14 de março de 2020 – quinta aula de Vegetoterapia II

Como não poderia deixar de ser, essa aula foi iniciando com uma conversa sobre a pandemia de SARS-CoV-2/COVID-19, com foco no como isso está afetando o trabalho dos psicoterapeutas, passando também pela decisão de manter as aulas nesse mês no IFP. Ao discutir isso, a Denise foi entrando na questão dessa aula, que ela havia pensado um trabalho em dupla mas que por conta da pandemia ela iria fazer um trabalho individual, e ao falar do segmento pélvico e como ele não poderia ser profundamente trabalhado ali no curso pois no trabalho terapêutico ele é trabalhado apenas no final do processo, uma pessoa trouxe uma questão, em resumo, sobre o quão rígida deve ser essa “ordem” do trabalho com os segmentos, se haveria a possibilidade de fazer apenas um trabalho “rápido” com uma pessoa que chegasse ao consultório com alguns segmentos já bem trabalhados; a Denise respondeu que a indicação, embora exista, não é rígida, mas que ela nunca recebeu alguém em seu consultório que não precisasse de um trabalho significativo nos primeiros segmentos, por exemplo, e ressaltou que a forma da orgonoterapia trabalhar é “dos segmentos superiores para os segmentos inferiores, do atual para o passado e do superficial para o profundo”.

Seguindo a esse diálogo, outra pessoa trouxe uma questão que achei muito pertinente de ser colocada, pois acho ela pouco explorada na formação: “Eu fico pensando muito, depois da aula passada, o papel do homem terapeuta. Porque é fácil para você [se referindo à Denise] ter qualquer tipo de toque ou com uma mulher ou mesmo com um outro homem que de um modo geral a pessoa não vai se importar, a não ser que já tenha normalmente uma paranoia com o toque, né, eu tenho uma amiga que ‘não chega perto de mim’, qualquer coisa nesse sentido aí é outra história. Mas eu estava fazendo o exercício com a Fulana e você falou assim ‘ah não’, por causa do peito alto né, ‘você pode encostar a cabeça no peito da pessoa’ e tudo mais… Se é um homem fazendo isso com uma mulher, eu não sei até que ponto o grau de dificuldade, né… ‘o que que ele está fazendo? É terapeuta mesmo ou ele está aqui querendo tirar uma casquinha’ ou seja lá o que for, e aí todas essas questões associadas ao toque desse terapeuta homem junto com a cliente mulher, o quanto que isso pode ser problemático ou não”. A Denise, de forma que eu achei pedagogicamente perfeita devolveu a pergunta para a turma: “O que que vocês acham?”. Para não ficar transcrevendo grandes trechos da aula, em resumo o que foi discutido aponta que a questão deve ser pensada em dois eixos complementares; mas, antes mesmo de se pensar esses dois eixos, é importante notar que esse e muitos outros problemas e dificuldades podem ser evitados e até sanados tendo atenção na relação que se estabelece entre paciente e terapeuta, na criação do vínculo que o trabalho terapêutico pressupõe, pois é somente a partir desse vínculo e da experiência dessa relação que o terapeuta poderá decidir o que fazer, quando fazer e como fazer dentro do processo analítico – como diz Reich na página 20 do livro Análise do Caráter, “a técnica de uma determinada situação deve se desenvolver a partir da própria situação analítica específica, através de uma análise de seus pormenores”. E esses pormenores da análise não estão apenas na forma como o paciente se comporta dentro do processo terapêutico, mas também estão no comportamento do terapeuta dentro do setting analítico, e é aqui que podemos pensar esses dois eixos a que me referi. Certamente é um dado importante, tendo todo o contexto de uma sociedade machista e que usa o corpo da mulher para violentá-la cotidianamente, que uma paciente mulher se sinta desconfortável, invadida ou mesmo assediada pelo toque de um terapeuta homem, e isso surgindo no processo terapêutico certamente deve ser colocado em análise, lembrando-se sempre o terapeuta reichiano da importância do como – esse incômodo em relação ao toque surge e é comunicado de que maneira? Mas, ao pensar na importância do como, o terapeuta deve estar atento ao seu comportamento também, afinal em uma sociedade que educa para a manutenção do machismo e desse comportamento opressor para com a mulher, o terapeuta pode estar reproduzindo esse tipo de violência dentro da relação terapêutica. É muito fácil para nós transferirmos os nossos problemas para outras pessoas, colocar a culpa em alguém que não somos nós, e a posição de poder que o terapeuta ocupa no processo torna isso muito mais propício. Se uma paciente recebeu mau o toque do terapeuta, não devemos automaticamente cair no psicologismo de “isso é uma resistência”; claro, pode ser uma resistência, mas o processo de análise do caráter inicia justamente no trabalho com as resistências. Mas para além do que acontece do lado da paciente, se um terapeuta efetua um toque ou uma intervenção que é mal recebida sem que ele esperasse isso, há, no mínimo, também um erro de avaliação da sua parte. Aqui reside a importância de que o terapeuta faça acompanhamento terapêutico, para que tenha mais clareza sobre suas questões, e também que ao menos em situações como essas busque fazer supervisão, para que possa ouvir a opinião de outro terapeuta sobre essa questão. Consciente ou não, com toque ou não, um terapeuta pode estabelecer uma relação abusiva com uma paciente, e é importante dar muita atenção a esse tipo de coisa; um questionamento de todo essencialismo, uma esquiva de toda resposta pronta, uma busca pelo falseamento de todas as nossas certezas, são ações que se fazem necessárias para a construção de uma prática terapêutica consequente. Se for entendida nas suas complexidades e aprofundamentos, essa, sem dúvida, foi uma das questões mais relevantes para a formação enquanto terapeuta já feitas no IFP, ao menos nesse período que estou lá. Para deixar a reflexão nesse ponto até aqui (ao menos no texto, claro, pois o objetivo é que a partir dele quem lê possa refletir muito mais), acho muito pertinente usar uma frase da Denise para fechar: “no segmento pélvico, a contratransferência é mais perigosa do que a transferência – no meu ponto de vista”.

Depois disso, ficamos quase uma hora da aula discutindo várias questões, algumas delas sendo casos que pessoas traziam de suas práticas clínicas e pediam a opinião da Denise; aqui, novamente, gostaria de destacar a inteligência pedagógica da Denise, não só pelo simples e eficaz “o que vocês acham?”, mas pela visão aguçada em detectar questões e desdobrá-las em oportunidades de aprendizado para toda a turma. Voltando a falar do segmento pélvico, o foco dessa aula, a Denise ressaltou que o objetivo do desbloqueio pélvico é que apareça o reflexo do orgasmo, e que exatamente por isso é importante que o terapeuta esteja atento ao surgimento daquilo que Reich vai chamar de “angústia de prazer” (o organismo bloqueado não está acostumado com a intensidade do prazer que advém do desbloqueio, então reage negativamente a isso). Nessa fase do trabalho, segundo a Denise, é importante analisar como está a vida sexual do paciente em detalhes (como que é, o que excita, como inicia a excitação, o que excita mais, o que excita menos), pois através disso é possível identificar aonde estão os bloqueios e ter insights sobre como conduzir o trabalho. A partir dessa explicação, então, ela pediu que cada pessoa se deitasse em um colchonete para iniciarmos a parte prática da aula.

Primeiro, a Denise foi passando instruções para que fizéssemos movimentos e intervenções em nosso próprio corpo para trabalhar todos os segmentos, e seguiu essa ordem: Espreguiçar – respirar profundamente – “respiração orgonômica” (com emissão de som na expiração) – manter as pernas dobradas – movimento circular de olhos – franzir a testa (para cima e para baixo) – olhar para um lado e para o outro, indo com o olho bem nos cantos – abrir e fechar os olhos, inspirar fechando os olhos e expirar arregalando os olhos (emitindo sons na expiração) – fazer caretas – massagear a cabeça com as mãos – mover a cabeça para um lado e para o outro – mexer os ombros – soltar os ombros no colchão (“como se estivesse sambando”) – levantar os braços e deixá-los cair no colchão – alargar os espaços intercostais com os dedos (como se estivesse fazendo cócegas em si próprio) – soltar o diafragma, colocando os dedos por baixo das costelas – massagear o abdômen no sentido horário. Depois disso, ela iniciou os movimentos específicos para o segmento pélvico, que foram: movimentar a pelve “em báscula” (ao inspirar movê-la para trás, ao expirar movê-la para frente) – lembrar de sempre, quando trabalhamos com a pelve, buscar o prazer no movimento – o objetivo desse primeiro movimento é perceber o segmento pélvico com mais intensidade, detectar aonde estão os bloqueios, aonde “que prende” – perceber se consegue fazer o movimento de forma síncrona com a respiração – devagar, movimentar a pelve lateralmente (“como se fosse rebolando”) – levantar um pouco a pélvis soltá-la no colchão, sempre soltando a respiração e buscando o prazer no movimento – repetir o movimento de báscula, movimentando a pélvis para frente e para trás, percebendo se houve alguma mudança da primeira vez que fez esse movimento – suavemente, abrir e fechar as pernas, mantendo os pés e a pélvis no chão – depois de um tempo fazer o movimento anterior, continuá-lo, mas agora colocando a mão suavemente nos genitais – tirando a mão dos genitais, imaginar um ponto fixo no teto e buscar, utilizando o corpo todo, seduzir esse ponto fixo, buscando o prazer nessa relação e buscando compreender o que é a sedução para a pessoa – fechar os olhos, procurar tomar consciência da sensação que está no corpo – fazer o movimento de apertar e soltar a musculatura do períneo e do ânus – fazer, pela última vez, o movimento da báscula – ao final do trabalho, a Denise pediu para que quem quisesse se espreguiçasse, depois que todos sentassem mas que não conversassem entre si, mantendo o silêncio. Ao lado de cada pessoa ela deixou uma folha, e pediu para que cada pessoa desenhasse a sua curva orgástica média.

Durante a análise do desenho que cada pessoa fez da sua curva orgástica, várias formas apareceram, talvez só superadas pela quantidade de interpretações dessas formas – além das pessoas da turma oferecerem suas interpretações sobre o desenho das outras pessoas, às vezes a própria pessoa que desenhou mudava a sua interpretação sobre o seu desenho durante o processo de análise do mesmo. No entanto, uma outra coisa me chamou muito a atenção; quando a Denise anunciou que faríamos o exercício de analisar em conjunto o desenho das pessoas, eu imaginei que veríamos muitas curvas desenhadas exatamente como Reich diz que deve ser uma curva orgástica ideal (os gráficos e a explicação de Reich para eles podem ser encontrados no seu livro “A Função do Orgasmo”). Me enganei profundamente, pois na verdade o que mais se viu nos desenhos foram curvas completamente diferentes do que Reich afirma ser o ideal, um número considerável inclusive indo no sentido oposto a esse ideal. No entanto, essas curvas distantes do ideal postulado por Reich não se apresentavam como “não ideal”, ou seja, as pessoas não traziam uma explicação de uma curva orgástica com problemas ou dificuldades que correspondessem a esse desenho distinto do ideal apresentado por Reich, ao contrário, muitas pessoas traziam explicações para seu desenho que correspondiam a uma atividade sexual satisfatória, completa, sem pontos negativos a serem destacados. O que me chamou a atenção não teve nada que ver com as explicações das pessoas ou com suas curvas orgásticas; mas fiquei surpreso como não houve quase ninguém apresentando um desenho semelhante ao que Reich afirma ser o ideal. Há uma dose de cinismo na minha surpresa, pois eu realmente acreditava que as pessoas “mais reichianas” (aquelas que fazem questão de bocejar alto o tempo todo, que se entendem super desbloqueadas nos trabalhos corporais etc.) trariam um desenho que tentaria repetir as curvas que Reich apresenta no “A Função do Orgasmo”; mas, mesmo colocando esse cinismo em xeque, as pessoas poderiam ter desenhado curvas mais próximas ao ideal que Reich apresenta por justamente terem experiências sexuais potentes orgasticamente como Reich define. Assim, seja a partir da minha interpretação cínica ou não, esses desenhos de curvas orgásticas tão díspares ao ideal postulado por Reich aponta, minimamente, para o desconhecimento por parte dessas pessoas da obra reichiana – afinal, ninguém nem desenhou uma curva como as que Reich postula, nem fez referências a essas para explicar as disparidades entre o seu desenho e elas. Vale um destaque, que falar em “conhecer a obra reichiana” é complicado devido à extensão dessa obra (Reich escreveu e publicou muito); mas acredito que para quem deseja trabalhar com análise reichiana é fundamental conhecer os livros “Análise do Caráter” e “A Função do Orgasmo” – essa experiência dessa aula não permite afirmar que aquelas pessoas conhecem ou não essas obras, mas certamente dá indícios preocupantes em uma direção.