04 de julho de 2020 – sexta aula de Clínica Psicorporal das Psicoses e dos Transtornos Mentais (segunda parte)

Iniciamos essa aula com o Henrique dizendo que falaria sobre o Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT), e a primeira questão que ele levantou sobre isso foi o impacto que a situação sócio econômica do indivíduo tem nesse tipo de transtorno; tendo estreita ligação com o conceito de trauma, esse tipo de transtorno tem campo mais fértil para a sua instalação em situações aonde acontecimentos traumáticos sejam mais presentes. Um “tipo ideal” de situação para pensarmos nisso seria a guerra, pois para além de todos os episódios abjetos que populam esse tipo de situação, em uma guerra a vida é coisificada em um nível muito extremo, ligando-se à necessidade do indivíduo de preservação da sua vida – se não encarar o inimigo como algo a ser eliminado, uma pessoa não tem muitas chances de sobreviver em uma guerra. O que eu acho muito interessante de pensarmos nisso e que acabamos por não explorar muito na aula é como mesmo em um cenário desgraçado (e desgraçante) como a guerra a necessidade de construir relações, de expressar afetos e mesmo a empatia ainda encontram espaço para se manifestar. Muito comuns são os relatos de pessoas que participaram de guerras e falam do sentimento de irmandade que existia em seu pelotão, companhia ou agrupamento; mas o que eu acho mais interessante é pensar nos momentos aonde esse “lado humano” se apresenta em relação aos inimigos – um episódio muito significativo nesse sentido é a trégua de natal entre ingleses e alemães na Primeira Guerra Mundial, quando membros de exércitos inimigos ajudaram-se mutuamente a enterrar seus mortos, trocaram memorabílias como botões dos uniformes e distintivos, brindaram juntos e até jogaram o que de certo ângulo pode ser entendida como a mais bela partida de futebol da história (https://www.telegraph.co.uk/sport/football/teams/england/10455611/England-v-Germany-when-rivals-staged-beautiful-game-on-the-Somme.html). Pensar nisso me reforça a ideia do quão efetivo e planejado é o processo de mortificação da vida engendrado e posto em movimento por nossa sociedade, pois se você força as pessoas a serem monstros em um evento tão abominável como a guerra, ainda se tratará de um episódio na vida daquelas pessoas, e por mais que eu não acredite em valores humanos intrínsecos, também não consigo conceber as pessoas como um compilado de perversões esperando uma oportunidade de se manifestar; não somos criaturas perfeitas maculadas pela vilania da sociedade, mas tampouco somos bestas cuja perversidade é freada por nossas leis e normas. Então penso que nisso, assim como em outros aspectos da nossa vida, um certo “efeito mola” se processa, ou seja, se você estressa muito em uma direção, se estica demais para um lado, ou se comprime muito em uma direção, existirá uma força muito grande se acumulando para a direção oposta; a guerra, então, seria um momento aonde muita pressão é exercida nesse sentido da coisificação da vida, o que gera um impulso na direção oposta muito forte. Mas na nossa sociedade atual, por mais que não haja um cenário de guerra como foi a Primeira Guerra Mundial, vivemos vários tempos e espaços de situações tão execráveis quanto, só que diluídas, no tempo e no espaço, de forma que essa pressão em direção às atrocidades não seja exercida de forma contínua, não gerando, assim, esse “efeito mola”.

Dentro desse assunto da construção do trauma, o Henrique falou do momento que estamos vivendo, com a pandemia de COVID-19 e o cenário social de um certo distanciamento e enclausuramento, de como isso pode ser uma experiência traumática na vida de muitas pessoas; isso me lembrou uma reflexão que tive, influenciado por coisas que ouvi em um podcast em que se discutia sobre a questão das prisões. Muitas pessoas de classe média estão tendo dificuldades em ficar em casa durante essa pandemia, ficam ansiosas, não conseguem produzir nada, se sentem deprimidas, pessoas que moram com outras veem as suas relações abaladas, e tantos outros problemas que qualquer pessoa passando por esse período já ouviu aqui e ali; quando faço questão de destacar “classe média” é para colocar que essas são pessoas com acesso à internet, que podem assistir televisão à hora que quiserem, ler os livros que possuem e mesmo comprar novos, que podem ter acesso a vários cursos que já existiam gratuitamente na internet ou então que foram oferecidos justamente por conta da pandemia, pessoas que mesmo com limitações ainda podem sair de casa para caminhar, para ir ao mercado, para conversar com os vizinhos, pessoas que podem desenvolver a si e a seus projetos durante esse período, ou mesmo podem ficar fazendo o mínimo que lhes caiba para continuar a serem capazes de cobrir suas necessidades básicas e ficar o resto de tempo fazendo absolutamente nada. Se mesmo essas pessoas com essas condições todas estão experimentando sensações muito desagradáveis, se mesmo com essas possibilidades a vida dessas pessoas não se apresenta como algo prazeroso, construtivo, que lhes faça bem, como podemos pensar que o encarceramento pode fazer bem a qualquer um? Sem acrescentar aqui todos os problemas que se somam em nosso sistema carcerário, como podemos passar por essa experiência e não nos dar conta de que prender alguém não gera uma pessoa melhor, mesmo que seja em uma casa com televisão, internet, comida, possibilidade de ficar só, de ler, de estudar, de se exercitar, podendo sair no momento que quiser? Essa experiência social pela qual estamos passando no mínimo deveria abalar a fé que algumas pessoas tem de que pode existir uma boa prisão, que vá cumprir uma função “ressocializadora”, por mais bucólica que possa ser, pois estamos vendo em nosso dia-a-dia pessoas se deteriorando frente a essa pseudo-quarentena que estamos vivendo, que nem tem cinco meses – como pensar que trinta anos de prisão pode fazer algum bem, seja à pessoa presa ou seja à sociedade que a prende e para a qual ela vai voltar quando cumprir a sua pena?

Nessa aula surgiram algumas questões que apontam para o problema que eu vejo e que já abordei em alguns relatos aqui no blog, que é o determinismo que paira sobre a teoria reichiana em específico e psicanalítica em geral; por mais que em quase todos os cursos os professores e professora tenham falado em algum momento sobre evitar o determinismo, sobre como entendem a teoria reichiana como portadora de “muita fluidez”, de como não devemos tomar a tipologia caracteriológica como fechada e tantos outros exemplos, mas na prática o que percebo na formação é um reforço desse tipo de determinismo, mesmo que através de um “currículo oculto” (uso aspas pois sei que esse é um conceito preciso da Pedagogia e não tenho certeza se o estou utilizando propriamente). E eu fico inclusive muito surpreso com a dificuldade que as pessoas apresentam em entender a teoria reichiana como extremamente determinista; isso me parece advir de um esforço revisionista sobre o trabalho de Reich, um revisionismo que concilia muitos fatores diferentes e que eu provavelmente desconheço, mas certamente para mim passa pelo apelo que o campo reichiano exerce sobre a “galera good vibes”, assim como o trabalho dele com a sex-pol dialoga com pessoas mais próximas ao campo libertário dentro de movimentos sociais; a isso se junta uma dificuldade de entender que a obra de Reich possui, no mínimo, dois momentos claramente distintos e que só dialogam através de revisões e adaptações obviamente enxertadas pelo autor para dar criar uma impressão de coerência no conjunto de trabalho teórico (fato que confirma isso, a meu ver, são as notas de rodapé do livro Análise do Caráter incluídas na terceira edição da obra por Reich para conciliar suas descrições psicanalíticas com seus conceitos advindos da invenção da orgonomia). Assim, a obra reichiana atrai a curiosidade e o interesse de pessoas que procuram tornar o mundo um lugar melhor (dentro de várias acepções possíveis; estou usando propositalmente uma categorização ampla e genérica), e essas pessoas, crendo encontrar em Reich um suporte teórico e prático para suas intenções, não conseguem perceber quando a realidade lhes dá exemplos de que isso não é possível. Um caso bem patente disso é a posição de Reich sobre a homossexualidade: para ele, toda homossexualidade é fixação em elementos pré-genitais da sexualidade, e toda fixação em elementos pré-genitais da sexualidade é neurótica, e toda neurose é doença; mas em duas situações onde eu falei na formação que para Reich a homossexualidade é uma doença, a reação de interrupção, negação e correção foi imediata – os bons argumentos, no entanto, ainda são esperados. Nessa aula específica, esse determinismo apareceu a partir da junção da ideia de caráteres com o conceito de trauma; a pergunta “quais tipos de caráter são mais propensos ao trauma?” e a ideia de que pode haver um certo tipo de resposta predominante na vida de alguém que sofreu um trauma (no sentido de imperar certos traços caracterológicos) atravessaram centralmente um bom pedaço da aula, e simplesmente pareceu para as pessoas que isso fazia completo sentido. Uma coisa que nunca deixa de me surpreender é a diversidade humana, o quão diferentes as pessoas conseguem ser, e mesmo quando achamos que conseguimos criar uma categoria para unir um grupo bem específico, basta olhar um pouco mais de perto ou com um pouquinho mais de cuidado que você vai ver as diferenças em operação (por isso é tão estúpida a ideia de que se precisa construir o dissenso – o dissenso já está dado!). Então de nada adianta falar que Reich não criou uma tipologia fechada de caráteres, que ele fala que “existirão tantos tipos de caráter quanto as sociedades puderem criar”, se na prática você apenas lista oito e centra seus exemplos em três ou quatro.