11 de agosto de 2019 – quarta aula de Técnicas Complementares do Trabalho Reichiano

  O Pedro iniciou dizendo que nessa aula trabalharíamos a raiva, e pediu para que as pessoas dissessem o que entendem por raiva, definições de senso comum mesmo; apareceram coisas como “cabeça quente”, “dentes trincados”, “braços rígidos”, “a raiva é muito mal vista”, “se defender, se posicionar”; a partir de algumas coisas que foram ditas, uma pessoa colocou que, para ela, raiva e agressividade não são a mesma coisa – eu também fiquei com esse registro, pois o Pedro algumas vezes já fez essa diferenciação, se não me engano inclusive ele diz que o Reich propõe que existem três sentimentos básicos (felicidade, medo e raiva), e que ele, Pedro, prefere substituir a ideia de “raiva” pela de agressividade. Foi justamente isso que ele colocou ao responder a essa colocação: “a raiva vem da agressividade, não há dúvida quanto a isso. Mas a raiva só se instala com a frustração; não vou dizer que a primeira frustração gerou raiva, mas o processo frustrante, algumas vezes, vai fazendo com que haja dois movimentos: quando você tem uma barreira externa na sua expansão, o que que acontece? Você volta pra dentro outra vez, você se contrai. E aí, inicialmente, esse sentimento é a angústia, simplesmente a angústia, uma contração. Com o passar do tempo, principalmente quando você estabelece relações afetivas, essa angústia passa a ser tristeza – porque aí é uma frustração numa relação já estabelecida de amor. E o outro movimento, que é quase contínuo a esse, é a tentativa de voltar a tentar a expansão, só que aí como na primeira vez você foi com uma certa força, agora recrudesce essa força porque a primeira não foi suficiente para romper aquela barreira. E quando você recrudesce, você transforma a agressividade em raiva, ódio, ira, vingança e por aí vai”.

  A partir disso o Pedro fez algumas considerações sobre a existência de “camadas” nas nossas emoções: uma mais externa, que seria o que ele chamou de “cartão de visitas”, como nos apresentamos ao mundo em geral; depois uma outra camada para as pessoas conhecidas; outra um pouco mais profunda de como lidamos com as pessoas próximas, como família e amigos; e no núcleo o cerne biológico. Depois, voltando a falar da raiva e do trabalho terapêutico com ela, ele pontuou como esse deve ser um trabalho cuidadoso, pois embora possa haver muita potência no trabalho com a raiva, ela também pode gerar desavença social (e aqui ele trouxe o Maquiável, “dividir para conquistar”, para ilustrar o problema disso), então o trabalho clínico com a raiva deve ser cuidadoso. Da mesma forma que o Pedro traz algumas vezes a ideia de que o trabalho com a pessoa psicótica é um trabalho de neurotização, ele exemplificou que no trabalho clínico com uma pessoa masoquista pode ser considerado um avanço se ela adquire traços de sadismo, pois significa que essa raiva que era mantida “afundada” foi acessada – obviamente sem excesso, e se houver efetivamente um desenvolvimento de traços sádicos esses também deverão ser trabalhados em terapia, mas que para um quadro masoquista o desenvolvimento de certa dose de sadismo seria preferível à depressão. Tem ainda aí um binarismo para ser pensado, claro, das coisas como uma corda que vai só para um lado ou para outro; mas também acho interessante essa ideia pois ela foge de um binarismo “saúde – doença”, e se bem refletida e problematizada pode ir desconstruindo essas noções dualistas, abrindo-nos para a percepção de saúde como muito para além da ausência de doença, como somente possível de detectar com uma análise mais detida e aprofundada das relações que se estabelecem na vida de uma pessoa. Olhar só para um traço sádico certamente pode apontar para um diagnóstico “negativo”, de doença; mas se entende-se esse sadismo dentro de um contexto aonde ele está sendo utilizado terapeuticamente para vencer outras questões mais pesadas na vida da pessoa, e ainda assim mantido em xeque por um projeto terapêutico bem construído, temos uma possibilidade de entender a presença desse sadismo por outro viés.

  Um algo que tenho desejo de explorar mais no texto reichiano e trazer mais para o debate com os professores do IFP é a questão do primado da genitalidade para Reich; as poucas vezes que pontuei alguma coisa nesse sentido sempre sinto respostas e colocações meio tangenciais, com um certo tom de “não vamos perder tempo nisso” (completa interpretação minha, vale ressaltar), e colocações que não endereçam diretamente a questão, como a onipresente questão da defesa de Reich do direito dos homossexuais apesar da sua categorização da prática homossexual como neurótica. Por exemplo, se negam fortemente a qualquer insinuação ou afirmação de que Reich categorizava a homossexualidade como doença; mas se há um cerne biológico, se o caminho natural do organismo é a genitalidade, se o orgasmo se processa no contato entre dois indivíduos de sexos diferentes, se existem relações de necessidade entre o pênis, a vagina e o orgasmo, o que seria, então, uma relação homossexual, que não uma relação que foge do saudável? E algo que foge do saudável, o que seria se não uma doença? A minha hipótese não é, como parece sempre ser por lá, a de que Reich está certo; a minha hipótese é de que Reich foi um pesquisador como tantos outros, que desenvolveu uma capacidade de observação e formulação de hipóteses muito aguçada, mas que, como todas as outras pessoas, nunca conseguiu sair do seu contexto e, assim, foi fortemente influenciado por ele. E se nós, em 2019, ainda não conseguimos nos livrar dos essencialismos que se instalaram há muito tempo em nossa forma de pensar, mesmo com autores que se dedicaram a pensar justamente nesse assunto (que essencialismos são esses? De onde eles vem? Como podemos nos livrar deles?), parece muito plausível supor que Reich, lá em 1933, também estaria envolto neles. Ao menos, a minha leitura de “A Função do Orgasmo” aponta para uma teoria absurdamente essencialista, em projeto e em conclusões, pois busca encontrar uma “forma certa de ser” e afirma tê-lo feito (chegando a postular mesmo qual seria a forma correta de se movimentar durante a relação sexual). Então, acabo partindo de um lugar diferente para pensar nessas questões; sei que precisamos unir nossas reflexões de diferentes áreas se queremos entender melhor a nossa realidade, então claro que entendo a importância de questões biológicas para o entendimento do ser humano e suas relações sociais; mas, primeiro, tenho fortes dúvidas de que haverá um cerne biológico tão determinante quanto postula Reich e toda a turminha da psicanálise e, segundo, mesmo aventando tal possibilidade, estou certo de que não temos conhecimento suficiente para chegar perto de conhecer esse cerne (muito menos com o nível de detalhe e certeza que Reich afirma). Nesse registro aqui essa reflexão surgiu ao ouvir a gravação da aula, pois em um momento o Pedro falou do sadismo enquanto fetiche sexual, de que se há consenso na sua prática, se uma pessoa gosta de dar tapas e a outra gosta de recebê-los, “isso não necessariamente é uma coisa ruim, porque esse é o encaixe deles lá. Em geral, quando um deles faz terapia, esse encaixe desmonta”; e aí, para mim, surgiu logo a questão “como uma coisa pode ser considerada não-ruim se ela é desmontada pelo processo terapêutico?”. Aqui eu sinto uma espécie de “incoerência cognitiva”, pois ao mesmo tempo em que se recorre e reforça um paradigma essencialista, se busca construir uma prática relativista; usa-se Reich que muitas vezes diz “é bem assim” para dizer “não é bem assim”, sem disso tirar uma crítica a Reich ou rever a posição atual. Deu vontade de reler o “Anti anti-relativismo” do Geertz.

  Depois de mais alguma discussão sobre os conceitos de raiva e agressividade, fizemos a primeira prática da aula, que foi um acting em duplas usando uma toalhinha como ferramenta; a ideia é que a toalhinha seja dobrada e colocada na boca da pessoa que está deitada, que deve ficar mordiscando-a e olhando de um lado para o outro. Segundo o Pedro, duas dificuldades podem acontecer: a primeira é o reflexo do vômito, caso no qual a pessoa poderia parar um pouco com a toalha na boca para deixar a sensação passar; o segundo é a dificuldade de movimentar os olhos, caso no qual a pessoa que está observando (o terapeuta) pode auxiliar usando um dedo como objeto para a pessoa acompanhar, movendo-o de um lado para o outro. Depois disso, o Pedro passou outro movimento, que é o terapeuta pedir para a pessoa morder firmemente a toalha, enquanto o terapeuta puxa a tolha para um lado, usando pouquíssima força, apenas oferecendo resistência para que a pessoa possa fazer força; pode ser trabalhado o segmento ocular pedindo para a pessoa olhar lateralmente para o mesmo lado que a toalhinha está sendo puxada. Alguns minutos depois o Pedro acrescentou que pode ser pedido que a pessoa que está com a toalha nos dentes rosne.

  Achei muito interessante como foi quase unânime nos relatos após a prática de sensação de tranquilidade e paz, principalmente das pessoas falando sobre o espanto que tiveram com isso, visto que estavam esperando alguma coisa em relação à raiva. Fiquei um pouco decepcionado que as pessoas, ao invés de questionar então esses essencialismos, procurando buscar os fundamentos desses exercícios, traçar relações e procurar mais informações sobre a teoria que os sustenta, apenas se satisfizeram em continuar nesse “que esquisito, não tive raiva nenhuma”; em um momento o Pedro chegou a dizer, frente a um relato de uma pessoa que disse ter ficado em plena paz durante a atividade, “para vocês verem que a raiva pode ser prazerosa, pois mesmo com o atividade de raiva você ficou de boas”. Uma pessoa que falou que sentiu raiva com a atividade foi uma que está, na mina leitura, visivelmente seguindo um caminho de confirmação daquilo que lê, incorporando essas teorias, ao invés de buscar um caminho da crítica e da experimentação; já tivemos algumas conversas e essa pessoa se mostra muito interessada nas leituras de Freud e sempre sinto-a mais introjetada dessas noções – certa vez, em uma conversa informal no instituto, eu disse uma frase como “a inteligência é excitante”, e ele me relatou que ao ouvir essa minha frase já imaginou um falo enorme vestido de professor e dando uma palestra. A fala dessa pessoa na roda de impressões foi uma descrição quase ipsis litteris da explicação que o Pedro havia dados minutos antes sobre a raiva muitas vezes advir de uma tristeza; tanto que, quando ele disse isso, o Pedro apontou logo “como eu disse antes…”. As poucas falas que narravam alguma coisa extraordinária, sem exceção, passavam por uma elaboração muito racional das coisas, mas sempre tentando trazer uma aparência, “um ar”, de emocional

  Acredito que a decepção não foi maior apenas porque não esperava algo muito diferente daquele coletivo, que sempre me parece muito mais interessado nesses absolutismos que confortam do que em investigações que questionam. Fico pensando se não tem nessa postura um pouco daquele sentimento de “clubinho do conhecimento secreto”, de pertencer a um grupo que sabe coisas que ninguém mais sabe; pois muitos dos postulados de Reich se enquadram nessa categoria de coisas, visto que desafiam todo o conhecimento que construímos até então e não são passíveis de comprovação inequívoca, sempre dependendo de subjetivismos e dados não observáveis. Fico também que colocando em questão, se não estou querendo fazer as vezes de “sr. questionador”, acabando por criticar um clubinho de dentro de outro; mas, além de realmente não ver motivos para discordar da metodologia científica desenvolvida ha séculos, a única que se coloca em dúvida, também não sei que clubinho poderia ser esse de que busco fazer parte, visto que ninguém lê esses textos nem mesmo possuo um círculo com quem discutir as ideias que trago para cá. Sempre busco desconfiar daquilo que me parece autoelogio, mas também preciso aprender a reconhecer que certos padrões são baixos demais para considerar que estar fora deles é um elogio de qualquer tipo que seja – e acredito que um mínimo de questionamento e pensamento crítico é um mínimo esperado em um grupo de pessoas que passaram pela educação superior. Ainda ter que discutir porque é um absurdo a homeopatia constar entre os tratamentos aceitos pelo SUS ou então ver um texto sobre astrologia publicado em um compilado de artigos reichianos não parecem bons indicativos sobre o nosso sucesso em produzir uma sociedade aonde o senso crítico seja um valor almejado…

  Depois disso o Pedro passou três outras atividades a serem feitas no colchão. Na primeira, a pessoa deita, e dá uma cotovelada lateralmente, com os dois braços, no colchão, ao mesmo tempo em que emite um som intenso (“rá”). Na segunda, a pessoa enrijece os braços e as pernas e as bate alternadamente no colchão, sem dobrar os joelhos nem os cotovelos. Na terceira, a pessoa faz o movimento de pontes curta, deixando a perna dobrada, levantando a pélvis e deixando-a cair contra o colchão. Em todos os exercícios pode-se iniciar com a pessoa fazendo de forma lenta, mas deve-se sempre pedir que vá acelerando, o garante maior intensidade e um trabalho com o controle.

  Ainda na demonstração dessas atividades acima, conversas foram acontecendo e com isso o Pedro decidiu mostrar outras possibilidades de “exercícios” antes de as pessoas fazerem essas nos colchões. Uma, foi, de pé, fazermos a seguinte posição: joelhos levemente flexionados, as mãos na altura do peito com as palmas viradas pra frente; a partir dessa posição, jogamos a pélvis e as mãos para frente enquanto emitimos um som forte (“rá”) – bem semelhante à parte da dança “Segure o Tchan” na parte do “tchan,tchan, tchan, tchan” (mas sem ir abaixando). Depois fizemos o “tremilique” dos dentes, procurando uma posição da mandíbula aonde a mesma começa a tremer “sozinha” e sustentando essa posição; pelo que entendi, a ideia de fazer isso foi de relaxar os músculos. Após isso, viramos todos de costas para o centro da roda e fizemos “coices” para trás, também emitindo um som de “rá” forte. Esses dois exercícios com som prejudicaram a minha garganta, fique sentindo ela “raspando” por bastante tempo, mesmo tendo ido beber água logo depois. Após isso algumas pessoas fizeram “sessões” dos exercícios nos colchões, e em duas delas aconteceram os “tremeliques reichianos” – forma irônica que uso internamente (bom, agora externamente também) para me referir a esse comportamento: após algum exercício desse tipo, de respiração ou algo do tipo, a pessoa começa a ter espasmos por todo o corpo; seria o equivalente de corpo todo ao que, também ironicamente, tenho chamado de “gemeção reichiana”. E foi nesse momento que um diálogo interessante se iniciou; interessante não exatamente por seu conteúdo, mas pelas “forças “que ele colocou em jogo e, com isso, evidenciou. Como da vez do debate sobre epistemologia, preferi transcrever essa conversa e fazer uma postagem separada para ela, que vocês podem conferir no seguinte link: