20 de fevereiro de 2021 – primeira aula de Orgonoterapia

A Denise iniciou essa primeira aula apresentando a ideia do curso, dizendo que “a orgonoterapia é a parte clínica da orgonoterapia” (que, eu imagino, ela quis dizer “orgonomia” ao invés de repetir “orgonoterapia”), e mostrando como ela fará mais sentido para as pessoas que já tenham feito os outros cursos da formação, pois ela falou em “revisão” dos conteúdos. Isso é uma fala interessante e que passou razoavelmente desapercebida pelas pessoas, acredito, pois ela levanta um problema com essa estrutura “circular” da formação – afinal, alguém poderia estar entrando justamente nesse módulo (o que, inclusive, é verdade nesse semestre) e não teria esse conteúdo acumulado sobre o qual se revisaria algo. A princípio isso não é um problema, pelo contrário, seria uma coisa boa, afinal poderíamos pensar que a pessoa teria um resumo do que iria ver mais à frente no curso; mas o fato é que o desenrolar do curso não é bem esse (digo isso após já ter feito metade do curso orgonoterapia e já estar na reta final da formação), ele realmente pressupõe conhecimentos anteriores sobre a teoria e a prática clínica reichiana, penso que se eu tivesse entrado nesse módulo me sentiria um tanto perdido nas aulas.

A Denise separou alguns textos para cada aula, e disse que além dessas leituras nesse curso as pessoas fariam atendimentos com as técnicas da orgonoterapia aos quais ela prestaria uma espécie de supervisão, mas que isso teria que ser adaptado agora por conta das aulas remotas devido à pandemia. Além dos textos ela fez um roteiro de perguntas para que as pessoas escrevessem sobre o texto, e disse que isso além de permitir que ela perceba a nossa apreensão do texto, cria uma habilidade necessária no meio reichiano que é a habilidade da escrita; achei essa observação interessante, e isso certamente deveria ser mais profundamente discutido ao longo da formação, sobre produção escrita e a responsabilidade sobre isso que se escreve.

Depois dessa apresentação inicial ela falou sobre o pedido dela de que as pessoas que fizessem o curso tivessem e utilizassem uma “manta orgonótica” – já fiz considerações sobre isso antes mesmo das aulas iniciarem, que se interessar vocês podem ler aqui: https://game.noblogs.org/post/2021/02/19/sobre-uma-concepcao-equivocada-em-relacao-a-producao-de-conhecimento/. Essa manta é construída baseando-se no princípio dos acumuladores de energia orgone de Reich: alternam-se camadas de material orgânico e material metálico, que no caso da manta são camadas de tecido de algodão e lã de aço – a ideia é que o material orgânico acumula essa energia da atmosfera e o metal a conduz. A Denise deu uma instrução básica de como fazer essa manta, utilizando para a parte externa um tecido de algodão cru mais grosso (para evitar que a lã de aço fique espetando a pele da pessoa que utilizar a manta), aí colocando uma camada de lã de aço, para a próxima camada utiliza-se aquele tecido de fralda, então intercalam-se três camadas de lã de aço com duas desse tecido (esse número de camadas pode ser maior ou menor, a ideia é que quanto maior esse número mais “potente” fica o efeito da manta), fechando novamente com o tecido mais grosso, e para finalizar fazer algumas fileiras de pontos ao longo da manta, para evitar que a lã de aço corra dentro das camadas. Então a pessoa deve “carregar” a manta, deixando-a no sol por algum tempo antes de utilizar, e não deve deixá-la “carregando” ou utilizar em momentos de tempo nublado, “fechado”, pois isso indicaria a existência de muita energia negativa na atmosfera (essa é outra questão que me incomoda nessas construções, pois relaciona o tempo mais fechado com algo negativo e o tempo mais aberto com coisas positivas – por que causas, motivos, razões ou circunstâncias uma tempestade seria ago ruim?). Mais adiante na aula ela foi categórica em dizer que não se pode utilizar material sintético na construção da manta, assim como se pontuou que não se deve utilizá-la próximo a equipamentos eletrônicos como televisão e celulares (desnecessário comentar, acredito, o descabimento dessa proposta na realidade atual). A primeira coisa que me ocorreu quando ouvi falar dessa manta foi que ela contradiz o hipotético funcionamento do acumulador de orgone proposto por Reich (aliás, não sei dizer se a manta é uma invenção dele ou não), pois esse possui a camada mais externa de material orgânico (geralmente madeira) e a interna de metal, com o meio sendo intercalado entre os dois materiais, e a ideia é que essa configuração direcionaria a energia para o interior da caixa, pois a madeira externa acumularia a energia da atmosfera, que seria conduzida pelo metal para a próxima camada de material orgânico e assim sucessivamente. Mas na manta não há essa direcionalidade possível, pois os dois lados dela são de material orgânico; assim, se essa fantasia da energia orgone se comporta como outros fenômenos que conhecemos, acredito que ela fluiria de um local mais saturado para um menos saturado, então daí faria sentido a ideia de deixá-la “carregando” no sol para então utilizá-la, pois assim ela estaria cheia de energia e ao se cobrir com ela a pessoa estaria “puxando para si” essa energia. Mas, nesse caso, qual a importância desse intermediário, da manta – não seria mais simples a pessoa se expor ao sol diretamente? Perguntei sobre isso para a Denise, e a resposta dela foi basicamente que existem artigos que falam dessa questão da manta não ter a parte externa de metal, que o motivo maior é que a lã de aço pode espetar as pessoas e que, então, o ideal seria utilizar o pano o mais fino possível, mas que isso não afetaria o seu funcionamento. Mais um dessas coisas nas formulações sobre a energia orgone e seus derivados que não parece fazer muito sentido, num momento a ordem dos fatores é importante, no outro nem tanto…

O texto utilizado para essa aula foi um material em espanhol intitulado “Orgonoterapia” de Elsworth Baker; o texto inicia com uma frase que acho muito interessante e se relaciona com algumas considerações que faço também sobre as questões das suposições sobre energia orgone. Ele diz “Este artículo está dirigido especialmente a profesionales que estudian la orgonoterapia. Sólo un físico bien entrenado en siquiatria y medicina orgonómica puede intentar esta forma de terapia. De lo contrario resultaria un desastre”. Percebe-se pela construção da frase que Baker não entende como tarefa simples a prática da orgonoterapia, pois somente um físico bem treinado em psiquiatria e medicina orgonômica poderia praticá-la, sob risco de desastre; não me parece que no IFP se concorda com essa tese, ao menos nessas aulas, pois a Denise mesmo recomendou que, ainda que com a sua supervisão, as pessoas do curso já utilizassem essas técnicas com seus pacientes. Disso eu penso que, grosso modo, se podem tirar duas consequências: ou a compreensão sobre a orgonoterapia das pessoas do IFP não é a mesma de Baker, ou então estão sendo irresponsáveis. Acredito que a primeira hipótese tem mais força. No entanto não acho que seja possível, como infelizmente cada vez mais vejo que muita gente acredita, se retirar um elemento de um corpo teórico sem reavaliar todo esse corpo – não podemos pegar um pedaço que não nos interessa ou com o qual discordamos de uma construção, retirá-lo, e supor que a construção não sofrerá alterações com isso. Então se não concordamos com o posicionamento de Baker de que é preciso conhecimento sólido em física, psiquiatria e orgonomia para utilizar a orgonoterapia, é porque não entendemos a orgonoterapia da mesma forma que o autor; e, importante perceber, o peso que ele coloca nessa questão aponta que não é algo marginal, se uma técnica depende de tantos conhecimentos para poder ser aplicada, é que existe algo complicado de se compreender nela. Então discordar desse ponto do autor não deveria se traduzir em um simples “não concordo com isso”, mas sim em toda uma revisão das fundamentações da orgonoterapia apontadas por ele e explicitação das discordâncias e de onde elas levam – não percebi nada próximo disso sendo feito nessa aula.

A Denise ressaltou a importância que o terapeuta que vá utilizar a orgonoterapia esteja “bem trabalhado na sua terapia pessoal”, visto que o instrumento de trabalho do terapeuta é seu próprio corpo – essa indicação é feita dentro do Instituto para qualquer trabalho terapêutico, seja ele com técnicas de análise do caráter, vegetoterapia ou orgonoterapia, e eu concordo com ela, mas só não vejo sentido de destacar isso como se fosse uma particularidade da orgonoterapia. Ressaltou também a importância do orgonoterapeuta ter um olhar atento para detectar as resistências do paciente, saber distingui-las das manifestações “naturais” da pessoa. Fez considerações sobre as resistências e a teoria do fluxo da energia no corpo, que como a energia fluiria naturalmente no “sentido vertical” do corpo, manifestações “lateralizadas” apontariam para uma resistência do paciente.

Falou que um ponto importante a se prestar atenção no processo terapêutico é na respiração do paciente, que o Baker diz que Reich colocava os pacientes para contar como forma de trabalho com a respiração. Então ela rás uma consideração que eu acho interessante de explorar:

O que a gente precisa trabalhar na respiração? Aumentar a exalação. Normalmente as pessoas tem um processo de inspiração crônica; elas tendem, na nossa sociedade repressora, a inspirar mais do que exalar, do que expirar, então sempre tem um tanto de ar que fica preso. Isso numa sociedade repressora. Hoje me dia a gente vive em uma sociedade com muitos aspectos permissivos, então essa situação já é um pouquinho diferente; é uma pergunta que eu fiz no exercício, da gente pensar que diferença isso traz, ele fala até no próprio texto que a educação permissiva ela é mais danosa do que a educação repressora, né, pois na repressora você tem mais claramente um inimigo, e na permissiva é muita ambivalência, como eu não tenho o acolhimento, pois na permissiva eu posso tudo, mas como eu posso ter raiva, como eu vou ter, é… dessa pessoa que deixa eu fazer tudo? A pessoa tende a ficar sem borda, sem chão, por isso hoje me dia a grande quantidade de pessoas adictas, pessoas borderline, pessoas psicóticas, cada vez aumenta mais esse número de sintomas, em função dessa questão da permissividade.

Primeiramente já me incomoda a ideia de que a nossa sociedade, de alguma maneira, pode ser encarada como algo oposto à repressão – me parece que esse foi o objetivo com a inclusão da palavra “permissiva”, qualificar aquilo que é oposto à repressão (ainda de forma negativa, como o tom geral do exposto dá a entender – provavelmente naquela toada de “os extremos são ruins”). Como falei em pergunta durante a aula, sinto que essa concepção do Baker deveria ser melhor pensada antes de a assumirmos como coerente, dado ele ser notadamente um sujeito conservador e o colégio americano de orgonomia, de uma forma geral, defender posições conservadoras no mínimo complicadas. Daí a categorizar que um tipo de educação é mais danosa do que outra por um único ponto também me parece um absurdo descabido; certamente concordo com a ideia de que a diluição da figura de autoridade, ou a sua colocação em uma posição duplo-vinculadora, é nociva para a manifestação salutar das discordâncias, descontentamentos, oposições, raivas e ódios – mas não penso que essa seria a única diferença a ser destacada entre uma educação repressora e uma que não o seja, mesmo que se vá para o extremo como parece sugerir o termo “permissividade”. E, por fim, acho que esse discurso de “estamos em uma sociedade permissiva” é muito perigoso, pois costuma se sustentar em truísmos rasteiros como “o jovem hoje em dia faz o que quer”, “a família não significa mais nada atualmente”, “não há mais respeito pelos mais velhos” e outros do gênero. É importante fazer perguntas como o jovem deveria fazer o que quem quer, então, se não o que ele mesmo deseja?, qual deveria ser o significado da família que está em falta atualmente? ou o que há de específico na velhice que deve ser respeitado e não o está sendo? Acredito que refletindo honestamente sobre esses pontos conseguiremos perceber que aquilo que se toma como permissivo, na verdade, apenas o é se partirmos de um ponto de vista autoritário, onde os jovens devem viver uma vida que lhes foi pensada por outras pessoas, onde laços sanguíneos deveriam significar sujeição e onde a tradição deve suplantar os bons argumentos e o bom raciocínio. Depois que apresentei a minha discordância a Denise falou que considera os dois tipos de educação como problemáticos (acredito que por conta da ideia “os extremos são ruins”) e que cada um traria uma constelação própria de problemas, o que eu achei interessante, embora ainda acredite ser preciso aprofundar a discussão, qualificando-a com conceitos mais precisos, referências sobre as construções e escrutínio das hipóteses.

Em algumas conversas com amigas da formação, já brinquei que considero as descrições das intervenções da Denise como uma “clínica das implicâncias”, pois é muito comum ela relatar coisas como pedidos insistentes para que a pessoa repita uma ação, questionamentos sequenciais sobre uma ação, apontamentos repetidos sobre um gesto etc. Nessa aula ela trouxe uma fala que fundamenta teoricamente a sua “clínica das implicâncias”, ao responder uma questão que uma pessoa fez sobre uma paciente que está atendendo:

uma vez que o paciente conseguiu um pouco mais de contato, vamos trabalhar sempre na direção de criar a consciência da resistência – e isso se faz através da criação da transferência negativa. Então é de meio provocar, ir apontando, apontando, apontando, qual que está sendo a função, por exemplo, no caso dessa sua paciente, qual está sendo a função desse isolamento total, o que está por trás desse isolamento.

Embora isso faça sentido dentro da teoria reichiana, a questão que me passa, e que inclusive passa por outras pessoas pois ao menos uma já fez esse apontamento em aula, é que as ações que a Denise relata transbordam de potencial não de evidenciar uma transferência negativa que já existia, mas de efetivamente criar um sentimento negativo da pessoa para com a terapeuta – e aí entra mais um grave problema, pois gera aquilo que se pode chamar de “profecia autorealizada”, pois diz “você tem uma raiva de mim que não está manifestando”, aí vai lá e atazana a vida da pessoa até ela desenvolver efetivamente essa raiva e então aponta “viu só, não falei que tinha essa raiva?”.

Depois disso ela falou um pouco sobre a teoria da Blanca Rosa sobre os segmentos corporais e seus significados e conexões emocionais, e disso perguntou para a turma como as pessoas veem hoje em dia o objetivo que Reich estabelece para a terapia do reestabelecimento da potência orgástica. As falas se concentraram na superficialidade que veem hoje em dia nas relações entre as pessoas, na coisa do sexo buscar apenas o prazer e não a construção da relação, da construção de uma performance sexual, da anunciação das quantidades e não discussão das qualidades e coisas desse tipo. Não achei que a discussão entrou bem no conceito de potência orgástica e das suas implicações para o processo terapêutico e para a teoria reichiana de uma forma geral. Citando o trabalho corporal na clínica (em relação a essa questão da potência orgástica), falou da teoria do Federico Navarro de que após cada acting seja perguntado e trabalhado com o paciente a sensação, o pensamento e o sentimento; a diferença entre a sensação e o sentimento seria que a primeira seria o mais imediato, aquilo que a pessoa sente diretamente com aquilo que está vivendo, enquanto o sentimento seria aquilo que se desenvolve mais profundamente. Depois ela fez uma reflexão muito interessante, perguntando sobre se viver em uma sociedade capitalista, onde “o fundamental é o modo de produção”, pode impedir o reestabelecimento do reflexo do orgasmo conforme definido pelo Reich; ela chegou a fazer uma provocação que entendi bem direta, perguntando “será que o consultório do orgonoterapeuta é um oásis no meio disso tudo?”, no que entendi como uma tentativa de nos fazer pensar que não, não é possível que o consultório do orgonoterapeuta, ou de quem quer que seja, se constitua em uma sociedade sem ter relação com a configuração dessa sociedade. Mas uma pessoa entendeu diferente, pois falou logo em seguida da pergunta da Denise que se sente justamente nesse oásis quando vai para a prática clínica – não consigo lembrar como me senti ouvindo isso no momento da aula, mas agora ouvindo à gravação fiquei um tanto incrédulo, não de que a pessoa possa se sentir assim, mas de como ela não percebeu que toda a fala da Denise nos encaminhava para pensar nessa impossibilidade – se nenhum homem é uma ilha, nenhum consultório deveria sê-lo também. A partir dessa provocação também surgiram outras falas, que caminharam mais pela questão de experimentações que as pessoas estão fazendo sobre outras formas de se relacionar para além dessa única prescrita pela nossa sociedade; fizeram considerações interessantes, tanto ressaltando a coisa positiva de se buscar outras formas de se relacionar quanto aspectos negativos de haverem “modismos” nesse tipo de coisa ou de outras formas que se apresentam como alternativas a uma forma mas, na verdade, apenas reforçam certos elementos daquilo que já está aí. Falou-se sobre a questão da potência orgástica, para Reich, só ser possível em uma relação heterossexual e que o sexo diferente “da forma que Deus mandou” será sempre considerado neurótico (pois pré-genital); achei que o posicionamento da Denise sobre essas questões foi, ao mesmo tempo, coerente porém (possivelmente) insensato, pois ela disse que para questionar esse posicionamento somente com pesquisa, produção de conhecimento sobre essa questão, e isso é uma postura acertadíssima. A questão que me incomoda é que parece se partir do suposto que o próprio Reich chegou a essas conclusões através de pesquisa e métodos rigorosos de produção do conhecimento – o que não me parece o caso. Pois faz sentido que algo que foi constatado a partir de pesquisa metodicamente acertada só possa ser contestado a partir da apresentação de falhas e/ou inconsistências nessa pesquisa ou de novos dados obtidos através de nova pesquisa ou avaliação e cruzamento de dados daquelas que já existem; mas o problema é que parece supor que a responsabilidade de fazer pesquisas que possam confirmar ou rejeitar o que Reich afirma é de quem questiona essas afirmações, mesmo que quem concorde com elas e trabalhe as tendo como verdades não tenha feito pesquisa alguma para verificar se são verdadeiras.

Para contornar as dificuldades do ensino online frente à natureza eminentemente prática desse curso, a Denise sugeriu que as pessoas que já atendem apliquem alguns princípios da orgonomia com ao menos um paciente, observando as reações e as anotando, para trazer para discussão durante a aula. Sugeriu basicamente exercícios de “respiração orgonômica” (eu acho ligeiramente cômica essa coisa de adicionar o sufixo “orgonômico” às coisas) para isso, a coisa de fazer a respiração em quatro tempos, e falou também de intervenções como repetir um comportamento do paciente, tampar a boca de um paciente que fala muito, segurar um braço para mostra alguma coisa, e outras intervenções do tipo, que “exigem mais coragem” por parte da terapeuta. Uma pessoa fez uma pergunta salientando a dificuldade de fazer esse tipo de coisa com os atendimentos online, e a Denise deu algumas ideias de coisas possíveis de serem feitas mesmo nesse cenário.