05 de julho de 2020 – sexta aula de Análise do Caráter III (segunda parte)

O Pedro iniciou essa aula fazendo uma checagem com as alunas sobre a aula anterior, procurando saber se havia ficado alguma dúvida sobre o conceito de Peste Emocional em Reich, se havia aparecido alguma questão nesse intervalo entre uma aula e outra; eu acho que essa é uma boa ferramenta pedagógica, essa ideia de fazer uma checagem no início dos encontros, e como aprendi com um professor da ESPOCC, não só em relação aos conteúdos e ao material mais diretamente ligado às aulas, mas também sobre como as pessoas estão, como chegaram até ali, se acordaram bem, se alguma coisa muita fora do comum aconteceu com alguém e esse tipo de coisa. Uma ferramenta assim se torna muito mais importante em cenários como a escola, aonde não existe uma aclimação para a aula, quando a professora entra em sala já é momento da aula, então é como se não houvesse uma transição; nas aulas presenciais do IFP isso não se processa exatamente dessa forma, ao menos para mim que sempre costumo chegar mais cedo, porque aí sempre tem uma conversa, sempre é dada aquela “tolerância de 10 minutos” que viram 20 fácil, fácil aqui no Rio de Janeiro, e nisso uma transição fica muito simples de acontecer; nos encontros online isso tem acontecido também, sempre rola uma conversinha antes, e assim a gente entra nos temas através de uma coisa ou outra que surgiu nesse bate papo. Claro que isso nem sempre é possível, mas penso que é algo interessante de se ter em mente quando se trabalha com aulas e educação.

A partir dessa checagem do início, surgiu uma pergunta de uma pessoa sobre se seria possível uma prevenção das neuroses segundo Reich, ao que o Pedro respondeu que sim, esse é justamente inclusive um ponto muito importante na obra e no trabalho de Reich, ele dizia que o objetivo do seu trabalho era criar uma sociedade livre de neurose, que era necessário estabelecer uma profilaxia das neuroses, e em algum ponto de sua obra (que eu, infelizmente, não me recordo exatamente agora aonde está) faz uma comparação com o trabalho de um médico tratando caso a caso de gripe em seu consultório: o objetivo não é curar um-a-um os indivíduos da sociedade, mas sim através do que se aprende na clínica ser capaz de criar um conjunto de precauções e tratamentos que impeça a doença de existir. O trabalho de Reich com a Sex-Pol, com a possibilitação de uma sexualidade saudável para os jovens (tema sobre o qual se pode ler o seu trabalho “O Combate Sexual da Juventude”), com o parto e questões relacionadas (Reich falava da questão da temperatura, do bebê sair do corpo quente da mãe e ir para um ambiente frio, da palmada que se tornou instituição obstetrícia, entre outras questões), com a educação das crianças (trabalhando ainda com a ideia do Complexo de Édipo, Reich dizia que o que deveria ser reprimido no menino era o desejo pela mãe, não o despertar e a exploração da sua sexualidade), todos são exemplos de como a obra e o trabalho de Reich efetivamente caminham para a direção de se construir uma prevenção das neuroses – o quanto esse trabalho efetivamente se sustenta nesse caminho é uma outra discussão.

Um ponto muito pequeno de ser explorado aqui (por pura falta de capacidade minha de aprofundar essa questão) mas muito interessante de ao menos ser comentado apareceu em uma fala de uma pessoa, que buscou questionar uma noção que o Pedro apresentou sobre flexibilidade da couraça (a questão especificamente me pareceu mais uma falta de entendimento, uma falha de comunicação, do que efetivamente uma discordância, mas isso não é muito relevante para o caso). Para Reich, claramente existe uma sexualidade correta, natural, biologicamente adequada, ideia na qual a maioria do seu trabalho orbita e a obra “A Função do Orgasmo” se concentra; e se há uma sexualidade natural, que levaria à potência orgástica e essa seria dissolutória das neuroses, surge a hipótese repressiva, ou seja, de que as sociedades até então (ou, ao menos, a nossa sociedade, visto que nela pululam neuróticos) reprimiram essa sexualidade. Já na obra de Michel Foucault (centralmente na sua “História da Sexualidade”) encontramos a ideia de que diferentes sociedades não reprimem uma sexualidade, mas através de ferramentas também repressivas criam uma certa sexualidade que lhe é característica. Da forma que eu compreendi a fala dessa pessoa, ela está fazendo uma conciliação entre a ideia reichiana de que existe apenas uma única forma de sexualidade natural, saudável, e a ideia foucaultiana, ou seja, existe uma sexualidade natural, mas essa é reprimida de formas diferentes por sociedades diferentes, criando então outras formas de sexualidade – não ficou claro na fala dessa pessoa se ela categoriza, como Reich faz, essas outras sexualidades de neuróticas, não-saudáveis, mas me parece que o caminho ainda se mantém esse ou próximo desse. Mas eu faço essa intersecção de outra forma, ressaltando mais incompatibilidades mesmo e entendendo que o arcabouço foucaultiano se apresenta mais adequado para compreendermos a nossa realidade; e, para isso, acho interessante partir de outra reflexão apresentada por Foucault, essa no seu debate com Noam Chomsky (https://www.youtube.com/watch?v=3wfNl2L0Gf8): esse debate recebeu como título “Sobre a Natureza Humana”, e creio que não seja incorreto dizer que a posição que Foucault sustenta é a de que se existe uma natureza humana ele não se encontra em condições de conhecê-la, dadas as determinantes sociais, culturais, políticas etc. que se sobreporiam a algo que se poderia entender como “verdadeiramente humano” – penso que isso aparece muito claramente no debate quando estão falando sobre justiça, que Chomsky defende haverem valores humanos intrínsecos que poderiam surgir em uma sociedade não desvirtuada deles, enquanto Foucault diz não poder falar desses valores como naturais, e também num momento aonde Chomsky está falando sobre como seria a sociedade ideal (que, se não me engano, ele chama de anarco-sindicalista – uma coisa que se sempre me intrigou, devo acrescentar) e Foucault diz algo como “o Sr. Chomsky está muito mais avançado do que eu nesse quesito, porque eu ainda nem consegui me livrar de tudo de ruim que essa sociedade colocou sobre mim, então não me vejo em condições de pensar uma sociedade outra enquanto não me livrar do que considero nocivo nessa”. Realmente acho que nessa questão, que pode parecer pequena, há muito o que se refletir e construir, sendo fundamental para uma teoria e prática libertária que se compreenda as implicações, ao menos as mais imediatas, disso.

Um outro ponto que também pode ser pequeno mas que eu gostaria de registrar foi trazido pelo Pedro quando explicava que dentro da concepção reichiana mesmo a couraça pulsa, de que existe labilidade mesmo na neurose, e então ele trouxe a seguinte ideia: “pra você ter ideia, pra gente chegar no radicalismo do…, do ponto mais radical, um suicídio é vida. Por que? Há uma insuportabilidade interna, né, em que você tenta romper com isso, para não sentir aquilo, mas ainda é vida, busca por qualidade de vida, por mais louco que isso pareça”. Embora eu entenda o motivo da marcação que ele faz quando diz “por mais louco que isso pareça”, não pareceu nem um pouco louco para mim, pelo contrário, é uma daquelas ideias que me parecem que só precisam ser ditas, não necessitam de explicação. Existem situações aonde, imagino, estar nelas e não ter perspectiva de não estar pode ser pior do que a ideia de acabar, de deixar de existir; acho que aqui é aonde cabe fora do eufemismo (mas ainda estritamente inadequado) a ideia de que a morte seria um descanso – ao se suicidar deixará de existir alguém que pode descansar, mas deixará de existir também o cansaço onipresente, o sofrimento sem possibilidade outra de fim. Como não encarar isso como vida, como a busca por potência? E é justamente nesse esteio, como salientou o Pedro, que o Reich discorda da concepção de Freud de que haveria uma pulsão de morte – a vida não deseja a morte, a vida só deseja mais vida, vida com qualidade. E aqui podemos pensar junto com outro leitor da obra reichiana, Roberto Freire, quando ele diz que “É o amor, não a vida, o contrário da morte”.

Depois dessa introdução trabalhando questões advindas da aula anterior, o Pedro entrou na definição do conceito de totalitarismo de Hannah Arendt; segundo ele, para a autora o que diferenciava o totalitarismo do absolutismo é que embora em ambos exista a concentração de poderes na mão de uma figura (podendo se rum indivíduo ou grupo), o totalitarismo é um movimento de massas, existe uma identificação da população com a liderança, que assume como suas as ideias dessa liderança, existindo então uma ligação entre o público e o privado. Por conta dessa característica, o totalitarismo vai depender da noção de que há um inimigo comum, que seria a figura que vai contra esses valores que são amplamente compartilhados; essa ideia de que as massas compartilham valores e se identificam com o líder totalitário é que permite essa existência do inimigo comum, porque aquilo que ameaça o líder ameaça também cada uma das pessoas. Assim, qualquer questionamento das ideias expressas pelo líder torna-se um questionamento sentido pessoalmente por cada um dos indivíduos que compõem essa massa de liderados, então com isso qualquer possibilidade de crítica se esvai; acredito que todas as pessoas adultas já experimentaram uma situação aonde você faz uma crítica de algo absolutamente óbvio em uma pessoa e ela não só recusa a sua crítica como a faz de forma virulenta, reativa, agressiva – o mesmo aconteceria com as massas dentro do totalitarismo. No Brasil contemporâneo temos um exemplo que considero muito expressivo para ilustrar isso: um dos maiores aliados de Bolsonaro durante a sua candidatura foi o juiz Sérgio Moro, que se tornou ministro da justiça em seu governo, numa muitíssimo provável tentativa de incorporar nesse governo a credibilidade que o juiz tinha no país, pois ele “estava prendendo os corruptos” (é impressionante como esse discurso, por mais vazio que seja, não para de funcionar – não foi com a promessa de “prender os marajás” que o Collor se elegeu?); esse mesmo aliado cheio de credibilidade se torna não um adversário, mas um inimigo, quando discorda de Bolsonaro e o acusa de corrupção, chegando a ser acusado pela ala mais inflamada do bolsonarismo (termo que eu demorei a compreender que efetivamente descreve uma realidade) de comunista, demonstrando tanto uma completa ignorância do que vem ou não a ser o comunismo e uma incapacidade de receber qualquer crítica.

Depois o Pedro fez uma comparação entre o conceito de Banalidade do Mal de Hannah Arendt com aquilo que Reich escreveu em seu “Escuta, Zé Ninguém”; e, efetivamente, em um trecho do livro a comparação é inevitável, quando Reich diz “Quando você arrasta milhares de homens, mulheres e crianças para as câmaras de gás, você só está obedecendo a ordens. Não é verdade, zé-ninguém?”. Interessante pensar, como disse o Pedro, que a obra de Reich é de 1946 e a de Arendt de 1963; não acho essas informações interessantes no sentido de conjecturar qualquer pioneirismo de Reich (ou algo que o valha) mas, talvez justamente o contrário, de mostrar a genialidade de Arendt de conseguir condensar e produzir uma excelente reflexão sobre um fenômeno que “estava no ar”, e penso que existe mesmo esse tipo muito necessário de inteligência que não consiste tanto no descobrir, mas sim no mostrar e aprofundar o que já está por aí. A partir desse ponto o Pedro foi trazendo citações do livro e fazendo algumas reflexões em cima; como esse relato já está um tanto extenso, vou me limitar a reproduzir aqui as citações (pois realmente acho interessantes, e um livro que acredito ser importante a leitura acompanhada de estudo – assim como acontece com muitas outras, acho que é uma obra que tem os seus problemas, e é preciso mais do que uma leitura descompromissada para fazer o recorte); no entanto, o Pedro usou uma tradução portuguesa do livro, e para facilitar referências vou utilizar as citações a partir de uma tradução brasileira que tenho da obra. Pode ser que nisso se perca alguma coisa, que eu confunda um trecho com o outro, mas acho que isso não prejudica, de uma forma geral, esse relato:

Você tem medo de olhar para si mesmo, zé-ninguém, tem medo das criticas e tem medo do poder que lhe está prometido

Você permite que os poderosos exijam poder ‘para o zé-ninguém’. Mas você mesmo se cala. Você confere mais poder aos poderosos, ou escolhe homens fracos e maus para representá-lo. E descobre tarde demais que você é sempre enganado

Um zé-ninguém não sabe que é pequeno e tem medo de saber. Esconde sua insignificância e estreiteza por trás de ilusões de força e grandeza, da força e da grandeza de alguma outra pessoa. Sente orgulho dos seus grandes generais, mas não de si mesmo. Admira uma idéia que não teve, não uma idéia que teve. Quanto menos entender alguma coisa, mais firme é sua crença nela. E, quanto melhor entende uma idéia, menos acreditará nela

SEU FEITOR É VOCÊ MESMO. Ninguém tem culpa da sua escravidão a não ser você mesmo. Ninguém mais, é o que lhe digo

Você nunca experimentou felicidade em plena liberdade, zé-ninguém. E por isso que a consome; por isso que não assume nenhuma responsabilidade pela preservação da sua felicidade. Você não aprendeu (porque nunca teve oportunidade) a cultivar sua felicidade com carinho, como um jardineiro cultiva suas flores e um lavrador, seu trigo

o grande homem foi um dia um zé-ninguém, mas desenvolveu uma única qualidade importante. Reconheceu a pequenez e a estreiteza dos seus atos e pensamentos. Sob a pressão de alguma tarefa à qual atribuía grande significado, aprendeu a ver como sua pequenez, sua insignificância, punha em risco sua felicidade. Em outras palavras, um grande homem sabe quando e de que forma ele é um zé-ninguém

Você anseia por amor; ama seu trabalho e vive dele, ao passo que seu trabalho vive do meu conhecimento e do de outros. Amor, trabalho e conhecimento não conhecem pátria, barreiras alfandegárias nem uniformes. Você, porém, quer ser um zé-ninguém patriota, porque tem medo do verdadeiro amor, medo de assumir a responsabilidade pelo seu próprio trabalho e um medo mortal do conhecimento

Para a última parte da aula, o Pedro disse que gostaria de explorar como esses conceitos de Peste Emocional, Banalidade do Mal e Totalitarismo poderiam ser úteis no trabalho clínico de base reichiana. A primeira coisa que ele trouxe foi: “um dos objetivos do processo clínico, né, do nosso trabalho, é dar autonomia para aquele sujeito que está na nossa frente. Só que ninguém dá autonomia a ninguém; quem tem que dar autonomia é o próprio sujeito”. Depois ele disse que uma consequência de entender isso é saber que “o terapeuta não é dono da verdade – porque aí somos nós que estamos empesteados”, ou seja, se você enquanto terapeuta acredita que tem um modelo do que é bom para a pessoa você não vai estar, justamente, trabalhando essa autonomia do indivíduo. Embora isso possa parecer contraintuitivo em alguma medida (afinal, se você enquanto terapeuta não tem uma noção do que seria saudável, em que seu trabalho se sustenta?), faz bastante sentido para mim quando penso no que quero fazer e no que vejo como possibilidade a partir do trabalho psicoterapêutico: não é que eu não tenha uma noção do que é saúde, uma ideia do que é patológico e do que é salutar (ao falarmos em Reich, então, a coisa toma contornos muito mais fortes nesse sentido), mas sim que trabalhar essas noções no espaço clínico não significa indicar procedimentos à pessoa, mas sim apontar para ela aonde estão elementos em sua vida sobre os quais ela não refletiu, assim como propiciar esse espaço de reflexão, o que, espera-se em um trabalho bem sucedido, levará essa pessoa a ter autonomia para perceber a saúde e a doença em sua vida e poder agir sobre isso da forma que lhe for mais conveniente.

Depois disso abriu-se a aula para perguntas e comentários, e houve bastante participação. Mas enquanto endereçava uma dessas questões, o Pedro trouxe uma frase que se relaciona diretamente, por oposição, ao que eu falei mais acima quando trouxe como referência o debate entre Michel Foucault e Noam Chomsky: “se a gente vai profundamente no nosso cerne, e o Reich falava isso, a gente tem uma moral espontânea, que não precisa ser construída, ela é natural em nós”. Eu tenho muita dificuldade de entender como é que as pessoas conseguem real e efetivamente se convencer de que encontraram/descobriram um manual do ser humano; não se trata nessa minha consideração de dizer que tal manual não existe (essa ideia, por si só, já merece um debate extenso e cuidadoso), mas apenas de apontar que sendo constantemente surpreendidos com novas descobertas que mostram o quão pouco sabemos, as pessoas ainda conseguem se iludir de que qualquer teoria ou conjunto de teorias que seja pode dar conta de entender algo a que se possa referir como “natural do ser humano”. Talvez valha repetir que não se trata de dizer que não existe esse natural, mas de colocar em questão qualquer teoria que imagine compreender e explicar algo natural no ser humano; dizer que é natural que as pessoas sonhem me parece completamente razoável, por exemplo, enquanto que partir para uma quantificação de quantas vezes é natural sonhar por tal intervalo de tempo já começa a patinar em terreno complicado e querer explicar a função do sonhar já pisa nesse lugar de “manual do ser humano”.