25 de janeiro de 2020 – terceira e quarta aulas de Análise do Caráter III

Como a Denise não poderia dar a aula de Vegetoterapia II hoje, foi feito o esquema de “dobra”, já realizado em semestres passados: em um mês são dadas duas aulas do curso A, pegando a manhã e a tarde do sábado, e no mês seguinte são duas aulas do curso B, no mesmo esquema. Assim, agora em janeiro tivemos duas aulas de Análise do Caráter III, e em fevereiro teremos duas aulas de Vegetoterapia II.

O Pedro iniciou anunciando que trabalharia o capítulo XIV do livro Análise do Caráter, chamado “A Linguagem Expressiva da Vida”, do qual já havia sido pedida a leitura pela Denise, para a aula anterior de Vegetoterapia II; isso foi bom para mim pois já cheguei na aula com o texto lido, fichado e relido, ajudando bastante a acompanhar a leitura e explicações sobre o texto que o Pedro fez. A exposição dele inicia com um contexto histórico, falando da ascensão do Nazismo na Europa, da saída de Reich da Associação Psicanalítica Internacional, das apresentações e publicações de seminários e artigos de Reich que acabaram por constituir a terceira parte do Análise do Caráter (só entrando na terceira edição do livro), de como o trabalho de Reich foi passando pelas suas três fases (Análise do Caráter, Vegetoterapia, Orgonomia) mas sem nunca abandonar a sua ligação com a psicanálise, os estudos de Reich sobre o potencial bioelétrico da pele, sua teoria dos bions e o desenvolvimento da orgonomia e da orgonoterapia, trazendo o exemplo que sempre trás do uso que Reich fazia do microscópio, aumentando a magnificação da imagem às custas na nitidez mas ainda permitindo a observação do movimento.

Nesse momento uma pessoa fez uma pergunta e o que se processou na resposta é muito sintomático, para mim, de duas coisas: da necessidade de estudarmos profundamente as coisas e do quanto isso aparentemente não é feito seriamente. A pergunta foi simples: “por que ele foi expulso do Partido Comunista?”. A resposta também foi simples e direta: “Ele foi expulso do Partido Comunista porque ele publicou um livro, A Psicologia de Massa do Fascismo, pela editora dele”. Talvez a resposta não estivesse completa até esse ponto, mas como já contrastava com o que eu me recordava sobre a questão, aproveitei uma pausa na fala do Pedro para perguntar “Não foi o ‘Batalha Sexual da Juventude’?” (vale ressaltar que o título em português não é exatamente esse, foi traduzido como “Combate Sexual da Juventude” por aqui – um erro meu que o Pedro gentilmente corrigiu logo depois). Categoricamente o Pedro respondeu que não, que o livro que resultou na expulsão foi realmente o Psicologia da Massas do Fascismo; como eu não tinha plena certeza, apenas relatei a história que me lembrava, e o Pedro disse que não havia sido daquela forma, ou melhor, que o episódio havia se processado em outro contexto e não havia sido o pivô da expulsão de Reich. Como eu tinha a nítida impressão de ter lido que foi justamente o episódio todo envolvendo o livro “O Combate Sexual da Juventude” que levou ao (ou serviu de pivô para o) afastamento de Reich do Partido Comunista Alemão, fiquei incomodado novamente enquanto ouvia a gravação da aula por aqui e fui buscar referências disso. O trecho a seguir pode ser encontrado no livro “Fury on Earth – a biography of Wilhelm Reich” de Myron Sahraf; vou colocar a versão em inglês, copiada diretamente do original, e farei uma tradução livre abaixo, para manter a possibilidade de cotejamento da tradução que farei. Para quem quiser, o livro pode ser consultado em versão eletrônica no endereço http://lesatomesdelame.narod.ru/MyronSharaf_FuryOnEarth.pdf, e a página em que se encontra o trecho é 163:

All three publications were extremely popular in working-class circles. The Chalk Triangle was used by Communist discussion leaders for children’s groups. But The Sexual Struggle of Youth was to evoke a controversy so intense that it culminated in Reich’s exclusion from the Communist Party. There were intimations of the controversy in the pre-publication period. Reich wanted the Communist Party to publish the work, so he submitted the final manuscript to the committee for youth in the German Communist Party. The latter accepted it but sent it along to the central committee for youth in Moscow. The Moscow committee approved the book but felt it would be wiser if the party were not to publish it. They recommended its publication by a ‘front’ organization, a workers’ cultural association close to the party but not part of it. Reich gave this association the manuscript during the summer of 1931; by March 1932 it still had not appeared. Reich believed the organization was sabotaging publication, but exactly why was not clear to him.

Ever impatient and ever the analyst, Reich always observed resistance and hostility, or at least ambivalence, in such postponements, and he could work himself into a fury about such stumbling blocks. Finally, exasperated with the delays, convinced that publication of the pamphlet was essential to counteract the Nazis’ appeal to youth, Reich established in the summer of 1932 his own publishing house, Verlag fur Sexualpolitik. The same year it brought out The Sexual Struggle of Youth as well as When Your Child Asks You and The Chalk Triangle” [grifo meu]

Todas as três publicações eram extremamente populares nos círculos da classe trabalhadora. O Triângulo de Giz foi usado por líderes de discussão comunistas para grupos infantis. Mas o Combate Sexual da Juventude evocaria uma controvérsia tão intensa que culminou na exclusão do Reich do Partido Comunista. Houve insinuações de controvérsia já no período de pré-publicação. Reich queria que o Partido Comunista publicasse o livro, então ele apresentou o manuscrito final para o comitê para a juventude no Partido Comunista Alemão. Este último aceitou, mas enviou-o ao comitê central para a juventude em Moscou. O Comitê de Moscou aprovou o livro, mas achou que seria mais sábio se o partido não o publicasse. Eles recomendaram sua publicação por uma organização “de frente”, uma associação cultural dos trabalhadores próxima ao Partido, mas não parte dele. Reich deu a esta associação o manuscrito durante o verão de 1931; em março de 1932 ainda não havia sido publicado. Reich acreditava que a organização estava sabotando a publicação, mas exatamente por que não estava claro para ele.

Sempre impaciente e sempre analista, Reich sempre enxergou resistência e hostilidade, ou ao menos ambivalência, em tais adiamentos, e ele poderia enfurecer-se sobre tais barreiras. Finalmente, exasperado com os atrasos, convencido de que a publicação do livro era essencial para neutralizar o apelo nazista à juventude, Reich criou no verão de 1932 sua própria editora, Verlag fur Sexualpolitik. No mesmo ano trouxe à tona Combate Sexual da Juventude, bem como Quando Seu Filho Lhe Pergunta e O Triângulo de Giz” [grifo meu]

No sétimo capítulo de seu livro “People in Trouble” (Pessoas com Problemas, em tradução livre), denominado “Irracionalismo na Política e na Sociedade”, Reich apresenta do seu ponto de vista esses (e muitos outros) eventos que se relacionam com essa questão; no entanto, como seu objetivo não é criar uma linha do tempo mas sim demonstrar como as questões que busca debater estão presentes tanto entre nazistas, liberais, social democratas, socialistas e comunistas, os fatos não são apresentados linearmente e fica complicado ficar trazendo citações diversas e cortadas. Efetivamente, porém, nesse livro a impressão mais forte que temos é que foi o livro Psicologia de Massas do Fascismo o ponto central da expulsão de Reich do Partido Comunista. Mas com um pouco mais de pesquisa, podemos comparar as datas:

– O livro Der Sexuelle Kampf der Jugend (O Combate Sexual da Juventude) foi publicado, no mínimo, em dezembro de 1932 pela editora de Reich, sendo já do conhecimento do Partido os manuscritos de Reich enviados para aprovação para publicação. Podemos afirmar isso pois nessa data existe uma nota na publicação comunista Red Sport proibindo a distribuição e venda de todas as publicações de Reich, incluindo Der Sexuelle Kampf der Jugend, descrita como contrarrevolucionária (essa informação pode ser consultada no site do Fundo Wilhelm Reich para a Infância: https://www.wilhelmreichtrust.org/sexual_struggle_of_youth-2009_03_21.html);

– Reich foi expulso do Partido Comunista Alemão em 1932 (essa informação pode ser confirmada no site do Partido Socialista da Grã-Bretanha https://www.worldsocialism.org/spgb/socialist-standard/1970s/1973/no-825-may-1973/sexual-politics-wilhelm-reich/);

– O livro Die Massenpsychologie des Faschismus (A Psicologia de Massas do Fascismo) foi publicado em setembro de 1933 (essa informação pode ser confirmada em https://en.wikipedia.org/wiki/The_Mass_Psychology_of_Fascism).

Essa situação, para mim, demonstra a importância de estudarmos pois mostra como pequenos desvios de leitura e interpretação podem levar a que repliquemos e divulguemos informações incorretas, e já é bem sabido como pequenas coisas, acumuladas ao longo do tempo, podem promover grandes eventos. Uma coisa que chama a atenção nessa situação específica é o fato da coisa toda ter surgido a partir de uma pergunta; qualquer pessoa acostumada a ambientes de ensino-aprendizagem nesse formato “escola/aula” bem sabe como são raras as pessoas que se interessam ao ponto de fazer perguntas sobre o conteúdo apresentado – perguntas relevantes como essa, então, mais raras ainda. Então essa pessoa realmente se interessou em ler o material que foi passado como bibliografia e estava acompanhado atenta à aula, tanto que endereçou a pergunta em momento oportuno. Talvez esse seja um assunto que interesse a essa pessoa, e ela deseje estudar mais sobre isso; como não pretende fazer um estudo de datas, a pessoa apena confia na informação que recebeu e vai ler o livro “Psicologia de Massas do Fascismo”, buscando identificar ali os elementos que poderiam ter levado à expulsão de Reich. Como vimos, nesse caso específico é bem provável que encontre coisas assim, tendo o próprio Reich colocado essa obra no contexto. Assim, a pessoa se dará por satisfeita com sua pesquisa, talvez até escreva alguma coisa, um artigo, sobre isso. Mas esse encadeamento de enganos certamente vai deixar coisas de fora, afinal, o pivô disso tudo foi outro livro, aonde Reich levantava outras questões. Talvez essa pessoa seja de um partido comunista e queria levar essa discussão para lá, dizendo “vejam, expulsamos Reich injustamente, visto que em nada discordamos do que ele diz aqui” (isso apenas a nível de exemplo; as implicações práticas disso são profundas e longas demais para que eu arrisque qualquer opinião nesse momento). Mas o real problema não seria abordado pois, novamente, ele foi a respeito de um outro livro, aonde Reich abordava outras questões. Colocando de uma forma simplista, mas ilustrativa, poderia ser que a leitura desse livro fizesse um partido comunista se atentar para o problema do autoritarismo e buscar construir na prática o que Reich denominava “democracia do trabalho” (um regime aonde quem trabalha decide o que, como e porque), mas continuasse passando ao largo de entender a necessidade de desenvolver uma sexualidade saudável.

O grave dessa questão toda, na minha opinião de merda, é que alguém que se propõe a dar aula sobre um assunto cometa erros tão complicados como esse; de forma alguma eu estou propondo a figura do professor infalível ou da professora enciclopédica, nada disso. Mas acontece que com o Pedro coisas assim já aconteceram antes, e até de forma mais problemática do que desconhecer ou confundir datas de publicação de livros; acredito que em algum outro relato já descrevi como ele afirmou categoricamente que Reich não fala em segmentos corporais, que isso foi proposto por pessoas que vieram após ele e continuaram o desenvolvimento de suas teorias. Acontece que Reich não só descreve inequivocamente como nomeia os sete segmentos corporais (ocular, oral, cervical, torácico, diafragmático, abdominal e pélvico) justamente no capítulo XIV do livro Análise do Caráter, o capítulo que foi trabalhado nessa aula – e, talvez de pior prognóstico do que uma questão insuficientemente respondida, não houve ninguém para apresentar isso e elaborar o questionamento.

Outro motivo que encontro para sempre procurar estudar e conhecer mais, principalmente sobre aquelas coisas que gosto e das quais vou falar, é entender melhor como as coisas funcionam. Nos últimos anos, talvez cinco ou seis, venho dando prioridade nos meus estudos para ler e entender mais sobre espistemologia, me dedicar a pensar sobre como pensamos. Uma coisa que sempre aparece nesses meus estudos é o viés de confirmação, e vieses cognitivos de uma forma geral; não pretendo me alongar aqui, mas fica a recomendação de uma área muito interessante de estudos. Em resumo, viés de confirmação é a tendência que temos de procurar, interpretar, favorecer e lembrar informações que confirmem nossos pontos de vista ou crenças. Mesmo estudando (muito pouco, muito superficialmente) isso ainda me surpreendo o quanto as pessoas conseguem ir para além do que eu acreditava ser bom-senso para justificar as suas crenças e continuar acreditando no que acreditam – nessa aula, tive mais um exemplo disso que merece destaque.

Como já se tornou padrão nas aulas do Pedro, em algum momento o termo “física quântica” vai aparecer, sempre para endossar ideias como “poderíamos atravessar paredes se nosso inconsciente não nos sabotasse”, “tudo é energia, então tudo é equivalente”, “é possível materializar coisas do nada” – para o caso de alguém que nunca leu nenhum relato anterior, sim, todos esses são exemplos reais extraídos (simplificados) das aulas. E nessa aula, quando falou disso, o Pedro veio com o seguinte exemplo: “(…) e aí a Psicologia Quântica que está nascendo, né, uma coisa super moderna e tal, diz o seguinte: ‘bom, se essa energia, que é fluida, né… e existe a energia do pensamento, basta você pensar intensamente que o que você pensa acontece’ – porra nenhuma. Porque na verdade existe uma contradição do inconsciente (…) Você tem que estar inteiro, em pouquíssimos momentos da vida a gente fica inteiro para desejar uma coisa… mas eu acredito que quando a gente deseja muito uma coisa, a gente acontece. Eu me lembro uma situação na minha vida que eu tinha perdido a minha carteira de motorista, logo no início, era bem jovem… Aí fui no Detran, que não era computadorizado, era tudo ficha, arquivo, entendeu? Aí a mulher ‘mas você tem o número’, eu falei ‘não, nunca guardei’, me roubaram a carteira – não sei roubaram ou eu perdi, enfim… ‘ah, então eu não vou ter como achar. Mas você sabe o ano?’, aí eu falei ‘não, o ano eu sei’, eu tirei carteira com 19 anos, fiz o cálculo lá… ‘pois é, o arquivo está ali’,aí eu estava tão querendo ali que ‘você deixa eu tentar achar?’, ela levou um susto, acho que ninguém pediu isso na vida dela, ela ficou assim ‘é, bem, tudo bem, você pode entrar lá’, aí eu fui procurar… achei a ficha, dei pra ela, fiz uma carteira nova, e a partir daí anotei o número da carteira que eu não sou louco né? Mas nesse momento, assim, eu queria tanto aquilo, era tão importante pra mim, pensar que eu tinha que fazer outro exame, totalmente… né, porque não tendo a carteira você tem que fazer o exame tudo outra vez, o processo… hoje em dia você refaz isso, você tem que fazer de qualquer maneira, mas naquela época não, você tirava a carteira ela era válida pro resto da sua vida, não tinha essa de, de… né. Era uma trabalheira… Então naquele momento eu estava inteiro, não havia nada inconsciente que sabotasse aquilo, eu consegui uma coisa inédita, e por aí vai”. Eu efetivamente não consigo entender como essa história pode passar perto de ilustrar qualquer coisa do tipo “pensando transformamos a realidade”. Afinal, qual a chance de você achar um documento em um arquivo que guarda apenas documentos desse tipo? Enorme, não?! Seria uma história mais coerente se ele dissesse que perdeu a carteira no Brasil, anos depois viajou para a Noruega e lá encontrou com uma pessoa que havia achado a sua carteira e trazido consigo por achar a foto bonita. Mas achar uma documentação no arquivo do órgão que emite essa documentação não parece nada mais do que óbvio, do que ordinário, do que “faz sentido, mesmo sem postular energia e essas coisas”. Mas ele contou essa história convicto de que estava apresentando um argumento forte para a hipótese de que pensamento pode mudar a realidade. Se houvesse desejo e paciência da minha parte, ou de qualquer outra pessoa ali, poderia ser questionado como ele acreditava que o seu “pensamento estando inteiro” contribuiu para o evento: teria sido mudando a ordem das fichas para que ele encontrasse a sua aonde normalmente não estaria? Seria fazendo-o procurar exatamente aonde a ficha estaria? Seria alterando a mente da funcionária, que normalmente não deixaria ele procurar no arquivo? Seria alterando a rotina dias antes, para que quem organizou o arquivo colocasse a sua ficha no local aonde ele iria procurar? Enfim, existiriam várias possibilidades, e poderia ser interessante explorá-las, junto com suas consequências, para buscar entender melhor como para ele essas coisas se processam. Mas embora eu procure manter uma postura dialógica e de dúvida, buscando sempre questionar aquilo que imagino já ter como verdade, existem coisas, como essa, que forçam para além do meu limite do razoável o benefício da dúvida. Talvez em outro cenário eu tivesse maior disposição para isso, certamente em algum aonde eu percebesse que tal investimento seria produtivo e poderia levar a desconstruir essas noções que considero falsas e equivocadas; mas, infelizmente, aquele ali não se constituía como um espaço com essas características – para além do próprio Pedro trazendo um exemplo descompassado desse para dar subsídio a uma hipótese absurda, tenho a percepção de que algumas pessoas ali estavam tão certas de estar ouvindo algo extraordinário quanto ele.

Depois desse ponto houve algum debate sobre questões relativas a crenças, o que é real e o que não é, isso ou aquilo é verdade ou não, tal ou qual coisa é reducionismo ou não, e alguns exemplos muitos mais absurdos do que o anterior, acredito até que já os relatei aqui no blog. Para fechar esse debate, o Pedro trouxe uma ideia que não deixa dúvidas sobre a concepção de mundo e em relação à produção de conhecimento que ele possui: “fé, para mim, é concentração de energia, você através de um ritual você concentra energia para ter um objetivo – isso é fé. E eu como terapeuta tenho fé no trabalho. E eu sei que quando eu tenho fé ele funciona, e quando eu não tenho fé, eu fico só no questionamento, ele não funciona”. Logo após isso outra pessoa trouxe um exemplo que demonstrou, mais uma vez, que o ponto que eu busco trazer não havia sido entendido; e não estou dizendo que eu tento explicar alguma coisa e não consigo e/ou não sou entendido, mas que quando eu falo de construção do conhecimento, de falseamento de hipóteses, da dúvida enquanto método, eu ainda estou manifestando uma esperança que não desaprendi a ter de que isso tudo fosse ponto pacífico entre pessoas que passaram pelo ensino superior. Eu não sou especialista em epistemologia, dificilmente eu poderia ser considerado especialista no que quer que fosse, então não estou querendo que façamos discussões profundas sobre a natureza do conhecimento; mas acho que não deveria ser pretensão demais desejar que entender a importância da dúvida e como minimamente se produz um experimento fossem coisas amplamente compartilhadas. Certamente eu falho ao não conseguir produzir ao menos um terreno comum de debate dentro da formação, mas acredito que esses episódios evidenciam muito mais a nossa falha enquanto sociedade, afinal eu não fui professor de ninguém ali nem nunca fui professor de epistemologia, mas todas essas pessoas passaram por (ou minimamente ainda estão em) um curso superior – e estão acreditando em signos, tarot, pensamento positivo, transmissão de pensamento e sei lá mais que ideias absurdas. Isso era pra ser visto com muito mais preocupação do que eu mesmo vejo, é um problema muito sério ao qual a gente vai apenas se acostumando porque se cansa de debater, de se incomodar, de ser ignorado, reprimido e evitado…

Na parte da tarde, o Pedro fez trabalhos corporais com a turma, alegando que ninguém aguentaria duas aulas seguidas de teoria; embora eu entenda esse argumento, eu não concordo com ele, pois além de não achar que exista um impeditivo intrínseco a um dia de estudos teóricos, ainda mais se for bem planejado, já tivemos isso na prática no primeiro semestre que fiz no IFP, pois tínhamos os cursos “Introdução ao Pensamento Reichiano” e “Análise do Caráter I” no sábado e isso não parecia trazer qualquer tipo de problema. Um outro problema que encontrei nessa abordagem é que ela impede a execução do cronograma como o Pedro havia apresentado no início do curso, que seria trabalhar nas seis aulas do semestre os cinco capítulos da terceira parte do Análise do Caráter, usando as duas primeiras aulas para trabalhar o capítulo XIII, “Contato Psíquico e Corrente Vegetativa”. Além dessas questões, também achei que um trabalho prático poderia ser feito em consonância com o conteúdo do curso, não, como foi, práticas que claramente deveriam fazer parte de um curso de Vegetoterapia; um exercício que fizemos com o Pedro em outro curso seria muito mais interessante, que foi a simulação de um atendimento. Ficou muito forte para mim a impressão de que essa solução que o Pedro trouxe foi apenas uma forma simples e pouco planejada de lidar com a questão da “aula dupla”; não estou especificamente me queixando da aula em si, por mais que ela também não tenha me interessado muito, mas da forma com que ela foi encaixada no curso, desfazendo um planejamento anterior sem oferecer algo equivalente em troca.

Não há muito o que desenvolver sobre essa aula, ela foi um compilado de práticas corporais, com quatro momentos, intercalando entre atividades “individuais”, aonde formamos uma roda e o Pedro ia dando instruções e íamos seguindo, e atividade em dupla, com o clássico formato de uma pessoa fazendo a vez de terapeuta enquanto a outra faz o papel de paciente, trocando em seguida. O primeiro momento foi como uma roda de aquecimento e alongamento, com movimentos de auto massagem, alongamentos localizados, movimentos com vocalizações e técnicas de respiração. O segundo foi simples, apenas uma pessoa da dupla permanecia deitada, de barriga para cima, e a outra ficava sentada ao seu lado, ambas mantendo contato visual constante. O terceiro trabalho, segundo o Pedro, foi para trabalhar a agressividade, e consistiu em formar duas fileiras, uma de frente para a outra, e fazendo um movimento parecido com o “tchan-tchan-tchan-tchan-tchan” da coreografia da música “Segure o Tchan” (foi a melhor imagem que eu consegui, desculpem), enquanto emitia com força um som de “rá”, olhando nos olhos da pessoa que está à sua frente, e depois alternado uma posição: enquanto um lado ficava com as mãos fechadas nas costas, altura do cóccix, jogando a bunda pra frente, e a outra fazia o mesmo movimento do tchan-rá. O quarto foi o acting da medusa, que já relatei anteriormente aqui no blog, em uma aula do próprio Pedro; em duplas, com uma pessoa deitada, barriga para cima e pernas dobradas, e a outra observando, o Pedro ia passando instruções para que as pessoas deitadas fossem seguindo, a ideia é desmembrar o movimento em pequenas etapas para que as pessoas consigam ir integrando esses movimentos e chegar no objetivo: primeiro somente respirar com as mãos na barriga, fazendo uma leve pressão com as mãos pra baixo quando expirar; mover a cabeça sutilmente para trás quando expirar, voltando com ela ao inspirar; deixar as mãos ao longo do corpo, empurrando sutilmente os ombros para baixo, como se esticasse os dedos das mãos, ao expirar; ao expirar, sempre ao expirar, forçar levemente a lombar contra o chão; o último movimento, somando com os demais, é deixar as pernas caírem para a lateral, abrindo-as, e retornando com a inspiração – a ideia da somatória de movimentos, segundo Navarro, é emular o movimento de uma medusa (“água-viva”), um pulsar.