16 de fevereiro de 2019 – terceira e quarta aulas de Introdução ao Pensamento Reichiano

Antes do início propriamente dito da aula o professor falou da importância de fazer uma contextualização histórica do pensamento reichiano para que possamos entender algumas questões que se colocam hoje, e trouxe o exemplo da homossexualidade: para Reich a potência orgástica plena não poderia ser alcançada em uma relação homossexual, entendendo a homossexualidade como um desvio da energia sexual; apesar disso, no campo político sempre lutou para que não houvesse repressão à homossexualidade. Segundo esse professor, os coordenadores do IFP não concordam com essa posição, dizendo inclusive que há algum diálogo para a criação de um seminário ou alguma coisa nesse sentido sobre esse assunto. Parece que existe alguma controvérsia sobre Reich ter repensado essa questão da homossexualidade no final da sua vida ou não. Para o professor, o problema é que colocar que a potência orgástica plena só pode ser atingida em uma relação heterossexual limita a uma questão anatômica e não engloba a questão energética; segundo ele “pode haver, entre duas pessoas do mesmo sexo, uma carga energética, uma descarga energética a nível de você estar… bem no seu fluxo energético”.

Falou também dos livros “Psicologia de Massas do Fascismo” e “Escuta, Zé Ninguém”, que são muito importantes para a compreensão do momento atual em nosso país. Também disse ser importante a compreensão do conceito de “peste emocional” que Reich apresenta na parte III do livro Análise do Caráter: “pessoas de alta carga, que não conseguiram uma fruição boa e ficam dando muita importância ao que o outro está vivendo – inclusive atrapalhando a vida do outro”.

Ao iniciar a aula ele trouxe os conceitos de “falta de contato” e “contato substituto”, afirmando que são fundamentais para a compreensão da transição da análise do caráter (trabalho verbal) para a vegetoterapia (trabalho corporal). Embora Reich tenha trabalhado como psicanalista por 14 anos (e ocupou cargos importantes dentro do escopo da sociedade psicanalítica), ele foi expulso da psicanálise; os motivos apresentados não necessariamente condizem com a análise histórica que se faz do caso. Reich publica um artigo sobre masoquismo (que consta como um capítulo do livro Análise do Caráter) discordando da postulação de Freud, para quem o masoquismo era primário, o indivíduo nascia com uma pulsão de morte e como consequência dessa pulsão de morte existiria o masoquismo; Reich acreditava que o masoquismo era uma dinâmica de caráter que se construía na vida do indivíduo (não algo com o qual se nasce) podendo, por isso, ser desfeito e tratado clinicamente (na postulação de Freud, sendo inato, o máximo que se poderia fazer seria administrar esse masoquismo). O artigo de Reich, de viés clínico e questiona diretamente a hipótese de Freud (embora Reich não fosse o único a discordar da ideia de pulsão de morte e o próprio Freud apresentá-la como uma hipótese); sendo editor da Revista Internacional de Psicanálise, Freud deseja impedir a publicação desse artigo, mas acaba convencido por seus pares a permitir essa publicação desde que na mesma edição seja publicado o texto “A Discussão Comunista da Psicanálise”, de Siegfried Bernfeld, que faz críticas ao artigo de Reich acusando-o de comunista e desqualificando-o a partir dessa chave, sem no entanto entrar na discussão sobre a questão do masoquismo. Fato curioso que descobri estudando posteriormente é que o mesmo Siegfried Bernfeld é apontado como um dos criadores do Freudo-Marxismo, uma teoria que busca sintetizar de maneira coerente as teorias de Karl Marx e de Sigmund Freud.

Segundo o professor, essa transição da análise do caráter para a vegetoterapia começa a se processar através da importância do “como” para Reich, então o corpo começa a entrar em cena na clínica: se o paciente balança as pernas, se aperta as mãos, o tom da voz e outras tantas informações. A partir dessas observações Reich começa a elaborar a ideia de contato, por perceber que nessas “formas de estar no mundo” haviam pacientes que “não estavam”, ou seja, o seu jeito era caracterizado por uma ausência, havia um “muro relacional” entre ele e o paciente. Então Reich desenvolve o conceito de contato que vai além da ideia de perceber o externo mas também relaciona-se com o que se sente através daquela percepção; o conceito de contato então estabelece uma relação dual: o que você está percebendo externamente e como isso te afeta internamente.

Achei interessante que em um momento da aula o professor falou sobre a questão de que hoje se tem mil amigos nas redes sociais mas, de fato, não se tem amigo nenhum; ele fez questão de acrescentar que “isso não é uma crítica; toda neurose é uma tentativa de sobrevivência”. Numa análise superficial parece que, efetivamente, isso absolve o uso das redes sociais; mas, na verdade, acho que entender essa relação nos alerta ainda mais sobre a nocividade do uso dessas redes. Primeiro, por mais que seja simples, é importante entender essa questão da neurose como tentativa de sobrevivência; para usar um exemplo simples (porém que perde em precisão), imagine que algo terrível acontece com uma pessoa, algo tão ruim que a mente dela não consegue mesmo dar conta daquela informação (quem já leu os contos de Lovecraft deve entender bem essa ideia) – para que possa continuar sobrevivendo, essa mente, então, recalca essa memória, ou seja, coloca ela em algum lugar longe do consciente, de forma que não tenha que lidar com isso. Parece uma boa solução, afinal ela tem funcionado no mínimo por alguns milênios, não é mesmo? Na verdade não, pois o fato efetivamente aconteceu e a memória não desapareceu; por mais longe do consciente que ela possa estar, a mente não é construída de bloquinhos independentes, então essa memória vai continuar agindo e se relacionando com essa mente/pessoa – talvez isso nunca apareça para ela de forma clara e nunca atrapalhe a sua vida, ou talvez surja em algum momento inoportuno e cause mais estragos. Um bom exemplo disso é o primeiro episódio da série “Go On”, onde o personagem principal acredita que está tudo bem com ele após o falecimento da sua esposa, mas inesperadamente algo acontece e ele percebe que a realidade é outra. Acredito que algo semelhante se passa com a nossa relação atual com as redes sociais; os problemas advindos do uso que fazemos delas são cada vez mais bem conhecidos e divulgados, mas várias instâncias (internas e externas) atuam para que continuemos e aprofundemos esse uso – quando o problema efetivamente acontecer, não só vamos ter deixado ele crescer demais como não vamos ter nos preparado nem um pouco para isso. Essa coisa de “amigos” mesmo vem me chamando a atenção há muito tempo; o personagem-narrador sem nome do livro Ismael (em outro livro do autor, Daniel Quinn, conhecemos seu nome, mas não em Ismael) diz a seguinte frase “Meras camaradagens me deixam insatisfeito, e pouca gente está disposta a aceitar o peso e o risco da amizade como a concebo”, e ela sempre fez bastante sentido pra mim, sempre gostei de aprofundar as relações – não opunha quantidade a qualidade porque não me pareciam coisas mutuamente excludentes. Mas, na sociedade em que vivemos, são; não acho, hoje, possível manter mais do que cinco ou seis amizades com contato regular, ou seja, dedicando algum tempo por mês para a manutenção desses laços. Nós evoluímos em comunidades, em grupos, então estar em contato durante muito tempo significou aprofundar; de alguns poucos séculos pra cá é que fomos desfazendo essa relação e criando a possibilidade de ter contatos absolutamente rasos com um número muito grande de pessoas (obviamente não “contato” no sentido que Reich atribui ao conceito) – talvez seja desnecessário dizer, mas as redes sociais ampliaram isso exponencialmente. Assim, as pessoas dizem “eu tenho mil amigos” e, de alguma forma, realmente acreditam nisso. O “medo de ficar de fora” (mais conhecido pela sigla FOMO, fear of missing out, em inglês) nos empurra para essas relações vazias, e vamos cada vez mais entrando nessas armadilhas das quais não conseguimos sair depois. Lembro que quando o uso do facebook começou a crescer por aqui eu falava com as pessoas sobre como estava se tornando uma regra que as coisas só fossem divulgadas por lá, e sempre me respondiam que era mais uma forma de divulgação; hoje para muitas coisas é a única forma, e quem não está na rede não sabe das coisas (na verdade mesmo quem está não sabe). Acredito que o mesmo está acontecendo com as amizades: antes, era uma forma de manter contato com as pessoas, ajudava a achar aquela pessoa que estudou com você há trocentos anos e coisas assim; hoje, no entanto, cada vez mais as pessoas só sabem se relacionar pelo facebook e, quando se encontram pessoalmente, a relação segue o modelo das redes sociais – o importante é a novidade, que tudo seja veloz, que nada seja entediante e que mude o tempo todo. Estamos vivendo numa mistura grotesca de “Admirável Mundo Novo” com “1984”.

Acredito que já desenvolvi demais sobre esse ponto do contato, que foi mesmo o principal conceito trabalhado nessa aula. Como foi uma aula dupla, na parte da tarde o professor optou por fazer um exercício prático, simulando o primeiro atendimento, onde uma pessoa faria o papel de terapeuta e a outra de paciente; no final ele ainda demonstrou dois tipos de exercício corporal, e foi interessante poder ver algumas coisas na prática. Queria desenvolver um pouco mais sobre como foi a minha experiência nesse exercício prático para fechar o relato dessa aula.

Quando o professor propôs esse exercício ficou uma dificuldade para que as pessoas se voluntariassem para fazê-lo, parece que ninguém estava exatamente à vontade em fazer; o que achei curioso foi perceber que as pessoas, quando se voluntariavam, preferiam assumir o papel de paciente do que o de terapeuta – o meu desejo ia no outro sentido, de fazer o papel de terapeuta. Assim, acredito que na terceira dupla, fui e me coloquei nesse papel.

Dá uma ansiedade, um certo nervoso, estar nessa posição: no meu caso, além da “platéia” (algo que todas as pessoas comentaram) havia o fato de ser a primeira vez que ocupava um lugar desse, mesmo que num exercício simulado – nunca nem fiz terapia. A pessoa que fez o exercício comigo não informou se traria questões pessoais ou estaria interpretando uma personagem, e isso para mim era mais um motivo de apreensão, pela necessidade de tomar cuidado com a condução das coisas – é muito comum em momentos como esse das aulas as pessoas dizerem coisas como “não tenho nada a esconder” (direta ou indiretamente). Talvez seja um excesso de cinismo da minha parte, mas não consigo sentir essas coisas como absolutamente sinceras, pois me parece um tanto psicótico isso de “não tenho nada a esconder de ninguém” – se fosse uma turma apenas de pessoas conhecidas, talvez eu não tivesse essa impressão. Mas, enfim, trago isso para marcar que eu me preocupo com o que as pessoas vão trazer nos exercícios; às vezes as coisas emergem daquela relação e não necessariamente a pessoa precisa estar à vontade de compartilhar com todo o grupo.

Fizemos a encenação da entrada do paciente, o convidei a se sentar e iniciei com o protocolo sugerido pelo professor a todas: “Olá, nós nos falamos ao telefone, não foi? Qual o seu nome mesmo?” e disso seguimos um pequeno diálogo, onde eu fui perguntando sobre os motivos que traziam aquela pessoa à terapia. Duas coisas ficavam muito presentes em minha cabeça em meio à torrente de coisas que iam passando: a) eu deveria ter o cuidado que Reich sempre enfatiza de não interpretar nada antes da análise e dissolução das resistência; obviamente eu sabia que isso não se daria/dá em uma sessão, menos ainda na primeira, mas eu buscava estar consciente de que frases como “você não acha que isso…” não deveriam nem passar pela minha cabeça e b) uma frase que outro professor já disse mais de uma vez em suas aulas: “o âmago da clínica é o que o paciente experiencia”. Assim, quando a pessoa que fazia o papel de paciente apresentou três motivos diferentes para acreditar que deveria procurar a terapia, não fui atrás de aprofundamento em nenhum deles, mas apenas perguntei como aquela pessoa estava se sentido naquele momento ao falar daquelas coisas. Em outro momento ela me disse que procurou a terapia para saber o que seria o certo a se fazer; devolvi, então, a pergunta “então você veio para que eu lhe diga o que é certo para você?”, ao que ela prontamente respondeu “não, eu vim para que a gente converse dessas coisas e me ajude a pensar”; ao final do exercício, no comentários, uma outra pessoa disse algo como “eu gostei como ele [apontando para mim] respondeu à coisa do ‘dizer o que é certo’, falou de uma forma que não foi grosseira com o paciente mas também marcou o ponto. E a sua resposta [apontando para a pessoa que havia feito o papel de paciente] foi a de quem já fez terapia”. No mesmo dia uma outra pessoa me disse que eu, no exercício, havia demonstrado já estar apto a atender; embora eu não concorde plenamente com essa opinião, me fez bem ouvi-la. Espero que hajam outros momentos como esse para que eu possa continuar a exercitar o trabalho clínico.