08 de novembro de 2019 – Primeira aula de Clínica Psicorporal das Psicoses e dos Transtornos Mentais

Esse foi o primeiro curso oferecido na sexta-feira neste tempo que estou na formação; para mim isso é excelente, pois dificilmente tenho coisas para fazer na sexta-feira à noite, geralmente inclusive tenho ido para a casa do Wilian (um amigo que mora na Lapa e me abriga nos finais de semana de formação) já na sexta-feira. Esse curso também me interessou bastante pela sua temática, pois os dois cursos livres que fiz até então foram de técnicas corporais, e muito peso da formação, até então, é colocado nesse tipo de coisa; eu procuro entender a presença do corpo na clínica reichiana mais por um viés de compreensão de que corpo e mente são uma unidade funcional do que nessa perspectiva de “temos que agir diretamente sobre o corpo”. Pensar e problematizar a psicose também me é muito interessante pois a tradição psicanalítica, na qual a Análise do Caráter se encaixa, é muito focada na neurose, então acaba que temos pouco material para pensar e trabalhar com a psicose. Esses fatores me levaram a escolher esse curso livre ao invés do único outro que foi oferecido nesse semestre, Oficina do Corpo V.

O Henrique iniciou a aula com uma apresentação geral, foi misturando na sua fala um pouco da sua apresentação pessoal e do curso; segundo ele, dois cursos livres que ele costuma oferecer no IFP lhe são muito caros: esse de Clínica das Psicoses e um outro sobre Clínica Psicorporal com Adolescentes. Ele apontou que inicialmente o objetivo era trabalhar apenas com a psicose, mas refletindo sobre isso pensou que seria muito difícil trabalhar apenas com a psicose e não entrar na questão dos transtornos, dando o exemplo do Transtorno Obssessivo-Compulsivo, que anteriormente se tratava terapeuticamente através da psicoterapia, pela fala, e hoje, transformado em transtorno, possibilita o tratamento medicamentoso, e isso seria uma ideologia contemporânea. Dentro dessa apresentação ele trouxe uma reflexão muito interessante sobre “uma visão muito impregnada” na nossa sociedade de hoje, a de que a psicose seria “o fim da linha”, uma espécie de pior lugar para se estar, e que, na verdade, as coisas não se processam bem assim, existindo muitas pessoas psicóticas que vivem muito melhor do que várias neuróticas. Ele trouxe especificamente uma fala que me foi muito importante para possibilitar uma reflexão: em um momento ele apontou como equivocada a concepção de que o tratamento da pessoa psicótica consistia em uma neurotização da mesma. O Pedro Castel já apresentou essa concepção em aula mais de uma vez, e eu a havia incorporado, percebo agora que um tanto acriticamente, como acertada – me pareceu fazer sentido a ideia de sendo a psicose uma ausência de contorno e a neurose uma presença exagerada de contorno, as coisas se processassem dessa forma. No entanto, uma fala do Henrique foi muito precisa para apontar como isso também é ideológico: ninguém diz que o tratamento com a pessoa neurótica consiste em uma psicotização – afinal, se a ideia de maior ou menor contorno faz sentido, ela deveria se processar para ambas as direções. Mas eu duvido muito que qualquer terapeuta fique confortável com a ideia de que o processo com uma pessoa neurótica deve ser psicotizá-la; dessa forma, essa mesma pessoa deveria se incomodar com a ideia de que o trabalho com a pessoa psicótica consiste em uma neurotização, por mais aspas e figuras de linguagem que se possa usar nessa formulação. Não tivesse sido interessante em mais nenhum sentido (e foi), essa aula teria valido à pena somente por essa reflexão.

Nesse primeiro encontro éramos cinco pessoas: duas formadas em Psicologia, uma em Comunicação, uma em Fisioterapia e eu em História; logo depois que essa informação foi trazida nas apresentações, o Henrique trouxe outra ideia interessante (que já havia trazido em outros momentos, especialmente na supervisão do CAP – Centro de Atendimento Psicoterapêutico), a sua crítica ao posicionamento defendido por alguns psicólogos de que a psicoterapia deveria ser especialidade da profissão. Segundo ele, a ideia de tratamento pela fala nasce com a Filosofia na Grécia durante a Antiguidade Clássica, que seria um acinte a ideia de que a Psicologia deva se apoderar de algo que não é, efetivamente, de sua alçada, e que isso só surge como discussão dentro do conselho federal por questões de mercado. Eu acho essa uma discussão realmente muito perigosa, não só porque envolve essa questão de regulamentações e apropriações, mas porque se coloca em um plano aonde seria necessário o consenso sobre vários conceitos e definições, o que certamente nós não só não temos como vivemos em uma sociedade que não busca produzi-los. O exemplo que o Henrique trouxe é interessante para pensar isso, pois quando ele pergunta “o que um psicólogo que trabalha há 10 anos com Psicologia Organizacional tem competência de abrir um consultório e atender amanhã? Enquanto, por exemplo, um filósofo que já fez formação clínica, já fez psicanálise, não tem, não vai poder”, fica evidente uma preocupação com a qualificação do terapeuta e com a criação de padrões para avaliar a sua capacidade ou não de oferecer atendimento à população; mas hoje, em contrapartida, não há nenhuma forma de garantir essa qualidade, basta a pessoa abrir um consultório e pronto, pode oferecer atendimento psicoterapêutico. Maior regulação ajuda a criar uma prática mais consequente? Quem faria essa regulação, caso existisse? Se a psicoterapia não é uma competência de exclusividade da Psicologia, se o psicoterapeuta pode percorrer outras trajetórias narrativas para se formar enquanto tal, o que permite ao psicólogo atender enquanto terapeuta? Essas, e outras, são questões que deveriam ser colocadas em debate para a produção de uma discussão sobre esse assunto. Eu sou tentado a concordar que a psicoterapia não deve ser prática exclusiva da Psicologia, mas realmente refleti muito pouco sobre essa questão e nunca participei ou acompanhei um bom debate sobre isso; a minha opinião se sustenta nesse aspecto histórico que o Henrique traz (sobre o qual, aliás, seria ótimo ter acesso a maior bibliografia) e na concepção de que a psicoterapia não é uma atividade que traz um risco imediato e/ou alto o suficiente para exigir regulações.

O Henrique trouxe que essa aula seria em cima da definição de alguns conceitos e termos para que pudéssemos caminhar em solo comum nos próximos encontros. Uma primeira coisa que ele trouxe nesse sentido (também um ponto no qual ele já tocou em outros momentos) foi a importância da teoria da técnica: “a produção teórica na psicanálise ela é incomensurável, quando você fala de trabalho técnico temos vários trabalhos, quando a gente fala em discussão da teoria da técnica, o que nos leva a usar a técnica e como isso relaciona à teoria temos muito pouca coisa trabalhada – inclusive também no que diz respeito ao nosso trabalho reichiano. Tanto que às vezes a gente fala ‘trabalho reichiano’ pensa logo ‘porque Reich trabalhava o corpo’, ‘porque trabalho corporal’… Se vocês leram já Reich vocês vão ver que Reich trabalhou muito pouco diretamente no corpo. Todas as produções de trabalho direto no corpo são pós-Reich. Reich inicia muito pontual o trabalho dele com o corpo, ele viu o corpo como uma integração com a palavra, ele trabalhava o corpo como uma expressão da psiquê e da emoção, e com uma referência que a palavra enganava e chegou à conclusão também que o corpo também engana, a ponto de chegar e começar um trabalho lá na frente com a orgonomia aonde a energia e o campo que se cria tentaria reduzir um pouco essas fantasias que nós temos de achar que o trabalho corporal vai resolver o problema do paciente. O trabalho corporal é um instrumento, uma ferramenta a mais no nosso trabalho. O Luiz Carlos Marinho, que era um analista reichiano que virou psicanalista, ele falava uma coisa que eu sempre gostei muito, ele colocava o seguinte: ‘no trabalho corporal, 70% do tempo a gente trabalha a palavra, e os outros 30% a gente relaciona o corpo com a empatia’ (…) Não adianta você ter a técnica e ter a teoria se você não sabe olhar para o sujeito naquele momento e construir uma relação, e produzir uma ação, compatível com o trabalho que você está fazendo com aquela pessoa”. Um ótimo exemplo que ele já trouxe em outro momento é o uso da lanterna: muitas pessoas utilizam a ferramenta sem ter um bom motivo para isso, apenas porque aprenderam a técnica, aprenderam que se inicia o trabalho corporal pelo segmento ocular e, muitas vezes, não sabem o que fazer, então o uso de uma ferramenta cobre esse buraco teórico.

Em outro momento ele disse que a ideia de que o psicótico não “faz transferência” é uma falácia, e que o trabalho na clínica da psicose deve ser feito na transferência e não com a transferência; a diferença seria na relação de aproximação com a situação clínica. Enquanto que algum distanciamento seja efetivamente importante, no trabalho com a psicose perde-se qualidade se essa distância for perpetuamente mantida. Transferência aqui devendo ser entendida não tanto no sentido estrito que Reich dá ao termo, mas num sentido mais freudiano de afeto, daquilo que afetará a pessoa. Depois, ele trouxe uma consideração que pareceu importante (mas que eu ainda não tenho elementos e estudos o suficiente para avaliar), que iniciou com a pergunta “o que é núcleo psicótico?”; uma pessoa respondeu “quando a pessoa tem um traço psicótico”, e disso se seguiu um pequeno diálogo sobre se o psicótico tem ou não traços psicóticos (no sentido de que, se é psicótico, não tem traços, é psicótico) que eu ou não achei relevante ou não consegui acompanhar; ao final desse pequeno diálogo, o Henrique disse “eu acho que ‘núcleo psicótico’ é um nome equivocado para dar a algo que tem outro nome, que aí sim a gente poderia pensar melhor: núcleo infantil”. Justificando essa afirmação, ele trouxe que para Freud a definição entre neurose e psicose acontece na fase do Complexo de Édipo, pois é nela que haverá “uma coisa importante, o reconhecimento da lei, aonde uma criança, em função da interferência da função (…) paterna intervem e faz com que essa criança perceba que ali há um limite para ela”; pois, na ideia do Complexo de Édipo, a criança ama a pessoa que faz a função de mãe e é a pessoa que faz a função de pai que impedirá a consumação desse amor – isso seria a introjeção da lei. O psicótico, então, seria aquela pessoa que mesmo reconhecendo-a não aceita essa lei como limite. Aqui é onde a minha pouca leitura de Deleuze e Guattari faz eco e não consigo achar essa explicação baseada no Complexo de Édipo convincente; não é negar a existência desse comportamento, mas sim negar que esse comportamento seja universal e advindo de estruturas inerentes da psiquê humana. O Henrique também apontou que na teoria freudiana há uma problemática em relação ao gênero da pessoa, pois o Complexo de Édipo só se processaria dessa forma em indivíduos homens, pois nas mulheres o pai não instituiria a introjeção da lei, visto que ele não se sentiria ameaçado pela presença da filha e sua relação com a mãe.

Um pouco mais pra frente ele trouxe uma história que eu achei muito interessante (reproduzo aqui com um mínimo de edição, apenas para adaptar a fala ao escrito, mas não alterei a substância nem acrescentei palavras, exceto quando indicado em colchetes): “Eu não esqueço nunca do Morton Herkoswitz, que eu assisti lá em Montevidéu nos 100 anos de Reich, que ele chega e fala o seguinte: estava eu (porque ele foi aluno do Reich) lá, e aí estava o Lowen, o Baker e o Reich conversando, e eu ali de butuca ligada, um moleque, aí o Lowen estava falando, que o trabalho dele estava sendo muito legal, que ele havia conseguido produzir vários genitais [no sentido de tornar pacientes de caráteres neuróticos em pacientes de caráter genital, a ideia de Reich de saúde/saudável], aí o Baker falou ‘eu também já consegui muitos genitais no meu processo terapêutico’ (e quando você fala que você já conseguiu produzir genitais, por definição você já é genital, e como todos os dois passaram pela mão do Reich, Reich teoricamente produziu a genitalidade dos dois). Aí [perguntaram] ‘e você mestre? E você Reich?’, aí ele olha e fala ‘cara, eu não consegui nunca ser genital; pior de tudo, eu nunca consegui fazer paciente nenhum virar genital, isso é uma ideia minha’. Pode ser uma piada, mas é uma piada bem interessante”. Acredito que o que o Henrique quis trazer com esse exemplo foram duas coisas: primeiro, apontar como, dentro da sua interpretação da teoria reichiana, não existe uma pessoa que seja de caráter genital, essa ideia funcionando mais como o conceito de limite na matemática, ou seja, é algo do qual sempre podemos nos aproximar mas nunca efetivamente chegar; segundo, apontar como existem muitos terapeutas que interpretam de forma equivocada a teoria reichiana. Assim como o próprio Henrique, não sei dizer se a história é efetivamente um fato ou somente uma piada, mas ela certamente ilustra bem esses pontos.