20 de dezembro de 2019 – segunda aula de Clínica Psicorporal das Psicoses e dos Transtornos Mentais

  Nessa aula nós nos concentramos no livro “Notas Psicanalíticas Sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides)” de Freud, aonde o autor vai oferecer uma análise psicanalítica de um paciente que nunca conheceu, Daniel Paul Schreber, através da autobiografia deste, “Memórias de um Doente dos Nervos”. Freud inicia seu texto explicando as dificuldades para o estudo psicanalítico da paranoia, visto que essa condição deveria ser tratada por médicos ligados a instituições públicas, assim os contatos que Freud teve com a paranoia não seria suficientes para a elaboração de conclusões psicanalíticas. Segue fazendo um resumo do livro de Schreber, apontando e citando explicitamente os trechos nos quais baseia suas interpretações. Depois de apresentar o caso, Freud oferece as suas interpretações sobre o caso com base na psicanálise, apresentando possibilidades de significação tanto através do material que o livro de Schreber trás quanto através de recursos meta textuais, como, por exemplos, trechos que foram omitidos da publicação (o terceiro capítulo da obra, por exemplo, foi inteiramente censurado e perdeu-se na história). Continua o livro analisando o mecanismo próprio da paranoia, construindo uma conceituação desta a partir do referencial psicanalítico. Termina seu texto com um pequeno pós-escrito, aonde faz afirmações do papel que o Sol desempenha no sistema psicótico de Schreber com mitologias antigas através do estudo desse tema por Carl Gustav Jung.

  Foi uma experiência interessante, para mim, a leitura desse livro. A primeira parte pude ler com uma fluidez e continuidade prazerosas, cada página convidando à continuação da leitura, o texto como que um diálogo interessante e estimulante. Mas na segunda parte, aonde Freud inicia as suas interpretações, se afigurou exatamente o contrário, uma leitura difícil e arrastada, em que tinha que fazer considerável esforço para conseguir me manter concentrado e acompanhando o texto. O motivo para isso me parece claro: na primeira parte, Freud está relatando um livro que parece ser muito interessante, pois o caso do presidente Schreber (ele foi juiz-presidente da corte de apelação da Saxônia e é muitas vezes referido por Freud dessa forma, “presidente Schreber”, assim como em outra obra que estudei recentemente, “A Anti-Édipo” de Deleuze e Guattari) realmente tem essa característica de instigar a curiosidade; na segunda parte, porém, Freud inicia as suas interpretações e, nesse momento, se iniciam as relações insustentáveis e improváveis que são tão abundantes na psicanálise – é uma coletânea de “vamos supor isso” uns dentro dos outros que se afigura muito cansativa para alguém buscando efetivamente entender as justificativas de tais interpretações. Lendo me ocorreu que seria interessante fazer uma espécie de mapa disso, talvez até representando graficamente cada camada de “saltos” que Freud dá em suas interpretações; imaginei fazer um exercício estatístico, supondo que houvesse mais uma interpretação igualmente válida para cada uma que Freud fizesse, o quão provável seriam as suas interpretações “finais”, aquelas mais internas no seu esquema de suposições (por exemplo: ele faz a suposição A e dentro dela a suposição B; se para a suposição A existe a suposição Z igualmente válida, cada uma representaria uma chance de 50% de probabilidade; assim, se para a suposição B existe a suposição Y igualmente válida, B já tem 50% da probabilidade de A, ou seja, 50% de 50%, ou 25%. Continuando isso mais dois ou três graus vemos como são improváveis as postulações que Freud faz com a maior seriedade). No entanto, nesse texto encontrei uma frase que demonstra, ao menos no entendimento teórico, que Freud entende a necessidade da preocupação com o método; ele diz o seguinte: “Não será possível definir os limites precisos da interpretação justificável até que se tenham realizado muitos experimentos e que o assunto se tenha tornado mais conhecido”; ou seja, Freud entende que uma interpretação não é algo simples e automaticamente justificável, compreendendo também o papel da experimentação e do acúmulo de conhecimento na validação de hipóteses. Faltou-lhe, talvez, um conhecimento mais sólidos sobre processos como o viés de confirmação, do qual ele parece não ter nenhuma consciência quando atua em suas próprias formulações. Se você quer ver o Complexo de Édipo na realidade, você vai encontrar inúmeros indícios da sua existência, assim como com o Coelhinho da Páscoa – existe a Páscoa, existem ovos de Páscoa, existem histórias sobre o tal Coelhinho (em uma, que envolve o personagem Lobo da DC, o Coelhinho da Páscoa contrata o mercenário para matar o Papai-Noel), desenhos, fotos etc. Apenas buscando negar a existência do Coelhinho da Páscoa (ou do Complexo de Édipo) é que podemos empreender pesquisas que efetivamente vão nos permitir construir conhecimento confiável sobre esse assunto. A psicanálise não faz predições arriscadas, no sentido de que podem se mostrar erradas e destruir uma hipótese ruim; todo interpretação da psicanálise é feita a posteriori, e sempre de forma a confirmar os seus pressupostos: uma pessoa pode ser violenta porque não recebeu amor na infância, ou porque recebeu amor demais, e o mesmo pode ser dito sobre qualquer outro comportamento que você coloque no lugar de “violenta”. Isso não quer dizer que possa existir uma regra de “X + Y = Z” quando se trata da complexidade da psiquê humana, eu nem de longe sugeriria algo assim; a questão que se torna evidente com esse exemplo, acredito, é que a psicanálise não possui um método que se possa confiar para produzir conhecimento – e o que é realmente preocupante é que os próprios psicanalistas não pareçam fazer ideia disso.

  Alguém que leia isso pode, com justiça, ficar em dúvida então do motivo que me leva a estudar uma teoria do campo psicanalítico, visto esse tipo de crítica que fiz acima e mesmo em outros relatos de aula aqui no blog. A questão, para mim, é que percebo um potencial interessante na psicoterapia, ou seja, no tratamento de problemas específicos do psiquismo através de um método dialógico. A psicanálise certamente é um método psicoterapêutico, assim como a Análise do Caráter que deriva dela, e não tenho dúvidas de que ambas fornecem excelentes contribuições para a psicoterapia de forma geral; mas, também, não posso ignorar os problemas que vejo em ambas e suas limitações evidentes frente ao pensamento e método científico. Escolhi uma formação reichiana por dois motivos principais: primeiro, me parece muito acertada a proposição de Reich de que não devemos encarar corpo e mente como duas coisas separadas, mas sim como partes de uma unidade funcional; segundo, a postura científica de Reich também me aproxima muito de sua obra, pois somente uma postura verdadeiramente científica pode ser capaz de superar os seus próprios erros e limites, buscando sempre testar as suas hipóteses e tendo maior preocupação com a precisão do método que se aplica do que com a chegada no resultado A ou B. Não tenho dúvidas de que algumas formulações de Reich estão absolutamente equivocada e que tantas outras se apoiam em pressupostos no mínimo questionáveis – mas encontro nessa mesma obra (quem já leu “Análise do Caráter” ou, principalmente, “A Função do Orgasmo” teve a oportunidade de ler o mesmo) a afirmação resoluta de Reich sobre a importância da construção de um conhecimento científico. Uma pena, para dizer o mínimo, que muitas pessoas próximas à obra reichiana não pensem da mesma forma e continuem se apegando a dogmas e a ideias que não se sustentam… Assim, busco encontrar na formação a experiência acumulada de anos de estudos e práticas de outras pessoas, mas sem nunca deixar de recebê-las através de um filtro de análise e criticidade.