09 de novembro de 2019 – primeira aula de Análise do Caráter III

A maior obra clínica de Reich é o livro Análise do Caráter, que é dividido em três partes; a primeira edição contava com as duas primeiras, enquanto que a terceira foi adicionada posteriormente, assim como alguns comentários e notas de rodapé. O livro é basicamente uma coletânea de artigos que Reich apresentou em diversas conferências, reunidos e modificados para formar um todo coerente sobre a sua técnica psicanalítica, a Análise do Caráter. Seguindo a dinâmica do próprio livro, no IFP existem três cursos sobre o livro, cada um teoricamente lidando com uma das partes dele; em Análise do Caráter I trabalhamos quase que efetivamente toda a primeira parte, pois ela possui seis capítulos, daria para trabalhar um a cada aula, sendo que na primeira aula trabalhamos os três prefácios do livro, e juntamos o quarto e o quinto capítulos em uma aula só (o quinto é um capítulo muito pequeno), mas na última aula (como quem se interessar pode ver no relato aqui no blog) trabalhamos algumas definições de conceitos importantes para a psicanálise ou invés de trabalhar diretamente com o sexto capítulo; em Análise do Caráter II, no entanto, não trabalhamos diretamente em aula com o livro, nos baseando nas quatro primeiras aulas em textos sobre tipos de caráter trazidos pelo Marcus Vinícius, o que visivelmente não estimulou que as pessoas fossem até o texto ler e trazer essa leitura para aula, até porque por mais que em grande parte dessa segunda parte Reich trabalhe definições tipológicas de caráteres, não é a única coisa que a parte contém e nem de longe o é da forma esquemática apresentada nas aulas (como desenvolvi nos relatos sobre essas aulas, isso acaba sendo perigoso pois reforça a tendência que as pessoas na formação exibem com bastante frequência de usar os caráteres como etiquetas e, assim, poder “seguir o manual”, por mais que em toda aula o professor lembrasse que não se tratava disso); na terceira parte do livro Reich vai falar do seu conceito de Peste Emocional, de contato substituto e corrente vegetativa, da cisão esquizofrênica e dos segmentos corporais, temas que, imagino, poderiam ser muito bem explorados em aulas centradas em problemas.

O Pedro iniciou a aula justamente falando da dificuldade que é acompanhar a bibliografia de Reich por essa característica de unir artigos e apresentações em novos textos; assim, embora com uma bibliografia extensa, a obra reichiana possui muitas revisões e algumas repetições. Essa terceira parte do livro Análise do Caráter Reich nomeia de “Da Psicanálise à Biofísica Orgônica”, o que já denuncia o olhar e a função com que esses capítulos foram introduzidos na obra; qualquer boa biografia de Reich vai dar conta de explicar com detalhes esse processo que leva o autor de uma coisa à outra, mas acho que é muito mais interessante para quem deseja estudar Reich ler a(e até mesmo iniciar a leitura da obra reichiana através da obra “A Função do Orgasmo”, aonde o próprio Reich vai apresentar uma espécie de autobiografia, mostrando que fatores, pensamentos e conclusões o levaram do estudo da psicanálise para as suas postulações sobre energia orgone e essas coisas todas. Segundo o Pedro, a passagem do psíquico ao corporal, sem nunca abandonar o aspecto psíquico, se dá pela questão da importância do “como” para Reich, pois nessa consideração do como entram fatores tais quais a expressão corporal, a entonação de voz, os movimentos, a expressão facial etc. O caráter, definido como “conduta biofísica típica”, faz sentido dentro dessa concepção, tornando não complicado entender esse caminho de Reich da análise psíquica para a análise corporal.

Mais para frente, o Pedro trouxe uma ideia que ilustra algo que acontece com uma frequência invulgar no IFP, que é os professores apresentarem informações não apenas diferentes, mas claramente contraditórias. Na aula de Clínica das Psicoses no dia anterior, o Henrique falou com todas as letras que o indivíduo “segue o caminho” da neurose ou da psicose na época do Complexo de Édipo (algo entre os 5 e 7 anos de idade); o Pedro, nessa aula, trouxe o seguinte: “eu peguei uma palhinha ali na cozinha de uma fala sobre psicose [estávamos conversando sobre a aula do dia anterior], de que o reichiano tem dificuldades de entender a psicose como um processo, de entender o psicótico como um processo reichiano, e a psicose se dá dentro da barriga da mãe nos primeiros dias de vida. Então esse processo de contração uterina, esse processo de relação da mãe com o meio e que de alguma forma se reflete no feto, ele que vai determinar essa característica psicótica ou não”. Eu entendo que possam existir diferentes concepções e teorias sobre um fenômeno e que os professores possam ter entendimentos diferentes; mas penso que quando fazem parte de um mesmo corpo, eles devem ter algum diálogo entre si e apresentar essas diferenças de forma mais estruturada. Eu, particularmente, não me sinto satisfeito com nenhuma dessas duas explicações, pois nenhuma das duas trabalha dentro de um paradigma que faça sentido para mim; todas essas teorias essencialistas e/ou essencializantes já me acionam um alarme de desconfiança, para falar o mínimo. Essa questão de “vida intrauterina” e seus desdobramentos nunca me convenceu, sempre são coisas que ficam nesse campo do especulativo e que se afirmam nisso, qualquer acusação de falta de provas ou objetividade é rebatida com coisas como “a academia só aceita uma forma de pensar e elimina as outras”, “isso é cientificismo/positivismo”, “essa forma engessada de pensar” etc. O complexo de édipo também nunca me pareceu realmente algo que se possa utilizar da forma que a psicanálise o traz, como uma instituição da mente humana unívoca e inequívoca – aqui, mesmo sem ter grandes estudos, sou tentado a concordar com a hipótese de Deleuze e Guattari de que efetivamente podem existir pessoas que manifestem o tal complexo, mas que ele é resultado de uma estrutura social e não de uma estrutura inerente da mente humana. Assim, não faço ideia do que gera ou ocasiona a psicose, se ela é efetivamente uma estrutura ou um transtorno, se ela é patológica ou não; mas certamente nenhuma dessas duas explicações me satisfaz. Se os professores as apresentassem com maior rigor, mostrando o caminho percorrido para estabelecer as suas hipóteses, provavelmente eu teria mais condições de considerar tudo isso.

Em um momento o Pedro levantou uma coisa que eu achei interessante para concatenar algumas reflexões, mas que acabou que no momento de aula não consegui trazer uma contribuição para a discussão por estar com muito sono; a aula se concentrou no Pedro lendo trechos que ele anotou do primeiro capítulo da terceira parte do Análise do Caráter, dai muitas pessoas ficaram com essa sonolência, ainda mais se tratando da aula após o almoço. Ele trouxe um trecho meio “do nada”, logo após um diálogo sobre conceitos de falso self e contato substituto puxado por algumas perguntas; ele terminou a sua resposta, olhou para suas anotações e fez um “ééééé, pa pa pa pa pa” e leu o trecho “a origem da frustração da pulsão ultrapassa os limites da psicologia e entra no campo da psicologia. Por que que o Reich fala isso? Porque a própria frustração da pulsação tem a ver com a família, tem a ver com escola, tem a ver com religião, é isso que vai determinar como é a relação do sujeito, como é que ele se sente com seus desejos, e é isso, esse social, que vai determinar. E esse social, ele não pode ser lido pela leitura psíquica, né, porque as forças sociais elas são… a questão do poder, né, aonde o Reich naquela época ele ainda era marxista, né, e ele fala sobretudo da questão econômica, né. Eu acho que hoje em dia a questão econômica tem um papel importante mas existe a questão ideológica que hoje em dia é muito mais forte – vide fake news, fake news é uma questão ideológica, não tem substrato da… Que a grande pergunta que se faz hoje, né, se a gente fosse ver, bom, tem o cara lá que está passando fome, né, existe uma estrutura opressiva da classe trabalhadora e esse cara não tem dinheiro pra comprar comida pro seu filho, aí ele vai e rouba um supermercado; esse seria o caminho natural de uma leitura que o econômico está determinando. Só que ele é a exceção, a grande maioria da classe dele não rouba supermercado, e aí entra a ideologia, e aí que a gente tem que entender, hoje em dia a ideologia ela tem um peso muito mais forte que o econômico, ao meu ver, nesse sentido eu estourei com o marxismo”, ao que uma pessoa retrucou “mas é a própria ideologia que sustenta o modelo econômico também, né?”, e o Pedro replicou “Sim, mas você vê que existem contradições, né, você vê que alguns ruralistas hoje em dia estão contra a queimada da amazônia, porque isso trás uma pressão externa internacional que não compra os produtos, então a coisa é muito dinâmica hoje em dia, né, esse fluxo ideológico ele é muito dinâmico e cada grupo vai ter uma ideologia, mesmo dentro de uma mesma classe, você vai ter briga entre classes”, e outra pessoa colocou “É, mas quando ele deixa de colocar agrotóxico ou o que quer que seja para poder continuar vendendo, exportando e tal, ele está pensando na ideologia do outro, mas o que está movendo ele é a questão econômica nele, né?”, e o Pedro disse “A questão econômica de um grupo que está apoiando ele, que nem sempre eles fazem uma leitura correta, e às vezes parte desse grupo começa a achar que é excessivo, porque aí as pessoas passam a não conseguir vender a soja lá fora porque tem agrotóxico demais”, e aí a pessoa que inicialmente discordou colocou novamente “Mas tá ancorado na perspectiva econômica de continuar exportando”, e o Pedro “Sim, mas você vê que a parte ideológica… porque essa parte de não comprar lá fora é uma visão da nova indústria, que é preciso ter critérios de sustentabilidade hoje em dia na Europa. Então você vê que a ideologia começou a ter um peso muito maior; eu acredito que com a evolução da sociedade a ideologia passa a ter um peso maior, como é o homem. O homem primitivo, o biológico tinha um peso grande, aí o desenvolvimento da cultura faz com que esse peso comece a ser diferenciado, e a gente vê isso na própria criação da criança… a criança, se você colocar uma pimenta na boca da criança, ela cospe fora – tem adultos que adoram botar pimenta, eles vão contra o biológico, eles constroem uma ideologia que é contra o biológico”. Esse tipo de posição sustentada pelas pessoas que trouxeram discordâncias é extremamente comum, a ideia de que somos indivíduos plenamente racionais e que sempre fazemos as nossas escolhas baseados na maximização dos nossos interesses; toda a teoria marxista está baseada, por exemplo, nessa premissa, que gosto de chamar de homo maximus. O curioso é que em uma formação de fundamentação psicanalítica, onde deveria ser solo comum a ideia de que a maior parte de nossas ações é inconsciente, essa visão do homo maximus não só persista, mas se apresente tão natural e sem entrar em choque com o arcabouço estudado – claro, afinal, foi Reich que propôs um freudo-marxismo (ou algo que o valha), não foi?

Em seu excelente texto “A Sociedade Contra o Estado”, o antropólogo Pierre Clastres nos dá subsídios para pensar para além desse determinismo econômico, e aqui eu gostaria de citar um parágrafo desse texto:

Que nos é ensinado por esse movimento de maioria de sociedades que passaram da caça à agricultura e pelo movimento inverso, de algumas outras, que, partindo da agricultura, chegaram à caça? É que isso parece efetivar-se sem que ocorra qualquer mudança na natureza da sociedade; que esta permanece idêntica a si mesma enquanto se transformam apenas as suas condições de existência material; que a revolução neolítica, se por um lado afetou consideravelmente, e sem dúvida facilitou, a vida material dos grupos humanos de então, por outro lado não acarreta de maneira automática uma perturbação da ordem social. Em outros termos, e no que tange às sociedades primitivas, a mudança no plano do que o marxismo chama a infra-estrutura econômica não determina de modo algum o seu reflexo conseqüente a superestrutura política, já que esta surge independente da sua base material. O continente americano ilustra claramente a autonomia respectiva da economia e da sociedade. Grupos de caçadores-pescadores-coletores, nômades ou não, apresentam as mesmas propriedades sociopolíticas que os seus vizinhos agricultores sedentários: “infra-estruturas” diferentes, “superestrutura” idêntica. Inversamente, as sociedades meso-americanas – sociedades imperiais, sociedades com Estado – eram tributárias de uma agricultura que, mais intensiva que alhures, não ficava muito longe, do ponto de vista de seu nível técnico, da agricultura das tribos “selvagens” da Floresta Tropical: “infra-estrutura” idêntica, “superestruturas” diferentes, uma vez que, num dos casos, se trata de sociedades sem Estado, e, no outro, de Estados acabados.

Uma parte que o Pedro leu deixa evidente que Reich se preocupava com a concepção teórica do trabalho analítico e psicorporal numa relação que não deixa estanques teoria e prática, mas entende as duas como vertentes de um mesmo processo: “A teoria e a prática estão interligadas e elas são inseparáveis; uma atitude teórica incorreta conduz a uma técnica incorreta, e uma técnica incorreta produz opiniões teóricas incorretas”. O Pedro pontuou que nesse trecho Reich está se referindo à ideia de pulsão de morte, conceito formulado por Freud com o qual Reich não concorda e que acaba sendo o pivô da sua expulsão da sociedade psicanalítica. Eu concordo completamente com essa frase e vejo que as pessoas conseguem entendê-la uma vez dita, mas não a assimilam verdadeiramente em suas formulações e construções, sempre terminando por separar teoria e prática como campos independentes. Frases como “na prática a teoria é outra” ilustram bem esse tipo de mentalidade que devemos combater, pois a frase na sua literalidade já traz um problema, indicando que teoria e prática nunca se harmonizam e que a prática seria o critério de validade ao qual a teoria sempre falharia em se adequar; mas de forma geral essa frase é trazida para deslegitimar o campo teórico, como quem diz “a teoria parece muito interessante mas não tem aplicabilidade real”, e isso é um grave equívoco pois não há prática que possa prescindir de uma elaboração teórica, da mesma forma que as teorias não são formuladas em um limbo abstrato, mas em relação e consonância com a realidade e as nossas práticas. Na discussão que tangenciou epistemologia em uma aula de Análise do Caráter II (https://game.noblogs.org/post/2019/07/11/sobre-a-discussao-de-epistemologia-na-aula-de-analise-do-carater-ii/), esse tipo de pensamento ficou visível na colocação, já para o final da discussão, da pessoa que buscou encerrar o debate pois teve a impressão de que ele não acabaria; esse comportamento, em si, faz sentido – embora em nossa sociedade percebo como muito mais urgente que as pessoas entendam que debater é necessário e saudável, também precisamos ter o entendimento que não é em todo momento nem em toda situação, por mais dialógica que ela seja ou pareça, que um bom debate vai poder se instalar. A questão é que a solução trazida pela pessoa passou ao largo de qualquer compreensão do que estava sendo debatido, que era justamente a importância que uma concepção teórica equivocada tem na prática terapêutica; ao sugerir que, não havendo um consenso na discussão, o que se deveria fazer era ir para a prática terapêutica com uma “fórmula infalível”, a pessoa demonstra que ou não entendeu a discussão que estava em pauta ou não viu importância nela.