11 de maio de 2019 – primeira aula de Análise do Caráter II

Iniciamos essa aula com o professor distribuindo um texto (pelo que entendi de sua autoria), com um resumo sobre dois tipos de caráter, o Histérico e o Fálico-Narcisista; para cada um desses caracteres, haviam quatro subitens: características psicorporais; etiologia; dinâmica interna; projeto terapêutico. O professor informou que a ideia da aula é irmos lendo o texto e, a partir dessa leitura, trazer questões, levantar pontos e pedir esclarecimentos. Depois disso ele fez o que chamou de “pequena introdução”, relembrando coisas da primeira parte do Análise do Caráter, que supostamente estudamos em Análise do Caráter I. É nessa parte do livro, segundo o professor, que Reich vai trazer alguns conceitos sobre como se forma um caráter, sobre as resistências e as defesas; na disciplina Análise do Caráter II, que coincide com a segunda parte do livro, vamos estudar os tipos de caráter da tipologia reichiana, ou seja, como Reich observa os vários tipos de caráter que podem vir a existir e caracteriza, sob o ponto de vista da manifestação, da dinâmica, da etiologia, esses caráteres, não de uma forma didática mas, ainda assim, de uma forma compreensível do modo do Reich operar sobre esses caráteres e o modo como ele vê cada caráter. Assim, a nível de bibliografia a base será a parte II do “Análise do Caráter”, “O Corpo em Terapia” de Alexander Lowen e “Labirinto Humano” de Elsworth Baker.

Depois dessa apresentação, o professor continuou com a ideia de explorarmos a pergunta “como se forma um caráter” que, segundo ele, teria sido trabalhada conosco em Análise do Caráter I; para isso, ele lançou a pergunta “o que é um caráter”. Depois de uma contribuição de uma pessoa, o professor fez, aproximadamente, o seguinte resumo: “Reich era psicanalista, então ele seguia inicialmente a associação livre de ideias, método clássico analítico, que é partir do pressuposto de que o sujeito deitado no divã (o setting terapêutico clássico, ortodoxo) teria mais condições de, num sentido regressivo, que favorecesse à regressão, com o terapeuta fora do campo visual do paciente, ele conseguiria associar ideias que deveriam vir ‘no fluxo’, ou seja, com o mínimo de interferência possível, ou seja, ele deveria apenas falar, comunicar, o que lhe viesse; isso seria a regra básica, e o Reich como todo psicanalista começou fazendo isso. Mas ele se deparou com a dificuldade de que alguns pacientes resistiam a esse processo, ou se defendiam (pra usar um conceito próximo), e essas defesas se manifestavam através de gestos próprios, características próprias… Então o Reich começou a entender que era importante não só perceber, ouvir, compreender o que o paciente dizia, mas como dizia – como. Esse como, um jeito próprio de cada um, é o caráter. Ou seja, o caráter é uma grande Defesa (com ‘D’ maiúsculo), composto de uma configuração de defesas, de pequenas defesas formando uma grande defesa. E, de um modo geral, há uma defesa que aparece mais, que é mais bloqueadora do fluxo de ideias e que é mais visível; essa defesa mais visível, mais central, o Reich chama de ‘defesa principal’ – a essa defesa a gente tem que estar atento. Isso é o conceito, e como surgiu, a ideia de caráter e o trabalho com caráter. O Freud inicialmente, quando o Reich compila isso num livro (que se tornou o Análise do Caráter), quando olha pro texto, ele não fica muito contente, porque ele já entende que aquilo era uma fissura do método mais tradicional de associação livre de ideias”.

Após passarmos por essa definição do conceito de caráter e de uma contextualização histórica, passamos à exploração da tipologia caracterológica reichiana, e achei muito interessante a forma como o professor escolheu entrar nesse assunto: fazendo uma ressalva. Ele disse algo como “a primeira coisa que a gente tem que dizer, antes de entrar propriamente nos tipos, é que a tipologia reichiana não é uma tipologia fechada. Tem uma frase lapidar do Reich: ‘há tantos tipos de caráter quanto as sociedades puderem produzir’. Isso todo reichiano tem que entender”. Eu achei isso muito importante pois parece exatamente o oposto do que a maioria das pessoas faz, ao menos na experiência que pude ter até agora na formação; há uma pressa de encaixar qualquer caso em um caráter, como se isso fosse a ferramenta analítica por definição, e não só isso, mas como esses encaixes são feitos apenas nos caráteres explicitamente definidos por Reich, e ainda aqueles que mais se aproximam de uma linguagem pretensamente técnica – assim, vejo muitas falas sobre caráter histérico, caráter fálico, caráter obsessivo, mas não vi nunca ninguém falando de um caráter aristocrático (um dos estudos que Reich trás no Análise do Caráter ele nomeia como “caráter Aristocrático”).

Colocada essa ressalva houveram algumas perguntas e intervenções e assim foi-se desenvolvendo um diálogo sobre várias ideias em relação à formação do caráter, suas relações com o contexto social, o momento inicial e final do desenvolvimento do caráter etc. Uma coisa que acho interessante registrar, pois me interessa particularmente por conta de outras leituras que já fiz, foi uma pergunta feita por uma pessoa sobre a possibilidade de haver uma mudança de caráter; essa pessoa, ao fazer essa pergunta, marcou que essa dúvida surgiu entre a turma, e não sei se houve um novo diálogo sobre isso recentemente, mas é fato que esse tema já foi discutido entre nós mais de uma vez, seja em momentos de aula ou nos intervalos para o café. A resposta do professor a esse questionamento foi sendo construída entre falas dele e novas contribuições da turma, algumas vezes aprofundando a discussão, outras desviando-a um pouco, mas, de forma geral, foi uma contribuição interessante para esse ponto – tentarei, então, reproduzir aqui algumas das falas e conclusões que apareceram durante esse diálogo. O professor começou a sua resposta aproximadamente da seguinte forma: “A gente pode dizer assim que o caráter… existe o caráter neurótico ou pré-genital e o caráter genital – o caráter genial como caráter aspas saudável, aquele que tem capacidade de envolvimento, de compromisso, de aprofundamento, nas diversas relações. Então assim, quando você tem um caráter pré-genital, seja obsessivo, histérico, fálico-narcisista, seja o que for (pois os mecanismos estão ancorados basicamente nessas condições), quando você começa a ir na direção da genitalidade, você tem uma transformação do caráter. Mas eu não sei se você pode deixar, porque isso fica um pouco em aberto (por isso a discussão de vocês)… porque o caráter genital ninguém é, vamos primeiro colocar isso, o genital é um norte, inalcançável, ninguém é genital – essa é a primeira coisa. Mas existem pessoas mais genitais do que outras. A ideia é que no processo terapêutico você vá ficando mais próximo da genitalidade. Então, por exemplo, um obsessivo, típico, cujo um dos mecanismos de estruturação é a separação da ideia e do afeto, ele tem uma dificuldade de sentir, mas que no processo terapêutico começa a sentir, e depois começa a se comover, mas a atitude geral ainda é por vezes obsessiva, ele se preocupa demais com detalhes etc etc etc, só que agora ele já se comove com o outro, então a gente está falando de uma pessoa que foi na direção da genitalidade, está mais próxima da genitalidade”. Depois dessa fala dele houve uma intervenção que levou para um outro lado, de discussão da relação entre esquizoidia e esquizofrenia, o professor endereçou essa questão rapidamente e buscou voltar ao foco da discussão anterior: “ao menos da forma como eu entendo isso, é que você não tem uma mudança completa do caráter; mas o que você tem é um avanço muito grande na direção da genitalidade. Então, por isso, o caráter se transforma, não porque ele possa ser nomeado de outra forma mas porque ele claramente vai lidar de outro jeito”. Disso seguiu uma descrição e recomendação com filme “Melhor Impossível”, onde o ator Jack Nicholson interpreta um obsessivo caricato e, com o desenrolar da história, esse seu traço de caráter vai se alterando; como o próprio professor costuma nos apontar da importância de certas palavras no discurso dos pacientes, me chamou a atenção que, ao descrever o final do filme, ele usou a palavra “saltitante”, termo que ele mesmo costuma usar para descrever o comportamento do caráter histérico. Após essa conversa sobre o filme, a pessoa que iniciou o assunto sentiu necessidade de endereçar mais enfaticamente a sua questão, dizendo algo como: “A questão não era essa do pré-genital e genital. Era, dentro do pré-genital, se você poderia mudar, digo, um obsessivo se tornar histérico ou fálico”. A isso, até de forma interruptiva, o professor respondeu “Sim, se torna mais fálico (…) Você vai deixando de estar ancorado no ocular, no anal… o obsessivo está marcadamente anal, retentivo e sádico, muitas vezes. O esquizóide, e num nível mais profundo o esquizofrênico, ele tem uma questão ocular. (…) Você volta ao padrão mas nunca volta do mesmo jeito; alguém que não olhava começa a olhar, alguém que não abria o peito começa a abrir o peito”.

Após essa discussão sobre o tema da mudança de caráter, entramos propriamente no texto que o professor trouxe, tendo ele feito a ressalva de que iríamos fazendo uma leitura coletiva e parando nos pontos desejados para fazer observações, trazer dúvidas, questionamentos ou reflexões. Após a leitura da primeira frase do texto, ele sentiu necessidade de fazer outra ressalva, que acho muito importante e, paradoxalmente, muito ignorada: “qual o grande perigo dessa tipologia ou de qualquer tipologia? È você tomá-las como etiquetas e ficar preso a isso – isso é uma merda! Então a gente tem que entender isso muito mais como uma dinâmica que ajuda a gente a compreender o paciente da gente, é mais por aí…”. Ficamos mais da metade da aula nesse ponto de leitura e discussão do texto, então acho interessante reproduzí-lo abaixo.

Histérico

Características Psicorporais

Possui um erotismo genital infantil. É um tipo de caráter mais simples e transparente. Apresenta uma atitude sexual inoportuna, agilidade física (com um toque sexual visível), coquetismo (procura despertar a admiração de outrem, cuida exageradamente da aparência). É notória a excitação sem satisfação, a angústia se torna hiperatividade (movimentos saltitantes), timidez e ansiedade. Nos homens, há delicadeza e cortesia excessivas, expressão facial e comportamento feminino. São alguns traços histéricos, geralmente, ocultos: instabilidade emocional, sugestionabilidade, reações de desapontamento, apego sexual de natureza infantil, conversão histérica. A mulher é lânguida, sedutora, geralmente simpática, procura caminhos sinuosos para conseguir o que quer. É escorregadia. É bastante comum a dificuldade de contato ocular. O tipo histérico é distraído, tem pouco foco e alcança pouca profundidade no que faz. Sublima pouco e tem rasa realização intelectual. É nervoso e irrequieto.

Etiologia

Fixação na fase genital infantil com ligações incestuosas. As ideias de incesto são recalcadas. A histérica, inconscientemente, não aceita ter “perdido” o pai para a mãe. Idealiza o pai e o procura, inconscientemente, em cada homem. Está, portanto, presa à fase genital infantil e, por isso, não consegue se entregar profundamente aos homens. Estes nunca são tão “bons” quanto o seu pai idealizado.

Dinâmica Interna

O caráter histérico “genitaliza” tudo, por exemplo, a boca e o ânus representam o órgão genital. A angústia genital (fixação genital infantil) atua como inibição da função genital. O histérico sofre de perturbação genital, ou seja, estase de libido genital não-absorvida. A couraça é uma defesa egóica contra os empenhos incestuosos genitais. Impulsos genitais fortes não-satisfeitos (inibidos pela angústia genital) estão à mercê dos perigos, que correspondem aos medos infantis. Na aproximação de alguém que queria partido da sedução histérica, as manifestações sexuais são substituídas por sintomas como a angústia ou por defesas do tipo esquiva e fuga. Em um tipo histérico com conversão oral, por exemplo, no ato de vomitar histericamente, há um “deslocamento para cima” da energia e isto demonstra que a zona oral adquiriu significado genital.

Projeto Terapêutico

Na transferência terapêutica o histérico não reconhece suas manifestações sexuais. Estas não são genuínas, mas estão a serviço da defesa. Quando a defesa é desmontada e a angústia genital infantil é elaborada, então surge o real empenho objetal genital.

Fálico-narcisista

Características Psicorporais

Possui erotismo fálico. É excessivamente orgulhoso e autoconfiante. Pode ser arrogante, flexível, enérgico. É, geralmente, atlético. Possui funções bem masculinas, mas podem apresentar feições femininas (cara de bebê). É friamente reservado ou desdenhosamente agressivo, irritado, narcísico, com características sádicas, mais ou menos, disfarçadas. É agressivo, provocador. Tendem a alcançar posições de liderança na vida. Seu narcisismo não se expressa de maneira infantil e sim com ostensiva manifestação de superioridade, apesar de sua base não ser menos infantil do que a de outros tipos. Em que pese seu narcisismo, podem estabelecer vínculos fortes com pessoas e coisas do mundo. Suas ações são muitas vezes influenciadas por motivos irracionais. A coragem agressiva e a combatividade são defensivas e não genuínas como no caráter genital. Apresenta potência eretiva e não orgástica. Menosprezo para com o sexo feminino. Devido à aparência são considerados objetos sexuais desejáveis. Este caráter também pode ser encontrado nas mulheres. Nestas, as formas neuróticas caracterizam-se por homossexualidade e excitabilidade clitoriana. As formas mais saudáveis se caracterizam por enorme autoconfiança, que se baseia no vigor físico e na beleza. Este caráter pode estar relacionado às formas homossexuais masculina ou feminina, quebra da moralidade, paranoia, formas correlatas de esquizofrenia, de eritrofobia (sentimento neurótico de vergonha ou rubor), perversão sádica nos homens e, com frequência, mulheres muito produtivas se enquadram neste tipo.

Etiologia

A fixação oral-sádica acabou de ser abandonada, mas o indivíduo ainda não atingiu a fase genital infantil, assim há o governo da fase fálica (autoconfiança e orgulho excessivos). Nos homens, o pênis é instrumento de agressão às mulheres (vingança inconsciente contra as mulheres). Enquanto menino foi profundamente frustrado pela mãe. A mãe pode ter sido muito rigorosa e o pai ausente. Assim, o menino se identifica com a mãe (mãe fálica) e muda seu interesse amoroso para o pai (isto pode, por exemplo, ocorrer na homossexualidade masculina ativa). Em relação à mãe passa a ter atitudes narcísicas e de vingança. Estes homens procuram provar às mulheres como são potentes. Em mulheres fálico-narcisistas, a vingança genital (fálica) contra os homens, isto é a castração, é percebida durante o ato sexual com a tentativa de parecer que o homem é impotente. Também, nas mulheres, é comum incapacidade poligâmica de se vincular ao parceiro, indução ativa de decepções, fuga passiva da possibilidade de ser abandonada.

Dinâmica Interna

Os homens enfrentam qualquer ataque iminente com um ataque próprio. Se sua vaidade é ofendida, reagem com frio desdém, acentuado mau humor ou agressão direta. Há uma identificação entre o ego e o falo. No caso das mulheres fálico-narcisistas existe uma forte fantasia de ter um pênis. O ego é orgulhoso. Em mulheres, na eritrofobia, o impulso de ter um pênis é recalcado e irrompe na forma de um intenso sentimento de vergonha e rubor. Nos homens, diante da frustração genital, o caráter fálico-narcisista, exagera as manifestações da fase fálica e o faz como forma de se defender da possibilidade de regressão à fase anal-passiva. As tendências anais e passivas são encobertas pelo sadismo e pelo exibicionismo fálicos. O caráter fálico-narcisista evita suas tendências anais e passivas (homossexuais) com agressão fálica.

Projeto Terapêutico

No tratamento deste tipo de caráter percebe-se que a fase fálica foi alcançada inteiramente, a agressão está “livre” e, assim, é mais fácil estabelecer nele a potência genital do que em outras formas de caráter. A análise será promissora se o analista desmascarar as atitudes fálico-narcisistas como formas de evitar os impulsos anal-passivos, chegar a trabalhar a frustração e a identificação com a mãe fálica (a mãe é fantasiada como tendo um pênis e o indivíduo sente-se frustrado pela mãe, em sua masturbação) e, finalmente, eliminar a atitude inconsciente de vingança para com o sexo oposto. Se isto não ocorrer, o paciente permanecerá narcisicamente inacessível. Sua resistência de caráter consiste na depreciação agressiva do tratamento e do analista de um modo mais ou menos disfarçado, na usurpação narcísica do trabalho de interpretação, na rejeição e evitação de qualquer impulso passivo e angustiante e na evitação da transferência positiva.