14 de setembro de 2019 – quinta aula de Análise do Caráter II

  O Marcus Vinícius iniciou a aula perguntando sobre o exercício que ele deixou para fazermos em casa, o diagnóstico processual de um caso; uma minoria fez, e tivermos um pequeno diálogo povoado com risos e piadinhas sobre isso. Também houve alguma confusão em relação ao que exatamente era necessário fazer, como construir esse diagnóstico processual, então acabou que também falamos um pouco sobre isso. Eu achei interessante a diferenciação que o Marcus Vinícius fez entre diagnóstico processual e “etiquetação”: nesta, o terapeuta pega uma lista de caracteres e fica buscando encaixar o paciente em uma “caixinha”, enquanto que naquele o terapeuta parte das características do paciente, busca entender a sua dinâmica e tenta encontrar a defesa principal do paciente, seu caráter, que pode coincidir com um dos caracteres já descritos na literatura ou não.

  Em relação a como fazer o exercício, eu tive compreensões equivocadas sobre a proposta do mesmo, em parte por preferências e construções minhas, em parte pela pouca explicação mesmo com a qual o exercício foi apresentado. Eu não consigo harmonizar a ideia sempre repetida pelos professores e pelo próprio Reich (no Análise do Caráter) de que as respostas metodológicas de um caso serão construídas a partir das especificidades do próprio caso com essa ideia de categorização em um caráter, mesmo que entendendo isso como uma categorização aberta e passível a mudanças. No caso desse exercício, então, eu considero isso mais equivocado ainda, pois o relato apresentado não traz informações suficientes. Inclusive isso foi outra interpretação minha que atravessou a forma como encarei o exercício; como as informações contidas no exercício eram informações que podem aparecer em um primeiro atendimento, eu imaginei que era esse o caso – se estou em um primeiro atendimento, a minha preocupação jamais seria a de rotular o paciente em um tipo de caráter. Entendo que o exercício tenha limitações, que não possa oferecer muitas informações sobre o caso justamente para permitir a dúvida e a exploração, mas acho que ter sido feito dessa forma tornou a execução do mesmo confusa; imagino que algumas direções iniciais, como explicar que se trata de um relato apresentado pelo terapeuta depois de X atendimentos, facilitariam o desenvolvimento sem fornecer dados adicionais que pudessem comprometer o objetivo do exercício. Mas essa minha recusa de fazer rotulações também acabou me levando a não construir efetivamente um diagnóstico, mas sim uma espécie de projeto terapêutico; as anotações que fiz foram as seguintes (a descrição do caso pode ser encontrada na postagem sobre a aula anterior https://game.noblogs.org/post/2019/08/13/10-de-agosto-de-2019-quarta-aula-de-analise-do-carater-ii/):

  → De um ponto de vista reichiano, penso que a relação com a mãe deva ser o núcleo neurótico, pois além de obviamente ter ligação com o conflito edípico, foi a única relação que o paciente apresentou e desenvolveu sem críticas (a queixa aparece pela esposa). A partir dessa hipótese, eu não exploraria diretamente essa relação, esperando o amadurecimento do processo terapêutico para isso;

   → O paciente ter queixas sobre a relação com o pai e com a esposa mas trazer como queixa principal as suas “ausências” aponta um caminho para iniciar o trabalho com as resistências. Inicialmente eu pediria ao paciente para desenvolver mais o antes e o depois dessas situações de ausência. Para procurar nas suas seleções e no “como” mais indícios das suas ligações com as pessoas que ele trouxe em seu relato;

   → Como assim “faz luta marcial”? Dificilmente alguém usa essa construção, as pessoas costumam dizer “faço boxe”, “luto judô”, “treino Muay-Thai”… Pedir ao paciente que desenvolva mais sobre isso pode apresentar mais dados sobre sua construção, sendo de especial interesse a figura do pai nisso;

   → Alguém, nessa sociedade, casado há 8 anos e sem filhos deve ter algum motivo para isso;

   → Como a relação com a irmã e o irmão surge (ou não) em seus relatos? Outro ponto que penso ser prudente não abordar diretamente: “você falou da sua disputa para subir de faixa; me conte mais sobre esse dia” ou “fala pra mim do dia do seu casamento”, sempre tentando harmonizar com o tema/assunto trazido pelo paciente, são perguntas que tocam em pontos importantes trazidos pelo paciente e podem revelar, pela presença ou não, elementos da relação dele com a irmã e o irmão;

   → A hipótese, sendo o terapeuta homem, é que a transferência inicialmente se fará a partir da relação com o pai; ao falar deste, o paciente só lhe relata as atitudes (sempre negativas), mas nunca a própria reação frente a isso. Saber dessas reações, em momento oportuno, permite mais dados para uma atenção em relação à transferência negativa (sendo esta latente ou não);

   → O controle parece uma questão para o paciente. As suas queixas no que toca às suas relações são sempre apresentadas com motivos (o pai era severo e ausente; o sexo com a esposa é pouco e de má qualidade), as suas “ausências” lhe trazem risco de vida. A relação com a mãe, de quem não tem queixas, só é brevemente adjetivada em oposição à relação com o pai, mas não apresenta as qualificantes dessa relação – ou seja, o paciente não fala do emocional;

   → O projeto terapêutico passa pela confirmação das hipóteses levantadas no contato inicial. Confirmadas essas hipóteses, o trabalho será de liberar a raiva mantida em xeque pelo excesso de controle e, através desse processo dinâmico, permitir ao paciente o contato com suas emoções, cuidando com o processo de transferência nessa reconexão. É fundamental que haja a construção de uma relação de confiança entre terapeuta e paciente nesse momento – Reich alerta para o quanto o processo de Análise do Caráter é custoso ao paciente, embora mais efetivo.

  Por mais que eu não goste de coisas que soem como um autoelogio, eu gostei muito da produção que eu fiz, da forma como encarei esse caso, e tive essa consciência depois de ouvir as outras pessoas e ver a forma como elas abordaram a questão. Percebi, com felicidade, que trabalhei dentro da perspectiva da análise do discurso, de não buscar “o que ele quis dizer com isso” mas sim trabalhando em cima do que foi efetivamente dito. Por exemplo, na questão da “luta marcial”, após a explicação do Marcus Vinícius eu entendi que talvez essa tenha sido a forma que o terapeuta escolheu para relatar o caso, não que o paciente tenha se expressado com essas palavras; mas enquanto eu imaginei que aquelas seriam as palavras do paciente, eu busquei entendê-las no que elas colocavam em jogo, o fato de ele fazer uma escolha que esconde mais do que informa. Isso é algo que acho importante entendermos na análise do discurso, pois Foucault trás com muita força a ideia de que não devemos procurar algo oculto no discurso, mas sim trabalhar a sua materialidade; retirei as duas citações a seguir do livro “A Ordem do Discurso”: não ir do discurso até ao seu núcleo interior e escondido, até ao centro de um pensamento ou de uma significação que nele se manifestasse; mas, a partir do próprio discurso, do seu aparecimento e da sua regularidade, ir até às suas condições externas de possibilidade, até ao que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e que lhes fixa os limites”. Tratar dos discursos enquanto séries regulares e distintas de acontecimentos e não em tratar das representações que possam existir atrás dos discursos”. Isso pode trazer a impressão de que uma análise do discurso nunca poderá tratar da falta – afinal, se temos que nos ater à materialidade dos discursos, debruçar sobre algo que falta é justamente procurar o imaterial. Embora tenha uma lógica consistente, essa ideia se apresenta, na mina opinião de merda, sem um exame mais cuidadoso da realidade; afinal, a falta é material, eminentemente material, como poderá afirmar qualquer pessoa a quem falte alimentos, por exemplo. Assim, quando alguém diz “faço luta marcial”, esta pessoa está claramente criando uma lacuna; antes dela dizer isso, essa lacuna não existia, não havia a informação sobre a sua participação em uma luta, mas ao trazer a informação de que faz uma “luta marcial”, fica evidente a ausência da definição de que luta é essa, ainda mais considerando-se o contexto social aonde é extremamente raro ouvir uma formulação frasal como essa, sendo usual o “faço jiu-jitsu”, “luto kung-fu”, “treino capoeira” e coisas assim. Procurar o que está “atrás dos discursos” seria, nesse caso, construir afirmações como a apresentada por outro grupo, que viu no fato de o paciente fazer “luta marcial” uma forma de chamar a atenção do pai tido como ausente. Me espantou que ninguém mais tivesse se atentado para esse detalhe, tomando como normal a frase “faz luta marcial”, ainda mais em uma formação de analistas reichianos, que deveriam se importar com o corpo – a escolha de uma arte marcial específica poderia trazer mais informações e possibilidades terapêuticas para esse caso.

  Uma outra interpretação trazida na discussão mostra esse tipo de comportamento de “ir do discurso até ao seu núcleo interior e escondidofoi sobre a relação do paciente com a esposa; o Marcus Vinícius colocou dessa forma: “Então eu vou responder à pergunta que eu tinha feito (…) Qual é a relação dele com essa mulher em função da relação que ele teve e tem com a mãe? (…) É porque é um comportamento edípico; tanto é que o que ele se queixa da mulher, ou na relação com a mulher? Que tem relações sexuais em qualidade e em quantidade insuficiente – isso é a mãe”. É explícito como esse pensamento advém do pressuposto de que o complexo de édipo é realmente uma estrutura inegável, um dado de realidade inequívoco em todas as pessoas. Mesmo se fizermos o exercício, que me parece honesto, de considerar que esse complexo existe (e não que é uma estrutura onipresente nos indivíduos), não conseguimos encontrar no relato do caso algo que apoie essa conclusão, apenas se tivermos o Complexo de Édipo como um a priori. No relato a única coisa que liga a mãe à esposa é o fato desta queixar-se que o paciente liga para aquela muitas vezes; porque, então, surge a ideia de analisar a relação do paciente com a esposa em função da relação que ele tem com a mãe? Em um momento posterior da aula o Marcus Vinícius chegou a dizer a frase “finalmente a Clara [ver caso abaixo] conseguiu casar, e casar com um cara que tem semelhanças com o pai, o que é meio inevitável”. Aqui se observa um aspecto do caráter pseudocientífico da psicanálise e suas vertentes, pois é muito fácil pensar em como a mesma consideração poderia ser feita a partir da relação do paciente com o pai: o pai sempre representou a falta para esse paciente, então por isso ele identifica falta na relação com a esposa; podemos ir numa construção frasal que, acredito, produziria excitações libidinosas em psicanalistas: o paciente se queixa de que o pai trancava as coisas pessoais, assim como se queixa de que a esposa “tranca” as “coisas pessoais”. Acho isso muito complicado, no sentido de ruim, porque vejo que há uma cegueira nisso, parte voluntária parte estrutural, criando e replicando essas pseudociências. A questão de como não me enveredar por esse caminho se coloca para mim com muita força e urgência…

  Depois disso fomos para um intervalo e, voltando dele, o Marcus Vinícius nos apresentou um outro caso, para que fizéssemos o mesmo exercício, desta vez em aula, com os grupos que já se haviam formado:

Caso Clara

   Tem 28 anos. Relata que pai e mãe são nordestinos conservadores, mas ela é carioca. É moradora de um subúrbio longínquo do Rio de janeiro. Solteira, católica praticante e afirma que foi virgem até 27 anos. Tem dois irmãos mais velhos. Sua queixa principal é de que tem uma série de doenças corporais “de fundo nervoso” (sic). Queixa-se de tudo e de todos – pais, atual namorado, o chefe de seu trabalho, irmãos etc. Também afirma ter episódios depressivos. Toma antidepressivo prescrito por psiquiatra. O atual namorado é “duro, áspero” (sic) no trato com ela. Contudo se diz envolvida amorosamente. Tem uma fantasia de que jamais engravidará em função de alguns órgãos aderidos. Atualmente se encontra paralisada, sem perspectivas pessoais e de crescimento profissional.

  Estatura mediana, olheiras que a paciente atribui à falta de sono. Tronco fino e ancas largas. Seios médios para pequenos, pernas mais grossas que os braços. O que chama mais atenção no rosto são as olheiras profundas. O tronco é fino e estreito em relação à parte de baixo do corpo, a cintura fina, marcada, corpo violão. A paciente acha que se veste bem.

  A descrição das características corporais da paciente foram trazidas depois propositalmente, pois inicialmente o Marcus Vinícius nos deixou discutir nos grupos com os dados que tínhamos, para depois acrescentar as características corporais e dar mais alguns minutos para que pudéssemos discutir como esses novos dados afetariam ou não o diagnóstico que construímos até ali.

   Nesse exercício foi muito presente a discussão sobre aquilo que está exposto no relato, como se constrói esse relato, o papel do terapeuta nessa construção, para termos sempre em mente que existe essa pessoa, que um relato de caso nunca é uma descrição da realidade, ele é sempre um recorte dessa realidade pelo olhar do terapeuta. Por exemplo, foi ressaltada a frase “afirma ter episódios depressivos” como uma possibilidade de interpretação de uma recusa do terapeuta em aceitar esse diagnóstico, pois caso o fizesse diria apenas “tem episódios depressivos”; por outro lado, foi colocado que o terapeuta fraseou dessa forma pois não observou tais episódios, não podendo, assim, confirmá-los ou negá-los, então apenas reproduziu a fala da paciente. Achei interessante notar, embora não o tenha feito durante a aula, que mesmo com essas considerações, podemos reparar que nessa frase o terapeuta não sentiu a necessidade de usar as aspas nem o “(sic)”, recursos que ele usou em dois outros momentos para marcar a fala da paciente. Também foi marcado como é fundamental que o próprio terapeuta tenha consciência de que é atravessado por questões, de que também tem mecanismos neuróticos, e que isso pode dificultar a sua conexão com o paciente que está à sua frente, pode lhe levar por interpretações não baseadas naquilo que esse paciente traz, mas sim em reflexos desses seus mecanismos e desses seus atravessamentos.