09 de novembro de 2019 – primeira aula de Vegetoterapia II

Esse curso foi ministrado pela Denise Dessaune, a única coordenadora com quem eu ainda não tinha tido contato até então (embora ainda não tivesse tido aula também com o Henrique, já tinha contato com ele nas supervisões do CAP). Ela iniciou apresentando o curso como um trabalho sobre a intervenção na couraça muscular, que Reich inicia com a percepção de que apenas o apontamento (através de indicação ou repetição) das atitudes do paciente não era suficiente para tornar consciente essas atitudes de defesa, devido à existência de uma rigidez que não se afrouxava, de onde vem as intervenções diretamente no corpo do paciente, no que Reich denomina “couraça muscular”, que seria um par da “couraça caracterológica”, ambas caminhando juntas no modo de ser da pessoa. Segundo a Denise, é fundamental que o terapeuta reichiano tenha muita atenção a todos os movimentos e sutilizas com que o paciente se apresenta durante a sessão de análise. Assim, o papel do terapeuta é tornar essas atitudes defensivas perceptíveis (pois uma defesa bem instalada tem que ser imperceptível), não fazer com que elas se interrompam; tornando uma defesa perceptível se abre o caminho para o entendimento do papel que ela desempenha. As intervenções nunca são feitas de forma mecânica, elas sempre devem levar em conta a relação transferencial, assim como o momento e a intensidade dessa intervenção devem ser pensados em relação com a situação presente analítica; existem indicações gerais, como a direção céfalo caudal do trabalho (da cabeça para os pés) ou da superfície para o profundo, mas o mais importante é que as intervenções não sejam feitas apenas por fazer ou a partir de algum plano determinado aquém da relação terapêutica.

Depois de explorar um pouco mais algumas questões introdutórias, a Denise trouxe uma coisa que achei relevante, que é a necessidade do terapeuta ter liberdade com o seu corpo e com o corpo do paciente para poder trabalhar corporalmente na clínica: “Porque você tem que ter primeiro essa liberdade com o próprio corpo, ter o corpo lábil, ter o que corpo que possa fazer movimentos… E segundo você tem que ter esse grau de liberdade pra você produzir essa intimidade sem ser uma situação invasiva, sem ser uma situação mecânica”. Eu ainda não estou plenamente convencido de que essa prática que alguns terapeutas reichianos trazem, na qual me parece que a Denise se inclui, é a melhor forma de se trabalhar o corpo na clínica. Na aula do dia anterior o Henrique disse em algum momento que percebe três formas de se trabalhar o corpo na clínica psicorporal: o primeiro, que ele atribuiu ao trabalho efetivamente de Reich, ele chamou de “o corpo na emergência”, no sentido de “emergir” (que me lembrou muito o texto “Nietzsche, Genealogia e História” do Foucault), que seria usar no trabalho terapêutico aquilo que o corpo traz; o trabalho com os actings, que ele associou ao Federico Navarro; e o trabalho de intervenção corporal, que ele usou a própria Denise como exemplo. Eu tenho bastante interesse nessa primeira abordagem, pois entendo-a como mais simples, depende de menos pressupostos, basta o entendimento de que todas as pessoas têm um corpo e de as nossas expressões corporais são moduladas, amplificadas e/ou significadas por nossa história de vida; eu sempre cito como exemplo um amigo que, tímido, levantava a mão para poder falar mesmo em uma roda de três ou quatro pessoas – a escola marcou o seu corpo de tal forma que ele trazia esses signos consigo mesmo fora do espaço escolar. Já as outras abordagens dependem de postulações que, independente de estarem certas ou erradas, são mais complicadas, como a noção de energia e seus derivados (acúmulos, estases, fluxos, correntes etc.), tão presente no campo reichiano. Interessante que mesmo a Denise, que trabalha dentro dessa concepção mais centrada na intervenção direta sobre o corpo do paciente, tem noção de que “a gente tem que lembrar que na orgonoterapia a gente não está trabalhando o tempo inteiro com intervenção, a intervenção é dentro de um contexto, ela está associada à Análise do Caráter, ou seja, é um conjunto de técnicas que você tem à sua disposição para fazer isso, oy seja, ir desbloqueando e tornar possível o reflexo do orgasmo, mas todas as técnicas elas estão juntas o tempo inteiro funcionando, só que, óbvio, nesse curso a gente vai privilegiar o trabalho de intervenção, aparentemente esquecendo as outras mas elas têm que estar o tempo inteiro atentas”. Mas, feitas essas considerações, faz todo o sentido de que, se você vai efetivamente trabalhar intervindo no corpo da pessoa, você esteja à vontade para fazê-lo, e como isso realmente não é algo simples de se conseguir. Não deixa de ser interessante reparar como algumas pessoas da formação que estudam e mesmo trabalham dentro do referencial reichiano há algum tempo ainda possuem bloqueios muito pronunciados nesse sentido e, ao menos em aparência, não são pessoas que questionam esse tipo de intervenção. Um pouco mais para frente, ainda nesse assunto, ela trouxe a ideia de que o toque é uma coisa prazerosa, de que se uma pessoa não gosta de ser tocada, essa recusa ao toque é um sintoma que deve ser analisado e trabalhado.

A aula foi seguindo como uma grande conversa, e eu achei essa forma de trabalhar da Denise muito interessante, porque além dela ser uma boa oradora, a sua fala prende a atenção, ela vai se conectando com os temas conforme elas vão surgindo, seja de ganchos que ela mesma faz com sua própria fala, seja com coisas que as pessoas trazem – ela inclusive pediu algumas vezes que a turma interviesse na sua fala, para que ela não ficasse “falando sozinha”. Em uma dessas intervenções surgiu uma coisa que eu achei interessante ressaltar e que só fez sentido para mim ouvindo a gravação da aula, pois se conectou com algo que a Denise havia trazido alguns minutos antes. Primeiro, então, ela disse “por isso que é uma questão muito importante dentro do trabalho de intervenção essa questão da transferência e da contratransferência e da importância da gente estar relativamente trabalhado para não atuar contratransferencialmente”; ou seja, obviamente a contratransferência é algo a ser evitado. Depois, respondendo a uma questão trazida sobre a liberdade de atuação por parte do terapeuta no corpo do paciente, ela disse “quanto maior a possibilidade de vinculação, maior vai ser a possibilidade de intervenção, né, então eu tenho que fazer uma intervenção muito vinculada transferencialmente, né, com a pessoa (…) evitando o risco da contratransferência (…) Por que o que é a contransferência? Na contratransferência você perde o contato com o outro e vai na sua visão, no seu ritmo, na sua necessidade, na sua forma, né, naquilo que você está percebendo ou necessitando ao invés de estar vinculado com o outro”. Se a contratransferência é justamente a transferência por parte do terapeuta, e se essa transferência vai prejudicar a conexão com a outra pessoa, por que o processo também não ocorre no sentido oposto? Eu tenho ciência de que esse tipo de questão já possui resposta na literatura psicanalítica, a consulta a qualquer dicionário/vocabulário de psicanálise pode mostrar isso; mas para mim é uma questão interessante por mostrar que essa pergunta evidencia que certas respostas da psicanálise e seus derivados são muito mais uma tentativa de cobrir buracos do que descobertas advindas da pesquisa, da observação, do estudo e da tentativa de confirmação das próprias hipóteses.

Em um momento posterior, ao falar ainda sobre essa questão do quão as pessoas estão à vontade de tocar no corpo do paciente, a Denise trouxe uma questão que eu já havia percebido, por comentários de outras pessoas sobre as aulas dela e principalmente sobre a fala dela na reunião de formação de turma: “em relação a isso a gente já pode começar a falar um pouquinho em relação à própria questão da roupa, né, com que roupa, como trabalhar esse limite da roupa dentro do espaço terapêutico, né… Eu já falei algumas vezes, algumas pessoa que já me conhecem, a terapia reichiana em termos históricos, né, no início a gente trabalhava muito com o paciente nu, realmente o paciente totalmente nu. Na minha formação no Instituto Reich no México, a gente muito frequentemente, não trabalhava nu em todas as sessões, mas muito frequentemente a gente trabalhava nu, né, e aqui no Brasil, quando eu vim, voltei do México em 82, a gente durante muito muito tempo trabalhava com a pessoa totalmente nua, às vezes trabalhava com a pessoa de calcinha, de cueca, mas era muito frequentemente tinha uns trabalhos com os pacientes nus. Hoje em dia, eu trabalho ainda… tem muitas pessoas que eu trabalho que trabalham nuas, muitas, eu acho que a maioria, hoje em dia trabalha de calcinha ou de cueca, e, algumas vezes, em algum momento, eu posso pedir um trabalho, de uma determinada intervenção que eu peço para a pessoa tirar a roupa toda, com alguma intervenção a ser feita em função de alguma coisa que eu esteja trabalhando naquele momento, né, e às vezes as pessoas deitam, estão de roupa, e estão trabalhando ali de roupa. É evidente que eu não vou trabalhar com ninguém de calça jeans, né, mas não necessariamente a pessoa vai tirar a roupa todas as vezes em todas as sessões, se você está trabalhando outras coisas, os segmentos superiores… Mas eu pessoalmente prefiro trabalhar com a pessoa com pouca roupa, pouca roupa… Então o que eu tendo a falar com os paciente no início do processo, é falar isso, que a gente vai trabalhar com o corpo mais à mostra, que ele vai se sentir gradativamente, eu vou pedindo pra ele tirar… estar com menos roupa, e também peço geralmente às pessoas pra virem, aqueles que não querem tirar a roupa, vir com uma roupa mais confortável”. Foi interessante que mesmo ela afirmando essa necessidade e tendo bons argumentos para apresentar em relação a isso (afinal, se o trabalho é feito diretamente sobre o corpo e se a “leitura” desse corpo é fundamental para o processo, nada mais lógico do que esse corpo estar o mais exposto possível), o ritmo de fala dela alterou perceptivelmente ao apresentar esse tópico; durante todo o tempo antes dessa fala ela falava mais articuladamente, num fluxo contínuo e até um tanto acelerada, nesse momento a sua fala ficou mais pausada e hesitante. Não acho que isso queria dizer necessariamente isso ou aquilo, mas certamente é um dado interessante.

Com certeza o ponto mais interessante da aula se deu entre o intervalo; antes de pararmos os clássicos “dez minutinhos para o café, água e banheiro”, a Denise estava perguntando diretamente às pessoas (visto que poucas se voluntariavam a falar espontaneamente) sobre essa questão do quão à vontade elas se sentiam acessando o corpo das outras; uma pessoa, ao ser perguntada, disse que não estava se sentindo bem e que, por isso, não estava conseguindo formular bem seus pensamentos e ideias, a Denise perguntou o que ela estava sentindo e a pessoa respondeu que estava com uma crise severa de hemorroidas, tendo inclusive feito naquela semana uma cirurgia para remover alguns trombos. Disso se seguiu alguma conversa, a própria pessoa postulou que a crise se devia ao “trabalho intenso” que havia feito na terapia naquela semana, a Denise jogou para turma uma pergunta sobre o que poderia ser, a nível de sintomas psicorporais, a crise de hemorroidas e algumas pessoas foram trazendo hipóteses, sempre em torno da ideia de retenção e controle que sempre são associadas com questões anais nas teorias psicanalíticas. Como essa pessoa faz a formação junto com sua companheira, em algum momento a Denise falou que uma intervenção direta que poderia ser feita nesse caso seria segurar a pélvis, e que ela poderia mostrar essa posição no momento do intervalo. Assim, enquanto algumas pessoas saíam da sala no intervalo, a Denise se aproximou da pessoa com a crise de hemorroidas para demonstrar a posição: com a pessoa deitada e a planta dos pés do chão, a Denise se ajoelhou em frente a ela e foi encaixando as duas mãos por baixo do corpo dela, as mãos fechadas em posição de soco, sustentando o peso com a parte “superior” da mão (nos dedos polegar e indicador), e assim ficou, pedindo para que a pessoa fosse relaxando a musculatura pélvica. A pessoa foi dizendo o que estava sentindo, e essas sensações foram gradual e progressivamente mudando: primeiro ela dizia que tinha dificuldades de soltar a pélvis, por conta da dor que sentia já lhe vinha um reflexo de contração; com o passar de alguns minutos ela foi dizendo que estava conseguindo relaxar um pouco mais; depois de algum tempo disse que começou a sentir uma sensação agradável de formigamento na ânus; passando mais algum tempo ela foi dizendo que estava sentindo uma vibração se espalhando pelo corpo, e em alguns instantes o seu corpo começou a tremer, visivelmente, de forma mais acentuada na região do abdômen, e a partir disso ela começou a falar com a voz mais presa, claramente segurando uma vontade de chorar, e primeiro começou a dizer que talvez fosse pedir para a Denise parar o trabalho, e como a Denise a instruiu para deixar as vibrações virem e somente relaxar, em pouco tempo a pessoa pediu para que o trabalho efetivamente parasse, que ela “não estava aguentando”. A Denise mostrou à companheira como retirar as mãos (abri-las espalmadas, com as palmas para cima ainda sustentando o peso da pessoa, e ir retirando-as vagarosamente, sentindo, e instruir a pessoa a não “ajudar”, a não aliviar o peso ou elevar a pélvis, apenas continuar o processo de relaxamento) e logo se colocou ao lado da pessoa, mantendo sempre contato físico com ela, colocando a mão no peito ou mesmo segurando a sua mão. A pessoa relatou que pediu para parar pois estava sentindo uma vontade muito forte de chorar e que não sabia aonde aquele choro poderia levá-la, se conseguiria interrompê-lo, e que, por isso, ficava com receio de atrapalhar a aula; a Denise perguntou se alguém se incomodava com isso, e como todas as pessoas presentes disseram que não, ela continuou a estimular a pessoa a não prender nada, que deixasse as emoções virem, e então a pessoa realmente começou a chorar efusivamente, permanecendo assim por alguns minutos. Depois a pessoa foi cessando o choro, ficando mais tranquila e afirmando que a dor havia diminuído bastante; realmente era notável a diferença de postura dela antes e depois dessa intervenção.

Para o momento final da aula, a Denise disse que iríamos fazer uma prática para justamente trabalhar essa liberdade do terapeuta com o corpo do outro; para isso, formamos duplas e fizemos um trabalho com cócegas. Segundo ela, esse é um bom trabalho para isso pois exige bastante movimentação e atenção, pois o terapeuta precisa ficar de olho nos membros do paciente, principalmente as pernas, para não acabar sendo atingido pelos movimentos espasmódicos do paciente. A minha experiência com esse trabalho não foi muito produtiva, pois nem eu nem a minha dupla sentimos muita cócega, então os efeitos de espasmos que observamos em outras duplas não aconteceram conosco; ao menos, de uma forma geral, percebi que não houveram grandes inibições no quesito de trabalhar com o corpo da outra pessoa – obviamente sempre há algum nível de inibição, mas não percebi nada que pudesse efetivamente atrapalhar o trabalho. A Denise disse que na formação que ela fez a única sessão dupla que existia (de 2h!) era justamente a de cócegas, pois é um trabalho mais intenso e que passa por várias emoções: geralmente inicia como algo engraçado, depois vem uma ansiedade para que aquilo pare, que vira um raiva, cresce para uma fúria… Enfim, é interessante conhecer essas outras perspectivas, mas as concepções que baseiam esse tipo de trabalho ainda se concentram em posições muito essencialistas que me desagradam um tanto.