27 de junho de 2020 – sexta aula de Vegetoterapia II (primeira parte)

A Denise iniciou essa aula, que foi por videoconferência, dizendo que pretendia usar apenas uma hora, ao invés dos noventa minutos sinalizados no e-mail que a coordenação nos enviou, para poder dedicar mais tempo à “parte prática”, que pretende construir conosco quando houver possibilidade de nos encontrarmos presencialmente. Isso foi algo que me chamou a atenção, pois como trouxe à tona a questão da matemática dos minutos das aulas me fez pensar o seguinte: na formação, cada curso é constituído de quatro “tempos” de 50 minutos (mais 10 minutos para um intervalo – sempre achei equivocado esse sistema que obriga a pessoa a estar em um lugar mas não lhe remunera esse tempo a título de “intervalo”, ainda mais em um caso assim, aonde está óbvio que a pessoa não vai poder nem sair do ambiente em um intervalo de 10 minutos. Mas essa é uma outra discussão, para um outro espaço), o que totaliza 200 minutos (três horas e vinte minutos) de aula – assim, ao propor duas aulas de 90 minutos (uma hora e meia) por videoconferência a coordenação já está eliminado 20 minutos da última aula dos cursos. Não acho isso algo horrível, tanto que não me chamou a atenção até que a questão do tempo fosse colocada em jogo pela Denise; mas acho que seria minimamente adequado que a questão fosse endereçada, explicar o porque tomamos nossas decisões ajuda no processo de entendê-las e construir opiniões sobre elas. Mas outra coisa se somou a isso para mim: na quinta aula que tivemos, quando a pandemia já havia chegado por aqui mas a quarentena ainda não havia sido decretada oficialmente, a própria Denise relatou que estava tendo problemas com a universidade que sua filha cursava, pois eles iriam substituir as aulas presenciais por aulas online e ela achava que eles deveriam reduzir, então, o preço da mensalidade – no entanto, a pessoa que pensa assim não tocou nesse assunto de redução do valor conosco, mesmo que o exato movimento que ela criticou na universidade da filha tenha acontecido aqui também. Claro, pode ser que ela tenha pontuado isso na reunião que a coordenação fez e tenha sido voto vencido, tendo ficado combinado que as decisões deveriam sempre ser a do coletivo e não do indivíduo; mas, ainda assim, acho uma pontuação interessante, visto que ela sentiu a necessidade de marcar que deixaria de dar meia hora da “parte teórica” da aula para que pudesse dar mais meia hora da “parte prática” – se ela acha coerente que a aula online seja menos cara do que a aula presencial, por que essa necessidade de “cronometrar” o tempo? Se não podia diminuir o valor por conta de uma decisão coletiva, por que então não ignorar um pouco o relógio para compensar isso?

Depois de fazer essa consideração sobre o tempo, ela informou que “se estivesse tudo normal” essa última aula seria sobre a integração dos sete segmentos corporais no trabalho clínico, pois durante o curso nós trabalhamos os segmentos de forma separada para entender a dinâmica de cada um mas, segundo a Denise, no trabalho clínico “a dinâmica não é assim tão estrita. A partir dessa fala sobre a não-fragmentação do trabalho, ela entrou em considerações sobre a transferência no processo terapêutico, de como essa relação transferencial deve ser utilizada diagnosticamente dentro do processo de intervenção na couraça muscular, ou seja, essas intervenções não devem ser feitas de forma mecânica, pré-determinada, mas sempre devem atender a alguma demanda da própria situação analítica – isso é algo que Reich reforça muito na primeira parte do livro Análise do Caráter, de como a técnica de cada caso ira surgir a partir das questões do próprio caso.

Enquanto falava disso a Denise trouxe uma fala que eu acho muito interessante para pensar o processo analítico, do ponto de vista de entender os seus limites e as críticas que lhe são feitas; ela disse: “lembrando que você é aquele que vai ressignificar as memórias, vai ressignificar as sensações e memórias vividas pelo paciente na sua história real lá atrás”. Uma das críticas feitas à Psicanálise (e seus derivados) é, justamente, que ela trabalha com uma ressignificação das memórias da pessoa, no sentido de que lhe constrói memórias que não existiriam se não fosse pela relação analítica – aqui é muito significativo o uso do termo “constrói” ao invés de “resgata” ou outra coisa do tipo. Os estudos sobre a memória tem cada vez mais apontado que ela não funciona como um arquivo, ou como um HD ou pendrive de computador, ou seja, que a nossa memória não é um lugar que armazena as coisas que sentimos/vivemos; em seu artigo “Memory Formation and Belief” (“Formação da Memória e Crença”, em tradução livre) (http://www.crossingdialogues.com/Ms-A14-03.pdf), publicado na revista “Dialogues in Philosophy, Mental and Neuro Sciences” (que só pela proposta de diálogo entre essas áreas já merece a nossa atenção), a doutora Tzofit Ofengenden faz um pequeno apanhado das descobertas e pesquisas na área dos estudos da memória (vale salientar que o artigo é de 2014), e logo no início do artigo ela diz: “Memory is not a literal reproduction of the past, but instead an ongoing constructive process. Memories are modified and reconstructed repeatedly” (“Memória não é uma reprodução literal do passado, mas antes um processo construtivo em curso. Memórias são modificadas e reconstruídas repetidamente”). Isso ajuda a entender (não é “explica”, mas sim “ajuda a entender” – uma diferença fundamental), entre outras coisas, por que tantos analistas, quando questionados, falam coisas como “mas na minha experiência clínica isso sempre funcionou dessa forma” – a se levar em conta outras coisas importantíssimas como os vieses cognitivos provavelmente funcionando “a pleno vapor” em um caso desses (penso aqui especialmente no viés de confirmação e no viés do sobrevivente), pensar os processos mnemônicos como um construção nos coloca, ou deveria nos colocar, a hipótese de não somente a teoria clínica é confirmada pela prática clínica, mas que essa prática clínica cria a sua própria confirmação. Há uma questão de poder inegável na relação analítica, pois para ficarmos em um só ponto básico, a pessoa que procurou a análise acredita, de alguma forma, que você detêm um conhecimento sobre ela que ela mesma não possui – claro que existem considerações a serem feitas sobre a resistência, a transferência negativa latente e todas essas coisas, mas no próprio IFP eu já ouvi várias vezes que as pessoas fálico-narcisistas só procuram a análise como último recurso, justamente por não poderem admitir que alguém pode saber mais delas do que elas mesmas. Então, dada essa relação de poder, e entendida a memória como um processo construtivo, o analista parte das suas verdades teóricas sobre a importância das experiências infantis na vida da pessoa para, justamente, fazer um trabalho com essas memórias – um trabalho, como disse a Denise, de ressignificação. Assim, é possível supor que o trabalho psicanalítico pode, ao invés de descobrir um conflito na vida da pessoa e lhe ajudar a resolvê-lo, construir um conflito na vida da pessoa para o qual a Psicanálise já possui as soluções. Não estou dizendo que isso é ou não é dessa forma, mas acho que no mínimo seria irresponsável não salientar a pertinência de tal crítica quando a questão é levantada tão patentemente na fala de uma analista.

Após isso, ainda na linha de demonstrar como o trabalho com a vegetoterapia deve ser feito a partir do entendimento da pessoa como um todo, a Denise apresentou que uma das primeiras coisas a serem feitas nesse sentido, passadas as etapas iniciais de entrevista e elaboração do contrato com o paciente, é uma avaliação biofísica, que seria o terapeuta “percorrer um pouco cada um dos segmentos, cada um dos sete segmentos, nos pontos principais de tensão e ver como o paciente se relaciona com esses toques que você vai dar em cada um desses segmentos (…) e aí você vai encontrar pontos de maior ou de menor tensão, pontos hipertônicos, pontos hipotônicos, pra você ter um quadro da estrutura biofísica do paciente”; a partir disso foi dando alguns exemplos do que se poderia detectar em cada um dos segmentos com esses toques e essa avaliação. Foi interessante para mim quando a Denise falou que essas informações ajudam a construir “o diagnóstico da estrutura de caráter do paciente. Que não é tão importante assim que a gente tenha na segunda, na terceira, na quarta, na quinta sessão já ‘ah, esse paciente é uma estrutura oral’ ou ‘é uma estrutura fálica’ ou ‘é uma estrutura histérica’, né, porque as coisas vão, na verdade, os dados vão sendo colhidos gradativamente”; isso foi interessante pois por mais que se fale isso dentro do Instituto, o que vejo vindo das pessoas que estão atendendo e, pior, muitas vezes sendo ensinado, é justamente uma pressa na rotulação das pessoas dentro de uma dessas estruturas de caráter – e, para além disso, como até já comentei com uma amiga da formação, essas rotulações são feitas majoritariamente dentro das estruturas “mais badaladas”, sendo as campeãs “o obsessivo-compulsivo” e “a histérica”, sendo que aparecem orais e fálico-narcisistas aqui-e-ali. Mesmo um professor que sinalizava repetidamente em suas aulas que Reich dizia existirem tantos tipos de caráter quanto as sociedades puderem produzir, quando nos colocou para exercitar as questões levou justamente para esse lado da rotulação, do “diagnóstico da estrutura de caráter”. Então quando alguma professora traz essa questão, o que é interessante pra mim não é o “fato puro” desse algo importante ter sido trazido, nem somente o fato de que aquilo está sendo “dito/ouvido e não praticado”, mas a relação entre essas duas coisas, ou seja, como que é dito “não façam X” para um grupo que muitas vezes faz X e nenhuma reação advém disso; o ideal (na minha opinião de merda) seria ninguém pender para esse lado da rotulação, mas acredito que isso acontecendo, as pessoas deveriam ao menos questionar quando algo assim fosse dito, mesmo que fosse com coisas tipo “mas Denise, eu atendi essa pessoa que isso, aquilo e aquilo outro na primeira sessão, e isso claramente é uma estrutura Y”, pois assim ao menos um diálogo se abriria como possibilidade. Mas com o silêncio, nada é dito, e parece que nada é modificado também; e acho que isso seria muito importante de ser mais observado dentro da formação, porque é muito simples entendermos o apelo que um “manual” exerce sobre quem está começando em alguma área, ainda mais em um campo tão “solitário” quanto a análise (por mais que você estude em grupo, faça supervisão em grupo, talvez até faça terapia em grupo e mesmo atenda em um grupo, você enquanto terapeuta está com a responsabilidade nas suas mãos, indivisível e intransferível); justamente por isso penso que na formação isso deveria ser uma questão à qual se desse mais atenção, e se a opção fosse entre oferecer ou não algo que pudesse ser usado como manual (e, obviamente, a realidade não é tão limitada assim), acredito que o tempo dedicado a trabalhar exemplos que fugissem do lugar-comum teria efeitos muito mais produtivos do que continuar a trabalhar coisas que reforçam os rótulos e comportamento estereotipador.

Após essa parte a Denise perguntou se haviam dúvidas, abrindo para o diálogo, e eu trouxe uma questão, pois ela havia falado como o trabalho com o segmento ocular, que tem relação direta com o contato, é fundamental e sempre deve ser feito, mesmo em situações que ela chamou de SOS (por exemplo, uma professora atendendo um aluno que teve crise de asma no meio da aula); isso me fez pensar em como quem pensa assim encara o trabalho freudiano, aonde esse contato visual não existe, o setting é com o paciente deitado no divã com o analista atrás dele. A resposta dela foi inicialmente no sentido de “é outra abordagem”, ou seja, não endereçando a questão (afinal, evidente que é outra abordagem, a minha questão se baseou justamente nisso), e depois trouxe algumas indicações de percepções dentro da Psicanálise que alteram esse paradigma. As duas próximas perguntas foram no sentido de “existe uma sistematização disso?”, que pode tanto ir para um lado que faz eco à coisa que já falei aqui do “manual”, quanto também pode ir para um lado do aprofundamento, análise e crítica – não sei para qual dos lados pendia mais ou menos essas perguntas, pois a coisa não foi muito aprofundada. Dando seguimento a essas perguntas a Denise perguntou quem estava atendendo online, e em resposta surgiram quatro ou cinco relatos de como estava sendo essa experiência, sendo muito interessante poder ouvir outras pessoas e ver que mesmo que estejam falando sobre a mesma coisa as experiências sempre são marcadas por pontos diferentes, focos diferentes, questões diferentes. Algo que achei muito significativo ter aparecido na maioria dos relatos, que aparece na minha experiência também e que a Denise disse que todos os seus colegas tem relatado é um grande cansaço após esses atendimentos remotos – acho que esse é um tema muito interessante a ser pesquisado.