10 de agosto de 2019 – quarta aula de Análise do Caráter II

Nesse dia, como de costume, eu deixei para passar no banco e sacar o dinheiro para pagar o curso no deslocamento da Central (ou Passeio, como foi o caso) até o IFP, pois tem um Banco do Brasil pouco antes do Largo do Machado. Mas quando cheguei na porta da agência ela não abria, e uma pessoa me avisou que no sábado somente a partir das 08h – eram cerca de 07:50. Eu poderia esperar, mas como estava com muita vontade de ir ao banheiro, pensei que poderia ir até o IFP logo, pois o Pedro costuma chegar cedo, iria no banheiro, deixava a pesada mochila lá e voltava até o banco. Infelizmente a primeira aula era do Marcus Vinícius que, diferente do Pedro, não tem o hábito de chegar antes no Instituto, então acabou que eu preferi ficar sentado lendo, aí as pessoas foram chegando e somente quando o Marcus Vinícius chegou é que fui ao banheiro e depois ao banco. Por conta disso perdi o início da aula, mas como deixei o gravador com o Bernardo e ele o ligou, não perdi o conteúdo. Como de costume, nessa aula o Marcus Vinícius distribuiu mais uma parte do seu texto descrevendo alguns caracteres, e para a aula desse dia trabalhamos os caracteres Impulsivo e Esquizofrênico.

Logo no início da aula, seguindo o modelo de leitura do texto com pausas para comentários, o Marcus Vinícius trouxe uma questão, mais uma questão, que percebo como muito importante para a nossa formação enquanto terapeutas, de que essa divisão tipológica de caracteres diz respeito a uma compreensão de que o caráter é “uma grande defesa, com D maiúsculo”, pois Reich trabalha menos com o conceito de neurose e mais com o conceito de tipos de caráter; esse é um elemento, acredito, para responder à pergunta “o que diferencia a psicanálise da análise do caráter?”. Embora esse seja um elemento importante da compreensão da construção de teoria reichiana, vejo que não adianta de muita coisa se a terapeuta insiste na utilização de uma tipologia rígida; na aula anterior (se não me engano) e em outros momentos o Marcus Vinícius reforçou conosco a ideia de que essa tipologia que ele está trabalhando não é fechada, que Reich afirma que haverão quantos tipos de caráter uma sociedade for capaz de produzir. E eu penso que essa questão também pode ser pensada por outro viés, de que se o caráter é uma defesa, há tanto diversas formas de se defender quanto coisas das quais se defender; só olhando uma ou outra já haveriam mais elementos do que qualquer tipologia que vi até agora pode dar conta – ao fazermos os cruzamentos de cada “algo do que se defender” com cada “forma de se defender disso”, o número cresce exponencialmente.

Outra coisa interessante que o Marcus Vinícius trouxe, a partir da leitura do texto sobre o caráter impulsivo, veio com a seguinte frase: “a gente tem uma ideia de que o encouraçamento é fundamentalmente provocador de inibição, ou seja, de contenção excessiva – daí o encouraçamento. Não estou falando da couraça ‘mais saudável’, mas da couraça neurótica. Mas a gente esquece que também há uma possibilidade de pouca contenção e, consequentemente, de uma frouxidão. A ideia é de que a couraça impede a pulsação, a gente tem sempre que ter essa clareza, pois a gente associa quase que automaticamente a ideia de couraça à rigidez, mas não é exatamente isso, embora aconteça na maior parte das vezes. E por que acontece na maior parte das vezes? Porque a sociedade ainda é muito repressora, de um modo geral. Tanto a frouxidão excessiva quanto a rigidez impedem a pulsação – a couraça impede a pulsação, seja pela rigidez, seja pela pulsação excessiva”. Na continuidade da leitura e dos comentários ele também fez a diferenciação entre delírio e alucinação: nesta, a pessoa cria uma imagem, no sentido de que coloca um elemento na realidade que efetivamente não existe; enquanto que no delírio a pessoa estabelece uma relação que não existe, embora os elementos relacionados existam. Por exemplo, se alguém se sente seguido na rua por alguém que não está ali, ela está alucinando, enquanto que se imagina que uma pessoa que apenas está andando na rua a está seguindo, isso seria um delírio.

Uma passagem do texto sobre as características psicorporais do caráter impulsivo diz “Os afetos mal assimilados pelo ego podem obnubilar a realidade, mas a relação com esta não é rompida”, e então o Marcus Vinícius disse que não deveríamos entender “afeto” no sentido vulgar e leigo, aonde seria algo terno e amoroso, mas sim que o uso que se faz aqui seria tanto dos afetos positivos quanto dos negativos: ciúme, raiva, amor… São emoções e sentimentos que nos afetam. Como o Pedro Castel fala bastante sobre afetos, que trabalha com os afetos, parece que está à beira de publicar um livro sobre esse tema, achei que havia aí algo interessante a se pesquisar; procurando no Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis achei o seguinte:

“Termo que a psicanálise foi buscar na terminologia psicológica ale­mã e que exprime qualquer estado afetivo, penoso ou desagradável, vago ou qualificado, quer se apresente sob a forma de uma descarga maciça, quer como tonalidade geral. Segundo Freud, toda pulsão se exprime nos dois registros, do afeto e da representação. O afeto é a expressão qualitativa da quantidade de energia pulsional e das suas variações”

Nessa definição, duas coisas que chamaram a atenção: primeiro, como realmente a questão energética, embora com consequências e conotações diferentes, aparece importante em Freud, e mesmo já se apresenta a questão de “se a energia é somente uma quantidade, um quantum, como que se expressam qualidades a partir da energia?”; e segundo, como ainda está presente a concepção binária no dualismo afeto e cognição, o que me faz, mais uma vez, fortalecer a importância de buscar a leitura do livro “Afeto e Representação” de Antonio Imbasciati, que é um autor que, buscando atualizar os conceitos e entendimentos da psicanálise a partir de novas explorações e descobertas, faz a crítica dessas concepções dualistas.

A partir de um trecho que se referia às “manifestações perversas” do caráter impulsivo, o Marcus Vinícius definiu esse “perversas” como manifestações aonde não existe representação, sendo o perverso o indivíduo que não representa, que não simboliza. Continuou dizendo “aqui a gente vai beber na fonte da psicanálise, que diz que há três caminhos possíveis de ‘adoecimento mental’: ou você é neurótico, ou você é perverso, ou você é psicótico – são três estruturas diferentes. No neurótico há uma representação, uma simbolização das coisas. Então, por exemplo, o sujeito lava (o obssessivo) as mãos o tempo todo porque simbolicamente aquilo tem uma representação; por exemplo, ele teria cometido um, aspas, ‘pecado’, algum equívoco com aquelas mãos, e precisaria lavá-las mesmo quando elas estão limpas. Então tem um sentido simbólico aquilo ali, tem algo representacional daquele ato. O ato é também um ato não só concreto mas representativo de um outro algo; simboliza outra coisa. O perverso, ele não faz isso – ele é cru. Não é necessariamente cruel, daí a ideia de que gente perversa é cruel, porque na verdade como ele não simboliza ele vai lá e faz. Então aquilo que o neurótico achou que era um pecado mas não conseguiu lidar com aquele ‘pecado’ e por isso tem que ficar lavando as mãos mesmo elas não estando sujas, o perverso não, ele foi lá e fez o pecado – então ele é cru. Ora, se ele ‘foi lá e fez’, isso é muito parecido com a ideia geral que a gente tem do impulsivo – por isso que o impulsivo pode ter traços perversos. Ou seja, como o impulso, a força para fazer é maior do que ele consegue dar conta, ele vai lá e faz. Então ele não simboliza, ele não consegue criar uma condição de contenção para lidar com aquilo que ele teria que lidar. Então nesse sentido vocês podem imaginar que realmente haverá necessariamente atos perversos; enquanto uma criança pode ter impulsos pra sacanear uma outra criança e dizer ‘não, não, mas eu não posso fazer isso’ porque já está criando ali uma condição de superego, ‘porque isso é errado, eu não devo fazer isso com o outro’, o perverso vai lá e faz, se ele está com vontade. Então por isso é que o Freud dizia, não o Reich mas o Freud dizia que até uma determinada idade todas as crianças eram perversas-polimorfas, ou seja, a criança ainda não tinha assimilado a ideia de representação e simbolismo, então ela vai lá e faz. Exatamente porque nela vai sendo criada uma ideia de superego, ou seja de contenção, criada na relação com os pais ou com quem criou essa criança, que ela vai entendendo que em algumas coisas ela tem que se conter e fazer uma representação daquilo ali – só que isso é feito de uma forma absolutamente inconsciente, isso não é tão consciente assim. Essa transformação de um ato que você não pode ter em algo de uma ordem simbólica é feito de um modo inconsciente”. A partir disso eu fiz a seguinte pergunta “Numa definição de dicionário a perversão seria ‘a renegação da castração com fixação da sexualidade infantil. Como que eu faço um link disso com o que você está trazendo aí sobre o caráter impulsivo?”; a resposta dele foi muito interessante, pois fixa mais uma vez a informação de que no texto reichiano existe efetivamente uma rigidez em relação a alguns conceitos, que por vezes os reichianos apenas flexibilizam mas sem questionar a produção de Reich, como que querendo passar por um “ele escreveu isso mas não é bem assim que ele quis dizer”: “Então, porque na verdade, essa ideia é uma ideia de que (tomando um Reich muito estrito, muito restrito), de que na verdade o que vale é domínio da genitalidade; então você pode ter, você pode passar por olhares e sensações e intensidades emocionais e afetivas pré-genitais, mas o domínio é da genitalidade. E o perverso ele não tem isso, porque na verdade ele não consegue estabelecer um domínio da genitalidade, ou seja, da entrega – ele fica numa condição de estabelecer as coisas cruamente, de estabelecer as relações cruamente. Daí a ponte de uma coisa com a outra. Ou seja, é um sujeito que não vai conseguir se entregar e viver profundamente as suas relações e os seus vínculos (…) Então, assim, qual é o equívoco que a gente às vezes percebe, ou a gente tem dificuldade de perceber: é que o impulsivo ele é tão intenso que por vezes a gente confunde essa intensidade com entrega; aliás, essa é uma das defesas do impulsivo”. Também achei interessante o destaque de que existe um equívoco frequente nas observações “da gente”, dos terapeutas – principalmente por parte das pessoas na formação eu vejo alguns comportamentos tão certos de que seus essencialismos correspondem inequivocamente à realidade que não se questionam em momento algum.

Na parte final do texto sobre o caráter impulsivo, mais uma definição interessante e importante para a compreensão geral da teoria psicanalítica: “O que é neurose de transferência? É essa neurose clínica que se estabelece a partir da transferência. Ou seja, é ali, acontecendo no consultório, na integração paciente-terapeuta, sendo ali aquela relação constituída também da mesma condição neurótica na vida daquele paciente fora do consultório – essa repetição ali, acontecendo, e a gente chama de neurose de transferência”. Aí eu fiz um comentário, mais para que o Marcus Vinícius desenvolvesse a ideia do que para receber uma resposta: “Que pro Freud ao resolvê-la é que se dá a alta”. E ele continuou: “Sim, sim. Enquanto que pro Reich você tem que ter também a possibilidade de entrega, de criação de autonomia…”, eu perguntei “Então pro Reich não está associado o fim da neurose de transferência com o ganho dessa autonomia?” e o Marcus Vinícius continuou “Não, vai junto, na verdade vai junto. Porque assim, transferência, mesmo as leituras psicanalíticas mais recentes, não falam de uma possibilidade inteira de resolução da transferência porque, assim, a transferência está dada. A mesma discussão séria entre se um dia, mesmo quando você deixa de atender alguém, se esse paciente deixa de ser transferido – há uma discussão sobre isso. Tem terapeuta que diz que se você deixar de atender alguém e encontra com essa pessoa em uma festa cinco anos depois, esse ex-paciente vai continuar transferindo, então vai continuar ali uma relação transferida; e tem terapeutas que partem do pressuposto que não, que você realmente consegue estabelecer uma relação diferente. Isso dá margem, por exemplo, para aqueles casos, na história da psicologia e da psicanálise isso é evidente, pra justificativa ou não daqueles casos em que terapeutas casaram com ex-pacientes”. Após algumas risadas e comentários, eu perguntei se o motivo de, na mão contrária, não ser recomendado que aonde já existe uma relação de proximidade (amigo, irmão) se estabelecer uma relação terapêutica seria pelo perigo de se substituir a relação existente por uma relação de transferência ou se a existência dessa relação anterior impediria o estabelecimento de uma relação transferencial no setting clínico; o Marcus Vinícius respondeu que seria o segundo caso, pois “não tem como… Não tem como você ter aquilo que o Bleger chama de uma distância instrumental necessária para lidar com o seu paciente. Você tem que ter uma distância – que não tem nada a ver com neutralidade, porque terapeuta não é neutro, ele tem time de futebol, ele torce por coisas, ele tem ideologia, ele é um ser político, ele vota… enfim, não tem como ter neutralidade, não existe neutralidade – mas você tem que ter uma distância instrumental, o que é uma distância, é uma distância que é um instrumento para você manejar bem a terapia, senão você não consegue manejar bem a terapia. Você tem que ter isso. Claro que a gente está falando aqui de todas as terapias que levam em consideração o manejo de transferência (…) Na psicologia a gente tem várias correntes, tem várias escolas, de abordagem terapêutica, e algumas delas não levam em consideração a questão transferencial. Então pra essas é menos problemático isso, porque você parte do pressuposto que você terapeuta tem que ser com o paciente você mesmo, que não tem ali uma relação transferencial que tem que ser… que quando tem projeção, tem isso, tem aquilo, você vai trabalhar isso sendo você mesmo, uma pessoa ali em.. que atende”; então alguém perguntou “quais são essas correntes?”, e ele continuou: “Ah, por exemplo, a corrente existencialista leva esse… todas as abordagens que não levam em consideração o conceito de inconsciente. Porque todas as abordagens que levam em consideração o conceito de inconsciente trabalham com transferência; então vamos pensar: Freud e todas as psicanalíticas, Jung, Reich; mesmo a esquizoanálise, por exemplo, que trabalha com um outro conceito de inconsciente, mas tem ali uma questão transferencial que pode ser trabalhada. Agora se você pensar em TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental), em todas as existencialistas (Gestalt-Terapia, Terapia Existencial-Fenomenológica, Psicodrama Moreniano) ninguém leva em consideração ou quase ninguém leva em consideração a ideia de inconsciente, de conteúdos inconscientes, a ideia de recalque, por exemplo, portanto você não trabalha transferencialmente. Não é inclusive que eles não percebam que existe uma transferência, eles percebem, só que isso não é objeto de manejo, de trabalho – você vai trabalhar isso de um outro jeito, de uma outra forma”.

Baseado nisso, fui buscar alguma referência nos dicionários de psicanálise que tenho aqui. No “Dicionário de Psicanálise” de Roudinesco e Plon, sob “Neurose de Transferência” encontra-se apenas referência a dois outros vocábulos: neurose e transferência. Na definição de neurose encontramos:

“Termo proposto em 1769 pelo médico escocês William Cullen (1710-1790) para definir as doenças nervosas que acarretavam distúrbios da personalidade. Foi popularizado na França por Philippe Pinel (1745-1826) em 1785. Retomado como conceito por Sigmund Freud a partir de 1893, o termo é empregado para designar uma doença nervosa cujos sintomas simbolizam um conflito psíquico recalcado, de origem infantil.

Com o desenvolvimento da psicanálise, o conceito evoluiu, até finalmente encontrar lugar no interior de uma estrutura tripartite, ao lado da psicose e da perversão.

Em conseqüência disso, do ponto de vista freudiano, classificam-se no registro da neurose a histeria e a neurose obsessiva, às quais é preciso acrescentar a neurose atual, que abrange a neurose de angústia e a neurastenia, e a psiconeurose, que abarca a neurose de transferência e a neurose narcísica.
A expressão neurose de caráter provém da terminologia de Edward Glover e da doutrina de Wilhelm Reich, enquanto a noção de neurose de fracasso foi cunhada por René Laforgue, e a de neurose de abandono, pela psicanalista suíça Germaine Guex (1904-1984)”

E sob o termo transferência encontra-se:

“Termo progressivamente introduzido por Sigmund Freud e Sandor Ferenczi (entre 1900 e 1909), para designar um processo constitutivo do tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a objetos externos passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos objetos. Historicamente, a noção de transferência assumiu toda a sua significação com o abandono da hipnose, da sugestão e da catarse pela psicanálise.

(…)

Em 1920, em Mais-além do princípio de prazer, Freud tornou a se surpreender com o caráter repetitivo da transferência. Constatando que essa repetição sempre se referia a fragmentos da vida sexual infantil, ele ligou a transferência ao complexo de Édipo e concluiu que a neurose original era substituída, na análise, por uma neurose artificial, ou “neurose de transferência”. No processo analítico, esta devia conduzir o paciente a um reconhecimento da neurose infantil”

Já no livro “Vocabulário de Psicanálise” de Laplanche e Pontalis há o verbete “Neurose de Transferência”, sob o qual se encontra o seguinte texto:

“A) No sentido nosográfico, categoria de neuroses (histeria de angústia, histeria de conversão, neurose obsessiva) que Freud distingue das neuroses narcísicas, no seio do grupo das psiconeuroses. Em comparação com as neuroses narcísicas, elas se caracterizam pelo fato de a libido ser sempre deslocada para objetos reais ou imaginários, em lugar de se retirar sobre o ego. Disso resulta serem mais acessíveis ao tratamento psicanalítico, porque se prestam à constituição no tratamento de uma neurose de transferência no sentido B.

B) Na teoria do tratamento psicanalítico, neurose artificial em que tendem a organizar-se as manifestações de transferência. Constitui-se em torno da relação com o analista; é uma nova edição da neurose clínica. Sua elucidação leva à descoberta da neurose infantil”

Um pouco mais pra frente o Marcus Vinícius trouxe uma reflexão que achei muito interessante, que envolve exatamente essa questão da neurose de transferência, de como vamos lidar com ela enquanto terapeutas e, visto que as pessoas transferem na vida, da diferença que o setting clínico faz nesse processo: “Aquilo que a gente falou no primeiro tipo de caráter que a gente mencionou que foi o histérico… por exemplo, o riso histérico, que é uma dissociação… A pessoa está diante de uma desgraça e começa a rir, porque ela não suporta lidar com aquela desgraça. Então se isso acontece ali no processo de neurose de transferência com o terapeuta, você pode apontar isso, reichianamente falando: ‘você tá rindo agora, o que está acontecendo aí com você?’; porque ela está falando de uma desgraça, de uma dificuldade, e começa a rir, porque não consegue lidar com aquilo. Ou seja, um riso dissociado, como se a personalidade estivesse cindida de fato. Isso também acontece com o impulsivo e com todo mundo que cinde a sua própria personalidade como uma forma de defesa, de não entrar em contato com aquilo. O que que é a dissociação: não entrar em contato com aquilo; qual é o projeto terapêutico: você colocar o paciente em contato com aquilo. Aí vocês podem me dizer: ‘mas olha só, se o paciente cindiu porque ele não aguenta, como é que a gente vai dizer pra ele que ele aguenta?’. Esse é o trabalho da gente – e por isso é difícil. Mas por que que ele aguenta, ou teoricamente aguentaria com a gente? Porque a gente está ali, calorosamente, sem uma ameaça concreta… tá bom, tem algum grau de ameaça porque você vai trabalhar com as pequenas defesas do sujeito, mas o próprio paciente sente que você está ali, pra não julgá-lo, pra não absolvê-lo nem criminalizá-lo, então, assim, isso vai ficando claro – porque o mundo julga. Por isso que a gente não deve julgar, nem inocentar nem culpabilizar o paciente (isso a gente tem que ter muita clareza), ou emitir juízo de valor – isso é bom, isso é mau, você fez bem, você fez mau… Toda vez que você fala um treco desse você cria uma situação do paciente entender que você julga, e aí ele vai deixar de expressar certas coisas. Então a ideia é você estar ali, no calor humano, escutando, amparando, e criando uma condição de reflexão, de auto reflexão pro paciente, ou seja, pro próprio paciente sentir, perceber, se desenvolver e entender que ele pode fazer isso na relação com você”. E na continuidade ele disse uma pequena frase que também acho muito significativa, principalmente juntando tanto com a reflexão que o Reich fez sobre o foco do seminário de Viena dever ser mais sobre os casos que não tiveram sucesso quanto com a escrita do Henrique Rodrigues de como falta produção teórica no campo reichiano: “Eu estou falando aqui como se eu também não cometesse meus equívocos, não entrasse às vezes numa constratransferência meio complicada, como se eu não dissesse coisas que depois eu me arrependesse – isso já aconteceu e continua acontecendo, felizmente depois dessas décadas todas atendendo isso acontece menos. Mas de vez em quando eu me pego em casa ‘que merda de atendimento – por que que eu fui falar aquilo’ (…) Ou quando eu estou escrevendo sobre o caso; estou escrevendo sobre caso e aí na escrita eu me toco de que a minha intervenção não foi a melhor possível… Mas é isso que vai te fazendo atender melhor, essa clareza, esse pensar sobre o seu próprio atendimento”.

No final da aula, o Marcus Vinícius passou uma atividade para desenvolvermos em casa e levarmos na próxima aula; trata-se de uma apresentação de um caso, para o qual devemos desenvolver um diagnóstico processual – fugir de etiquetagens, de estigmatizações, tendo a ideia de que um diagnóstico é sempre passível de reformulação e de que ele é dinâmico. A ideia é pensar essa caso em cima não só dos oito tipos de caráter apresentados, mas também em cima de outras possibilidades, de outros autores aos quais desejemos recorrer. Ele nomeou o caso de “O Caso X”, e o descreveu assim:

“X é um homem de 34 anos, orientação heterossexual, casado há oito anos e sem filhos. Trabalha com tecnologia da informação. É muito apegado à mãe (a mulher queixa-se de que ele liga ao menos duas vezes por dia para a mãe). É o caçula de três, uma irmã e um irmão. O pai faleceu quando tinha quinze anos de idade; relata queo pai era muito duro com ele. O paciente faz luta marcial e narra que em sua principal disputa para subir de faixa, o pai não compareceu, mesmo sendo convidado. O pai ficava lendo jornal o tempo todo, conversava sempre com o jornal levantado. O pai trancava coisas pessoais em um escritório a que só o pai tinha acesso. Ao contrário do pai, a mãe sempre foi muito presente. X queixa-se que a relação sexual com a mulher é insatisfatória em quantidade e qualidade. Sua queixa principal é a de que tem tido ausências de consciência. Já fez todos os exames neurológicos possíveis e nada foi constatado. X queixa-se ainda que a frequência dessas ausências tem aumentado. Relata que nas duas últimas correu risco de vida; numa delas “acordou” depois de ter batido com o carro em uma árvore, e em outra vez voltou a ter consciência depois de ter girado o carro na Av. Brasil”

O texto distribuído nessa aula foi o seguinte:

7 – Impulsivo

Características Psicorporais

O caráter impulsivo possui ênfase em todas as zonas erógenas. Não há qualquer ponto de fixação real em nenhuma das fases pré-genitais. Motivação para o impulso que não costuma ser percebido como um problema. Estes impulsos são marcados pela repetição. É um distúrbio da personalidade, marcada por comportamento sem ou com pouca inibição. O caráter impulsivo tem uma relação exageradamente vivaz com o mundo. É muito auto-referenciado. As ideias são intensificadas e podem chegar a uma litigiosidade delirante. Os afetos mal assimilados pelo ego podem obnubilar a realidade, mas a relação com esta não é rompida. Manifestações perversas são comuns, especialmente as sadomasoquistas. O caráter impulsivo é dominado pelas pulsões. Há como que uma prontidão sexual precoce e regular neste tipo de caráter. É comum o desejo incestuoso ser consciente. As pulsões parciais e o alcance da fase genital infantil coexistem com intensidade. Dessa maneira, as brincadeiras infantis são perverso-polimorfas. Como são indivíduos negligenciados por quem constitui o seu entorno, eles continuam atentos à vida sexual dos adultos e o período de latência não chega a ser ativado ou o é de modo inadequado. No impulsivo, observam-se obstinação, rebeldia, inferioridade interior, tendência a se torturar e a torturar os outros, hostilidade, inescrupulosidade (falta de cuidado ou zelo).

Etiologia

O caráter impulsivo sofre de um recalque defeituoso. Há uma perturbação no mecanismo do superego. Em princípio, o ideal do ego (superego) deveria ora negar, ora afirmar as pulsões do id. Se o superego passa somente a confirmar as pulsões, criará um ego que, necessariamente, irá conflitar com a realidade. Na formação do caráter impulsivo nota-se que uma ampla satisfação pulsional não inibida, foi seguida, posteriormente, por uma frustração traumática. A educação inconsistente com inibição pulsional insuficiente articulada à frustração isolada, concentrada ou súbita são aspectos do caráter impulsivo. Desse modo, a ambivalência “amor e ódio” se faz presente. Mais tarde, quando a criança torna-se um adulto, a ambivalência é replicada na relação de um indivíduo com outrem. Contudo, diferentemente dos psicopatas, há um superego, ainda que imperfeito. O superego não está “organicamente” fundido ao ego, ele se encontra separado ou isolado. O superego isolado (que não funciona junto com o ego) funciona como uma pulsão recalcada e cria a necessidade de punição. Portanto, as moções pulsionais (a impulsividade) assumem a função secundária de aliviar os sentimentos de culpa através do caminho patológico da satisfação da necessidade de punição. Buscando o caminho de ser punido, o ego dissociado (o indivíduo nunca se identifica por inteiro, mas apenas por uma parte do seu ego) do impulsivo consegue uma forma distorcida de ser “punido” por desejos inconscientes, que para o impulsivo são inconcebíveis.

Dinâmica Interna

O caráter impulsivo apresenta uma falha no mecanismo de recalque. A impulsividade do caráter compulsivo é percebida por este como estranha, ou seja, é um sintoma. Já a impulsividade do caráter impulsivo não é passível de estranhamento pelo indivíduo, sendo, por isso, um traço de caráter. As ações do primeiro são destituídas de um aparente sentido, o mesmo não ocorre com as ações do segundo. Diferencia-se do esquizofrênico, porque neste a percepção dos limites do ego e o teste de realidade não permanecem intactos, apesar de que tanto no esquizofrênico como no impulsivo, diante de leves frustrações ou decepções pode haver retraimento narcísico da libido ou retirada de investimento energético que seria dirigido ao mundo. No impulsivo, para se resolver o conflito entre impulsos e a não incorporação (assimilação) dos ideais do ego (superego) ao ego, ora a solução passa pelo mecanismo de projeção (como na esquizofrenia) ora passa pela dissociação, cisão (como na amnésia temporária da histeria), ou seja, ora o mecanismo é psicótico, ora é neurótico. O caráter impulsivo está no limiar entre a neurose e a psicose.

Projeto Terapêutico

É necessário buscar um certo grau de equilíbrio entre concessão de prazer e cerceamento de pulsões. O projeto terapêutico deve consolidar a inteireza egóica em oposição à dissociação egóica do impulsivo. Na neurose de transferência, a maior parte da personalidade do paciente logo se convence (por causa dos sintomas) e se identifica com as intenções terapêuticas, já no caráter impulsivo, o ego permanece parcialmente infantil e a consciência em relação à própria doença é falha ou ausente. Os ideais do ego (superego) se amoldam às atitudes patológicas (sintomas neuróticos) ou permanecem isolados, isto é, não se aliam ao ego, portanto, o projeto terapêutico deve ser o de buscar superar a dissociação egóica (separação de partes do superego do ego) pela consciência do quanto sua personalidade está cindida e, com isto, a busca pela integração da mesma. São fases do trabalho terapêutico: 1) não há percepção de que o ego se sujeita completamente às moções pulsionais; 2) transferência positiva crescente. A libido que estava ligada ao velho superego falho ou isolado, agora converte-se em libido objetal. O novo objeto (o analista) pode funcionar como base para a formação de um novo superego. O analista ajuda o paciente a se dar conta do princípio de realidade; 3) o vínculo entre paciente e terapeuta sustentado pela libido, agora, permite a substituição do velho ideal do ego (superego falho ou isolado) pelo novo ideal do ego (ora se alia às pulsões, ora as recalca) e, consequentemente, da psique. Depois da análise do ego, pode-se finalmente iniciar a análise dos conteúdos inconscientes mais profundos.

8 – Esquizofrênico

Características Psicorporais

Forte bloqueio (couraça) ocular. Olhar alheado, distante, olhar que não é para os outros, mas os atravessa (olhos desligados, sem expressão), transe, flexibilidade cerácea (caso se mova um membro do enfermo, este se manterá na posição deixada pelo clínico), catalepsia, retardamento mental, automatismos, desorientação, perda de coordenação motora, da capacidade de associar e do sentido das palavras, rebaixamento dos interesses. O peito é macio, mas não se move no ritmo respiratório. A sensação está dissociada de sua interpretação (percepção). A respiração é rasa. Não estabelece fronteiras entre seu corpo e as suas reações em seu campo energético. Falta-lhe unidade, esparrama-se, falta-lhe coesão. Apresenta bloqueio na garganta (não tão forte quanto o ocular), timidez, é retraído, tem voz baixa, restrição da expressão, reserva e refugia-se diante de qualquer sinal de agressão ou ataque vindo do seu entorno (amedronta-se com facilidade). Observa-se uma cisão da personalidade e uma quebra do contato com a realidade. Há despersonalização: perda do contato com o corpo ou parte dele, sensação de estranheza e irrealidade. No catatônico, nota-se uma contração energética e muscular extremada, fruto de um medo desmedido; no paranóide, observa-se uma projeção sobre o mundo daquilo que o indivíduo não consegue manejar em si mesmo; no hebfrênico, há um estado de evidente resignação (debilidade). Biofisicamente, a cabeça do paciente parece não estar presa; o pescoço é tenso; a expressão é fria, falta-lhe luminosidade e intensidade. Há tensões na base do crãnio e na região sacro-lombar. Falta de contato com as pessoas e o solo. O movimento do corpo é mecânico, sem contato com sentimentos. O corpo é carregado energeticamente, mas sem força agressiva para expressar-se. A sexualidade está despotencializada. É emocionalmente monótono e difuso. Falta integridade ao ego.

Etiologia

A fixação esquizofrênica ocorre em uma fase arcaica de identificação. Há uma introversão intensa e profunda em que ocorre regressão a uma fase arcaico-infantil. Isso se caracteriza pela separação muito tênue ou inexistente entre o sujeito e o objeto libidinal. A resultante deste processo é uma projeção sobre os fenômenos externos. Nota-se, como nas neuroses, um bloqueio ocular. Contudo, no esquizofrênico ele ocorre nos primeiros dias de vida, já nas neuroses o bloqueio é mais tardio. A couraça ocular foi formada a partir de uma defesa contra um olhar ameaçador, de raiva ou de ódio vindo do meio ambiente (frequentemente é um ódio inconsciente provindo da mãe). Isto cria uma cisão interna (auto-percepção distorcida) e uma cisão com o mundo externo, que não permitem uma boa adequação ao ambiente. Evidenciam-se dificuldades para olhar, interpretar o mundo adequadamente e uma forte contração na base do crânio. Aqui há um forte bloqueio na couraça esquizofrênica.

Dinâmica Interna

Os ideais do ego (superego) que não estão assimilados pela personalidade como um todo e permanecem isolados dela, ficam sujeitos, no esquizofrênico, ao destino da transferência paranóide do ego para o mundo externo. Outra possibilidade empregada pelo ego para se livrar de sua função de mediador entre o superego e os impulsos primitivos é a cisão ou a dissociação de personalidade, que também ocorre na histeria. Primeiro o ego toma o lado dos impulsos proibidos e depois o do superego. Torna-se “escravo de dois senhores”. Ama e luta para servir aos dois. Contudo, diferentemente da neurose histérica na qual há uma formação de compromisso que gera um sintoma neurótico (amnésia temporária), na esquizofrenia a “solução” é não permitir a um senhor que saiba da existência do outro, isto é, há uma cisão da personalidade em dois estados de consciência. Há uma quebra do funcionamento unitário biofísico, uma distorção na percepção desta quebra, e as reações do indivíduo a ambos os fatores. Percepção e sensação são agudas e presentes em alto grau, mas estão dissociadas. A sensação é sentida, mas não é interpretada (percepção) com clareza. O esquizofrênico vive no seu campo energético ao invés de estar dentro da superfície de sua pele. Não consegue que a energia escape para a musculatura (é, sobretudo, bloqueada na região ocular e não é descarregada). O esquizofrênico é muito carregado energeticamente. O ego é débil em seus limites, não medeia a relação com a realidade, é inundado pelas forças do id, que entra em contato direto com a realidade. O componente agressivo é impotente para conter a carga e a excitação energéticas que se ampliam para além do organismo. Enquanto na histeria há uma reação defensiva do ego (couraça), na esquizofrenia há uma desorganização do ego e não há descargas agressivas e sexuais potentes e adequadas. O ego está dissociado da sexualidade. O ego é frágil, portanto, este é um caráter débil, sem esteio, com defesas muito tênues.

Projeto Terapêutico

Em virtude da timidez e do medo, o esquizofrênico deve ser trabalhado com cautela. Deve-se fazer com que abra e movimente os olhos e testa. Passo a passo, o esquizofrênico deve ganhar contorno, um sentido de unidade psicorporal, ainda que básico. Também deve tornar-se mais expressivo e ampliar o contato. A energia, conectada à sexualidade e à agressividade, monitorada pelo terapeuta, pode ganhar um canal razoavelmente adequado de descarga. Isto, se realizado com zelo, pode contribuir para uma integração psicorporal um pouco mais consistente no esquizofrênico. É necessário que o terapeuta seja caloroso e afetuoso com o paciente, que lhe forneça contornos e amparo. Como a mãe odiou, inconscientemente, o filho e tornou seu corpo frio, é preciso calor para derreter o gelo que se apossou do mesmo, é importante a prontidão para a compreensão do paciente. O ego deste deve se estruturar do modo a conviver, ainda que basicamente, com o corpo. O desenvolvimento e a articulação destes aspectos contribuem para uma mínima condição de autonomia necessária à existência do esquizofrênico.