fosse uma descarga dessa angústia de qualquer jeito, então… às vezes, mulheres obsessivas compulsivas em exagero, elas produzem feridas no clitóris violentas, às vezes elas produzem sangue no movimento de masturbação dela – como o homem, também”. A ideia aqui é apontar como existe essa questão do machismo estrutural e estruturante dentro da teoria reichiana (e psicanalítica, de uma forma geral), e que se queremos superá-la precisamos estar dispostas a questionar esses pressupostos, mesmo que isso venha a pôr abaixo todo o resto (e, se vem, o problema é muito maior do que podemos imaginar – não creio que seja o caso, contudo); mas é importante a compreensão de que esse movimento de questionamento também não pode se dar pelo fetiche, pela pretensão de assumir uma “postura crítica” sem assumir as responsabilidades que isso movimenta. É preciso pesquisar, investigar, ler, escrever, discutir, comparar, refletir, ouvir e falar.

Depois desse ponto o Henrique continuou listando mais algumas características corporais do obsessivo-compulsivo, falou de enrijecimento na região cervical, dificuldade de respiração e outras coisas que foi desdobrando disso. Algo que eu achei interessante, e que, se não me engano, ele já havia trazido em algumas das aulas anteriores, foi ele dizer que esses comportamentos repetitivos de uma pessoa obsessiva compulsiva (ele deu como exemplo a pessoa que sempre ajeita os papéis em cima de uma mesa) são “delírios corporais”: “é a forma que o corpo dele está encontrando para fazer uma descarga desse quantum energético que está comprimindo ele emocionalmente e psiquicamente e, logicamente, no próprio corpo”. Para mim isso é algo interessante porque não me parece que o conceito de delírio é imediatamente traduzível para essas ações corporais, então acho que pode ser algo interessante de se pensar sobre.

Em continuidade a essa questão das características corporais da pessoa obsessiva-compulsiva, o Henrique entrou em detalhes sobre o processo clínico terapêutico a ser feito com pessoa com esse quadro, dentro da perspectiva reichiana; ele foi em muitos detalhes e trouxe um bom número de exemplos, então como o relato já está um pouco grande acho que o melhor é não aprofundar nessa questão. Mas toda a questão, segundo a apresentação que ele fez, gira em torno de se ter cuidado redobrado com a questão da construção da confiança na relação terapêutica, pois uma pessoa com TOC seria uma pessoa com muito medo (daí a necessidade de controle – não temos medo daquilo que está sob nosso controle), então o trabalho terapêutico tem que ser “pelas beiradas”, para que essa confiança possa ser construída sem grandes percalços. Aí dentro dessa questão o Henrique trouxe novamente a questão da ejaculação precoce ser uma característica que advém do controle, e isso me colocou para pensar em algumas coisas e eu aproveitei um momento que ele perguntou se haviam perguntas para colocar essas questões. Eu quis saber, primeiro, como ele via os tratamentos para ejaculação precoce que são oferecidos pela “medicina tradicional”, e perguntei até como seriam esses tratamentos (a minha intenção aqui era explorar uma comparação entre os métodos, pois imagino que esse tipo de tratamento que é propagandeado na televisão deve passar longe de um processo psicoterapêutico); segundo, perguntei como ficava o fenômeno oposto, da ejaculação tardia, que podia tanto existir por causas “naturais” (citei um conhecido na adolescência que se queixava disso, de demorar muito a ejacular e mesmo, por vezes, não conseguir) quanto por intervenções medicamentosas (outro conhecido relatou o mesmo efeito quando tomava medicação antidepressiva e uma paciente minha relatou que o companheiro demorava notadamente a ejacular quando utilizava cocaína). Ele começou a endereçar a minha questão falando que podem existir os dois extremos do comportamento de uma pessoa obsessiva-compulsiva em relação ao desejo sexual, ou seja, ela pode ser uma pessoa que tem um excesso de desejo e que procurar fazer sexo o tempo todo (uma compulsividade), mas também existe esse fenômeno da ejaculação precoce, da não sustentação da ereção, do vaginismo. Ele disse que essas questões não tem uma origem fisiológica, mas seriam somato psíquicas; disso ele entrou em uma fala sobre exames que detectariam causas físicas, mas não construiu uma argumentação, apenas foi emendando frases, até chegar em “em ambos os casos é ansiedade”, de onde ele foi indo novamente por um caminho de descrição e considerações sobre a prática clínica, indo “desaguar” em reflexões sobre as dificuldades do trabalho do terapeuta corporal nesses tempos de atendimento online, e depois de explorar um pouco essa questão ele foi chegando próximo da minha questão, mas a conclusão foi apenas um “[o que essas clínicas oferecem] são só ferramentas, a resolução da questão é mais profunda”. Assim, não senti que as minhas perguntas foram respondidas, e sempre fico com a impressão, nesses casos, de que a não resposta vem de uma não compreensão da minha pergunta; não uma não compreensão no sentido de que a minha pergunta foi complexa ou algo do tipo (essa específica, por exemplo, eu considero bastante simples), mas de que o próprio fato de haver uma dúvida possível sobre aquela temática não foi compreendido. A resposta que o Henrique construiu, por exemplo, me parece que se adequa a uma pergunta do tipo “como trabalhar a ejaculação precoce na clínica psicorporal?”, enquanto a minha pergunta foi em outro sentido, buscando ouvir mais e colocar em debate uma comparação entre a abordagem psicorporal e outras abordagens, de entender o que na abordagem escolhida pelo Henrique o fez escolhê-la, e entender se ele enxerga algo de equivocado nas outras abordagens. Da mesma forma, a minha pergunta sobre ejaculação tardia era pra ampliar o campo da discussão, pois se a ejaculação precoce vem de uma ansiedade e de uma insegurança, em cima do que se constrói o outro extremo? Certamente para um reichiano não seria em cima da calma e da segurança; seria em cima do que, então? Tenho a compreensão de que debater essa questão assim não a encerraria de forma alguma, imagino que para avançarmos consistentemente nisso é necessário pesquisa, consultar o que já foi produzido nesse sentido, formular hipótese e buscar testá-las; mas me parece que iniciar o diálogo sobre uma questão percebendo que existem outras abordagem possíveis sobre uma questão é um bom caminho para não nos limitarmos às nossas verdades, nossas bolhas e nossas caixas de ressonância.