20 de março de 2021 – Segunda aula de Orgonoterapia

Iniciamos essa aula com algumas pessoas fazendo questionamentos e trocando impressões sobre o uso que as pessoas estão fazendo da “manta orgonômica”. Tenho me incomodado um pouco com isso, com os vieses de confirmação que rolam soltos nessas conversas e, pior, sob uma certa atmosfera de “estamos fazendo pesquisa, verificando na prática, então a coisa funciona mesmo”. Para ilustrar isso, nesse início de aula uma pessoa fez um questionamento partindo da mesma observação que já registrei aqui, sobre o formato da manta ser diferente da caixa, então que isso deveria impactar diretamente no seu “funcionamento”, mas apesar de ser uma questão que considero bem interessante, não houve discussão, a Denise se limitou a dizer algo como “tem que testar pra ver”, deixando evidente uma filiação teórica com um certo indutivismo, desse tipo que acha que nossos sentidos apreendem diretamente a realidade então tudo aquilo que observarmos há de ser a realidade.

Na continuação desse assunto a Denise comentou que essa mesma pessoa que fez a pergunta havia relato a ela que teve um episódio de diarreia que atribuiu ao uso da manta, e sobre isso ela assinalou que era “muito interessante, muito interessante”; outras pessoas relataram coisa semelhante, então aproveitei para colocar no chat que eu também havia tido um episódio de diarreia entre a aula anterior e essa, e aí uma pessoa no chat me perguntou “usando a manta, Marcus?” e eu “não, sem manta por aqui”, e ninguém mais falou nada. Não acho que esse meu comentário merece maior consideração, ainda mais feito assim no chat sem puxar a discussão com seriedade, mas posso me dar o crédito de que é consideravelmente cansativo ficar questionando um nível de desinformação desse, ainda mais com pessoas que não parecem dispostas a aprofundar a discussão. A coisa do viés de confirmação foi tão forte que uma pessoa chegou a falar algo como “eu tenho sentido meus movimentos peristálticos mais fortes, e é instantâneo, é só colocar a manta e eu já sinto”; o procedimento do teste duplo-cego não foi inventado à toa, com repetidos experimentos, testes, erros e acertos, foi-se percebendo que a crença da pessoa em que se aplica um tratamento tem efeito sobre o resultado, e depois também se percebeu que a crença de quem aplica o tratamento também tem o mesmo tipo de efeito, mas dessa vez sobre a leitura dos dados – nesse arremedo de experimento não há nenhuma etapa de “cegueira” na coisa, é um pseudo-teste diretamente influenciado pelas crenças de quem faz e em quem é feito, pois são a mesma pessoa. Não é de se espantar que você repare mais na sua respiração se começa a fazer exercícios de respiração, não é mesmo? Então porque seria de se espantar que alguém perceba mais um certo processo metabólico seu ao cobrir-se uma manta com camadas de algodão e lã de aço esquentada no sol, quando essa pessoa acredita (ao menos na possibilidade) que sentirá um fluxo de energia vital “melhorando” seu organismo ao cobrir-se com tal manta?

Já prevendo uma possível pessoa que, ao ler o que escrevi acima, pense “mas como vai fazer então?”, gostaria de adiantar um rascunho de como pensar sobre isso, sobre como fazer um teste progressivamente melhor do que esse oferecido. Como já disse antes, conhecer a história do teste duplo-cego pode ajudar, e tenho umas indicações (infelizmente apenas em inglês) para fazer sobre isso: o artigo The History of the Double Blind Test and the Placebo (1999) de Frederick Strong é curto e mostra um pouco da importância e de como se construiu essa metodologia; já o texto Inventing the randomized double-blind trial: The Nürnberg salt test of 1835 (2006) de Michael Stolberg (https://www.jameslindlibrary.org/articles/inventing-the-randomized-double-blind-trial-the-nurnberg-salt-test-of-1835/) mostra um pouco da aplicação do duplo-cego na refutação de uma teoria equivocada, a homeopatia; a reportagem The History of the Double-Blind Experiment (2017) de Derek Beres (https://bigthink.com/21st-century-spirituality/science-in-the-age-of-alternative-facts) mostra como é importante o compromisso com a investigação e o método na construção do conhecimento, trazendo fatos curiosos da história da ciência; e o pequeno texto The Trouble With Double-Blind Placebo Studies (2010) de Jefferson Fish (https://www.psychologytoday.com/us/blog/looking-in-the-cultural-mirror/201011/the-trouble-double-blind-placebo-studies) trás um reflexão interessante sobre como mesmo esse método tem problemas e como ainda é necessário que busquemos corrigi-los.

De posse desse conhecimento, a primeira coisa que podemos pensar sobre a “pesquisa” com a manta orgônica é tentar deixar mais formal a crítica feita; assim, podemos dizer então que “não podemos confiar em um resultado de um teste feito por alguém que tem uma forte opinião sobre o resultado desse teste e o aplica sobre si mesmo”. Dada essa construção frasal, já podemos pensar em duas modificações a serem feitas no teste, então: primeiro, ele deve ser feito por alguém que não tenha forte opinião sobre o resultado, e segundo, essa pessoa não deve aplicar o teste em si mesma. Acredito que com esse cuidado simples já se possa perceber o ganho que qualquer teste poderia ter; mas podemos ir além nessa construção. Vamos dizer que uma pessoa interessada em investigar a eficácia ou não da tal manta orgonótica consegue alguém que nunca ouviu falar sobre a tal manta para fazer os testes, e lhe faz um questionário inicial, lhe empresta uma manta e lhe dá instruções de como utilizá-la por um período, depois faz um questionário final para comparar com as respostas iniciais e ver o que mudou. Pode acontecer, como no caso da aula, que a pessoa relate episódios de diarreia durante o período que utilizou a manta; mas, como eu demonstrei também, pessoas podem ter diarreia sem utilizar a manta – então temos mais um problema que devemos solucionar em nosso teste. Podemos conseguir duas pessoas para fazerem o teste, afinal é mais difícil que duas pessoas tenham uma mesma reação por coincidência. Isso certamente já melhora as possibilidades do nosso teste, mas ainda pode ser que a diarreia, por exemplo, seja causada por algo na água e essas pessoas utilizarem água da mesma fonte (caso morem no mesmo bairro ou até cidade, por exemplo, e o problema venha da distribuição de água). Podemos então confeccionar uma “manta de mentira”, talvez fazendo uma manta sem a lã-de-aço, que então poderemos eliminar efeitos iguais nas duas pessoas serem causados pela ação da manta. Mas ainda pode ser que o algodão que utilizamos na manta, ou o produto que usamos para limpá-las, ou mesmo alguma coisa no lugar que as armazenamos antes de emprestar para as pessoas tenha esse potencial contaminador, alergênico, não sei, e aí teríamos reações semelhantes por causa da manta. Uma solução, então, seria ter uma terceira pessoa, essa que não usará manta alguma, apenas faremos com ela o questionário inicial e final no mesmo dia que fizermos com as outras duas (para que o intervalo de tempo do experimento seja o mesmo e sejam diminuídas questões geo-climáticas, por exemplo). Já temos um teste muito mais bem desenhado, acredito que é impossível negar. Mas, percebam, nós vamos saber qual manta tem a lã-de-aço e qual não tem, então podemos acabar influenciando as pessoas de alguma forma, mesmo que seja inconscientemente. Podemos solucionar isso, então, pedindo que outra pessoa, preferencialmente uma que não faça ideia do que é uma manta orgonótica nem nada disso, mas essa pessoa não deve saber que há diferença entre as duas mantas, no mínimo não saber qual diferença é essa – ela vai aplicar o questionário das três e entregar para duas delas as mantas, e você só vai ter contato com as respostas dos questionário depois de tudo feito. Já melhoramos bastante o nosso experimento, certo? E, certamente, ainda podemos melhorar mais. A teoria da manta orgonótica diz que não se deve utilizá-la em dias de “tempo fechado”, pois esse seria um dia carregado de energia ruim e a manta absorveria essa energia negativa; e se agora duplicarmos o número de pessoas e mantas no teste (duas mantas com lã-de-aço e duas sem), só que passando a indicação para que uma com a manta “certa” e uma com a manta “errada” de somente a utilizarem em dias nublados? Teremos mais dados para comparar, percebem? Mas aqui entra um outro viés, pois nossa sociedade já coloca um tom negativo nesses dias nublados, chamando de “tempo fechado” ou “dia feio”, então certamente isso pode afetar o nosso experimento. Uma solução poderia ser aumentar o número de pessoas participando, que assim esse tipo de preconceito climático seria diluído e se houvessem padrões constatados nos 5 grupos diferentes (manta-sol, manta-nublado, cobertor-sol, cobertor-nublado, controle), nossas hipóteses teriam mais peso. Acredito que com essas considerações já fica evidente como um experimento deficitário como esse proposto na aula pode ser melhorado sem muito esforço.

Depois entrando nos textos que foram trabalhados nessa aula, houve uma discussão inicial sobre o que é saúde e o que é doença, como se definem esses conceitos; fiquei um pouco decepcionado que tanto não houve uma discussão profunda sobre isso quanto não foi recuperada a discussão que tivemos sobre essa questão no semestre passado a partir do livro “O Normal e o Patológico”, imagino que as pessoas estavam mais envoltas na “questão energética” por conta da coisa da manta e seus desdobramentos então a discussão sobre saúde e doença acabou focando nessa ideia. Nessa conversa se falou um pouco sobre a teoria do desenvolvimento psicossexual de Reich, derivada de Freud, e da formação do caráter a partir disso; de como Reich na maturidade do seu trabalho procurou fazer e pensar sobre a prevenção das neuroses e como a orgonoterapia vai trabalhar justamente com o indivíduo já “neurotizado”, com uma estrutura de caráter já formada, mas que mesmo assim se pensa que ela consegue bons resultados.