21 de dezembro de 2019 – segunda aula de Análise do Caráter III

  Como esqueci de levar o gravador para a aula, o colega de curso Lucas Bezerra fez a gentileza de gravar as aulas do sábado em seu celular, o que foi muito útil para que eu possa fazer esses relatos com maior conteúdo e, com isso, revisitar aula e densificar os estudos. Com isso, o Lucas começou a gravação com alguns minutos de aula já transcorridos, e no exato momento que a gravação inicia o Pedro está falando, mais uma vez, do seu entendimento da teoria do “biólogo quântico” Bruce Lipton; dessa vez, no entanto, ele desenvolveu uma analogia que eu achei interessante, embora não saiba ainda avaliar o quão precisa ela é: segundo ele, o corpo seria um “conglomerado anárquico de células”, que fariam assembleias e encaminhariam as decisões para o cérebro, que seria apenas um coordenador executivo, incumbido de fazer aquilo que foi determinado pelo conjunto das células. Como eu disse, não tenho informações suficientes para concordar ou discordar mais profundamente dessa teoria, mas ao menos ela me parece coerente e possível, muito mais razoável do que certos posicionamentos que vem desse campo que tendem a ignorar a importância do cérebro e diluí-la em todo o corpo, como se tudo fosse equivalente. Me parece que essa teoria ainda poderia se coadunar com as descobertas e estudos mais recentes nas áreas de neurologia e neurofisiologia, o que é bem interessante – um campo profícuo a ser estudado (faço um grifo aqui pois, como já ressaltei em vários outros relatos, me parece que no campo reichiano falta esse cuidado com os estudos, apenas se afirmam teorias porque parecem mais ou menos coerentes com a obra reichiana e assim vai se criando um corpo de pensamento em cima de achismos e não de estudos com base no método científico).

  Ainda nos desdobramentos desse assunto, o Pedro trouxe a questão das células-tronco para mostrar como a vida possui elementos que trabalham a partir das relações que estabelecem e não a partir de funções determinadas em uma origem, e aí nos intercalamos em quatro exemplos que eu acho muito interessantes de deixar registrados aqui. Primeiro, falei do exemplo que Fritjof Capra trás em sue livro Teia da Vida sobre um experimento feito em laboratório com embriões de ouriço-do-mar (talvez seja outra espécie, não me lembro ao certo), aonde em determinados estágios de desenvolvimento metade das células do embrião eram destruídas; a hipótese era que, continuado o desenvolvimento, o organismo resultante seria incompleto, faltando-lhe alguma parte que se desenvolveria a partir das células que foram destruídas, mas o que aconteceu é que um organismo completo e funcional continuava a ser gerado, só que menor – ou seja, as células-tronco originais se especializavam de acordo com as relações estabelecidas entre si para gerar um organismo completo, mas o número faltante de células acabava por resultar em um organismo menor. O Pedro, então, trouxe um exemplo de um livro do Oliver Sacks, de um pessoa que teve metade do cérebro extraído em uma cirurgia; como a neurofisiologia aponta que certas funções são desenvolvidas em um hemisfério cerebral e outros são desenvolvidas no outro hemisfério, a hipótese lógica é que essa pessoa perdesse essas funções – o que não se processou na prática, pois a pessoa continuou exibindo capacidades atribuídas ao hemisfério cerebral que foi removido na cirurgia. Com isso eu me lembrei do caso da menina que sobreviveu à doença Raiva, que caso não tratada logo é fatal; ela chegou ao hospital com um quadro avançado da doença, um estado a partir do qual ninguém havia sobrevivido, e um médico pediu a permissão da família para tentar uma abordagem não testada até então, que foi colocar a menina em coma induzido para diminuir a sua atividade corporal e encher o cérebro dela de antibióticos; o resultado foi que a doença foi completamente eliminada do sistema dela, mas os danos que já haviam sido provocados foram muito extensos, e ela acordou sem saber nem mesmo andar ou falar; mas, com o tempo, foi exercitando essas funções e foi recuperando todas elas, possuindo inclusive um canal no YouTube aonde gravou vídeos falando sobre o seu caso, tendo sido a primeira sobrevivente de um caso de Raiva que se tem registro. O Pedro trouxe, por fim, o caso de Phineas Gage, funcionário de uma ferrovia em construção que em um acidente teve o seu crânio atravessado por uma barra de metal que destruiu a maior parte do seu lobo frontal esquerdo; mesmo esse dano maciço não provocou nenhuma alteração perceptível nas capacidades cognitivas de Gage, mas alterou profundamente a sua personalidade nos 12 anos que ainda viveu, a ponto de amigos próximos dizerem que ele não era mais a mesma pessoa. Acho que são quatro exemplos muito interessante de temas que atravessam os estudos de qualquer pessoa que se dedique à obra e ao pensamento de Wilhelm Reich e, para além disso, acredito que configuram temas e eventos curiosos mesmo para o público em geral. Coisas que, mais uma vez, merecem atenção e estudos comprometidos com a construção coerente e consequente do conhecimento.

  Como nessa e na aula anterior trabalhamos o capítulo XIII do livro Análise do Caráter, só por uma questão de registro e contextualização, gostaria de deixar aqui os itens desse capítulo; por achar muito interessante o texto que Reich escreve como prefácio desse capítulo, gostaria de deixá-lo registrado aqui também:

XIII – Contato psíquico e corrente vegetativa

  Prefácio

  1. Outras referências ao conflito entre pulsão e mundo externo

  2. Alguns pressupostos técnicos

  3. A mudança de função da pulsão

  4. O intelecto como função defensiva

  5. O entrelaçamento das defesas pulsionais

  6. Falta de contato

  7. Contato substituto

  8. A representação psíquica do orgânico

    a) A ideia de “estourar”

    b) Sobre a ideia de morte

  9. Prazer, angústia, raiva e couraça muscular

  10. Os dois grandes saltos na evolução

Prefácio

  Este trabalho é uma elaboração formal da palestra que fiz no XIII Congresso Psicanalítico Internacional, em Lucerna, em agosto de 1934. É uma continuação da discussão do difícil material clínico e caracteroanalítico e dos problemas que examinei detalhadamente na parte I do presente livro. Acima de tudo, é uma tentativa de abranger dois grupos de fatos que não foram tratados na parte I: 1) a falta de contato psíquico e o mecanismo psíquico que tenta compensá-la, estabelecendo contatos substitutos; 2) a unidade antitética das manifestações psíquicas e vegetativas da vida afetiva. Esta última é uma continuação direta do meu trabalho “Urgegensatz des vegetativen Lebens” (Contraste Original da Vida Vegetativa), publicado no Zeitschrift für politische Psychologie und Sexualökonomie, 1934.

  Mais uma vez, embora clinicamente bem-fundamentado, constituiu apenas um pequeno avanço, partindo do que já é conhecido e estabelecido para caminhar em direção aos obscuros e difíceis problemas da relação entre o psíquico e o somático. A aplicação da minha técnica de análise do caráter permitirá a todos verificar essas descobertas, logo que tenham dominado as dificuldades técnicas iniciais.

  Evitou-se intencionalmente a discussão das opiniões expostas por outros autores sobre o problema da “totalidade” e da homogeneidade das funções psíquicas e somáticas. A economia sexual aborda o problema a partir de um fenômeno comumente negligenciado, o orgasmo, e aplica conscientemente os métodos do funcionalismo. Por essa razão, seria prematura uma discussão crítica, porque ela pressuporia que meu ponto de vista é conclusivo, como também que outros autores já tivessem tomado uma posição acerca do problema do orgasmo. Nada disso é verdade.

  Havia boas razões para se manter a refutação clínica da teoria de Freud sobre a pulsão de morte. A análise profunda do chamado “empenho pelo nirvana” foi especialmente valiosa para fortalecer minha opinião de que a hipótese da pulsão de morte era uma tentativa de explicar fatos que ainda não podiam ser explicadas e, mais do que isso, tentava fazê-lo de maneira equivocada.

  Para os psicanalistas de orientação funcional, os jovens economistas sexuais e os analistas do caráter, talvez esse ensaio seja mais adequado do que os anteriores, no sentido de lhes dar um esclarecimento teórico e um auxílio prático na aplicação da técnica de análise do caráter. A concepção e a técnica caracteroanalíticas de lidar com distúrbios psíquicos receberam nova impulso com a descoberta da falta de contato psíquico e do medo de estabelecer contato. Pode bem acontecer que as ideias expostas neste ensaio em breve se mostrem incompletas, talvez até incorretas em alguns pontos. Isto serviria para demonstrar que só pela prática ativa podemos nos manter em dia com o desenvolvimento de uma nova ideia. Aqueles que procuram, com seriedade, aprender a técnica de análise do caráter não terão dificuldade em reconhecer em seu trabalho clínico – e fazer uso integral delas –, as relações entre o modo de contato psíquico e a excitabilidade vegetativa, descritas aqui pela primeira vez. Essas relações podem não só ajudar a desenredar nosso trabalho psicoterapêutico da atmosfera mística da psicoterapia atual, como também, em condições favoráveis, garantir sucessos de outro modo inatingíveis. Ao mesmo tempo, devo advertir o analista quanto ao entusiasmo exagerado em suas expectativas terapêuticas. Já não pode haver quaisquer dúvidas sobre a superioridade da análise do caráter. Mas são precisamente as fases finais do tratamento caracteroanalítico, em especial a reativação da angústia do contato orgástico e sua superação, que permanecem ainda muito pouco compreendidas e, portanto, insuficientemente dominadas. A teoria do orgasmo e muito malcompreendida, mesmo por aqueles que a adotam. Ainda há muita ignorância no que diz respeito à espontaneidade desinibida da entrega orgástica, que, em geral, é confundida com a excitação pré-orgástica. Não obstante, é certo que, sem haver segurança na questão do orgasmo, só por acaso se concluirá com sucesso o tratamento analítico do caráter.

  A conferência em que se baseia este ensaio encerrou minha ligação com a Associação Psicanalítica Internacional. Seus líderes já não queriam se identificar com meus pontos de vista.

Fevereiro de 1935