12 de outubro de 2019 – sexta aula de Análise do Caráter II

No começo dessa aula tivemos uma situação engraçada: uma pessoa perguntou para o Marcus Vinícius o seguinte: “uma coisa que você falou foi, que dos livros do Lowen, tinham uns três ou quatro só que valiam a pena e o resto nem era tão importante ou…”. Enquanto essa pessoa perguntava isso, a expressão do Marcus Vinícius foi ficando caricaturalmente interrogativa, até o ponto em que ele começou a sacudir a cabeça em negação e finalmente falou “acho que eu não falei isso não”, de tal forma que arrancou uma risada generalizada da turma. A pessoa ainda insistiu na colocação, o Marcus Vinícius continuou negando e disse, corrigindo, que ele havia dito que se a pessoa desejasse “ter uma ideia geral de bioenergética, um ‘basicão’ (sic), aí você só precisa de três (…) os três seriam ‘Bioenergética’, o outro ‘O Corpo em Terapia’ e o outro ‘Exercícios de Bioenergética’, que é dele e da mulher dele. Porque aí o que que você tem? Você tem a parte toda que ele trabalha, como ele mesmo chama, ‘Bioenergética’, ou seja, uma grande introdução aos principais conceitos, técnicas, etc, etc, depois tem ‘O Corpo em Terapia’, que na verdade é um livro sobre tipologia, sobre caráter, e o terceiro que é um livro exatamente disso, né, uma coisa que o Reich nunca fez, exercícios sistemáticos de bioenergética, individualmente e grupalmente (…) agora tem algumas coisas que eu acho fundamentais para quem está trabalhando com bioenergética, ou até pra gente, né, por exemplo, eventualmente quando eu tenho um paciente… paciente não, quando eu tenho, quando eu estou dando supervisão para alguém, que alguém está atendendo um caso de depressão e está querendo entender um pouco mais a dinâmica da depressão tem um livro do Lowen que eu acho bem legal que é ‘O Corpo em Depressão’, que eu acho que pode ajudar bastante. Tem um outro livro do Lowen que só tinha em inglês e eu acho que agora tem em português, que é chamado de ‘Narcisismo’, eu acho que foi o último livro dele”. Eu conheço muito pouco de bioenergética, só algumas pontuações que foram feitas em alguns momentos da formação, mas achei interessantes essas pontuações do Marcus Vinícius, é interessante ter esse tipo de referência para possíveis futuros estudos em alguma área – já saber por onde começar e/ou quais são os pontos de contato com aquilo que já estudamos é bem útil.

Depois disso o Marcus Vinícius fez uma rápida recapitulação das aulas do curso até então, dizendo que as quatro primeiras foram dedicadas ao estudo de 8 tipos de caráter (e reforçou a ideia de que essa não é uma tipologia fechada, trazendo mais uma vez a frase de Reich de que haverão tantos tipos de caráter quanto as sociedades puderem produzir, e também o exemplo da denominação “Caráter Aristocrático” que Reich cria para um caso que descreve no “Análise do Caráter. Mais para frente, ele chegou a dizer, falando sobre diagnóstico processual, que o terapeuta “pode inclusive mudar [o diagnóstico caracterial] a partir do momento em que você vai conhecendo mais o paciente, e o paciente também pode mudar” [grifo meu]), depois falou sobre o encontro anterior, aonde analisamos duas propostas de caso trazidas por ele, e que nesse encontro, o último do curso, iríamos trabalhar “em cima do caráter de vocês”. Ao apresentar o trabalho, ele disse que seria feito em duplas que, diferente da indicação que ele faz nas Oficinas do Corpo, deveriam procurar se formar a partir do critério de proximidade e conhecimento; cada pessoa da dupla deveria ter uma folha, na qual deveria colocar o seu nome no alto da folha e utilizá-la para descrever o seu caráter, procurando ser o mais sincero e genuíno possível, não precisando ter grandes preocupações em relação à nomenclatura do caráter, mas que se depois de descrever o próprio caráter alguma nomenclatura saltasse aos olhos poderia colocá-la. Apesar dele terminar a descrição do exercício enfatizando que esse primeiro momento deveria ser individual, logo após ele terminar e dizer que poderíamos iniciar uma pessoa perguntou “mas o que é para colocar?” – ao que se seguiram muitas risadas e uma nova explicação da ideia do exercício. Depois de nos deixar um tempo (talvez cerca de meia hora) escrevendo, ele primeiro pediu que quem já houvesse acabado fizesse uma releitura do que escreveu, vendo se não havia nada a acrescentar, e depois de mais uns dez minutos ele orientou que trocássemos as anotações, para que uma pessoa pudesse ler a descrição que a outra fez de si, e, a partir dessa leitura, fazer acréscimos que acreditasse necessários na descrição feita pela pessoa. Depois de mais aproximadamente 20 minutos, a orientação foi de que destrocássemos as anotações e, a partir dos acréscimos feitos e do que foi conversado nas duplas, pensássemos se mudaríamos a nomenclatura do nosso caráter. Mais alguns minutos se passaram, e então o Marcus Vinícius perguntou quais pessoas conseguiram dar um nome ao seu caráter e quais não, e me pareceu que como nem todas haviam conseguido, ele esperou mais um pouco. Depois, pediu para que as pessoas que conseguiram nomear o seu caráter ficassem de pé, agrupando as pessoas pelos tipos de caráter, e foi nesse momento que algo ficou evidente. Por mais que durante todo o exercício o Marcus Vinícius ficasse repetindo que as pessoas poderiam não nomear o seu caráter ou mesmo criar um nome para o seu, e mesmo desde o início da aula (e em todas as aulas anteriores) dissesse que existem tantos tipo de caráter quanto a sociedade puder produzir e ressaltasse que Reich usou a denominação “Aristocrático” para definir o caráter de um paciente, a coisa não saiu muito da tipologia apresentada nas aulas. Tiveram quatro pessoas que não se encaixaram em um dos oito tipos apresentados: duas que não conseguiram nomear de forma alguma, uma que usou um nome “clássico” mas não contido nos oito tipos apresentados e uma que criou um nome particular para descrever o seu caráter. Com todas essas pessoas o Marcus Vinícius ficou insistindo em perguntar se não se sentiam pertencendo a algum dos caráteres apontados por outras pessoas; novamente, o tempo todo ele reforçava que não era necessário, mas fazia a pergunta várias vezes, insistia e pontuava “não acha esse aspecto parecido?”. A pessoa que criou um nome para o seu caráter disse “caráter ao léu”, e nisso o Marcus Vinícius olhou todo empolgado para uma das pessoas que não deu nome algum ao seu caráter, perguntando “como você disse que era o seu caráter?”, e a pessoa não entendeu, então ele explicou “deixa eu esclarecer: é que quando eu perguntei, ela disse ‘o meu caráter fica solto por aí…”, então ele juntou as duas – o que me parece uma forçada de barra, afinal estar “ao léu” é ter um local definido, de desamparo talvez, enquanto o “estar por aí” é justamente uma falta de definição. Tanto foi que enquanto o Marcus Vinícius tentava encaixar as outras pessoas em algum grupo a pessoa “por aí” se incluiu no grupo do caráter histérico, e ficamos mais tempo nessa parte de tentar “encaixar os dissidentes” do que na parte de dividir os grupos. Com os grupos divididos, a instrução foi que conversássemos sobre as semelhanças que encontramos entre as pessoas daquele grupo. Depois desse momento, o Marcus Vinícius pediu que cada pessoa, individualmente, voltasse nas definições dos oito tipos de caráter que ele deu nas aulas anteriores e tentasse, a partir de uma leitura atenta, reconhecer características do seu caráter presente na descrição. E, por fim, fizemos uma roda aonde cada pessoa foi incentivada a falar sobre o que aprendeu sobre si a partir desse exercício.

Para mim, muitas coisas que aconteceram nessa aula reforçam a ideia de que as pessoas usam o conceito de caráter de forma nociva, realmente como uma categorização; uma fala que apareceu no momento final, da roda de impressões, ajuda a ilustrar isso: “era isso que eu estava falando com a Fulana, que ela percebe mais como colocar em uma caixinha, eu percebo não assim ‘colocar numa caixinha’, eu acho que é importante às vezes você perceber qual é o seu caráter porque aí você consegue ver características e elaborar sobre essas características, que eu acho que é a parte mais difícil. Porque é melhor quando você percebe do que quando você faz aquilo e nem percebe. Então eu acho que já é um passo à frente, você conseguir se identificar”. O argumento que, no meu entender, sustenta essa fala, pode ser expresso como “é sempre melhor saber”, e eu concordo plenamente com essa ideia, é algo que eu não só acho coerente e tento trazer para a minha vida, como acho que é um imperativo poderoso, ética e filosoficamente, cuja falta está na raiz de muitos problemas crônicos de nossa sociedade. Contudo, me parece que há aí uma assunção de que essa identificação em um caráter é uma forma de saber alguma coisa, e isso certamente tem que ser problematizado; já deixei expresso em outros relatos como penso que mesmo a noção de caráter, da forma como é formulada por Reich, tem que ser questionada em suas origens e consequências – nesse campo reichiano sempre me parece que faltam perguntas e abundam afirmações. Mas na questão em pauta não se trata de questionar isso, mas sim pensar a partir dos próprios pressupostos apresentados. O primeiro pressuposto é de que o caráter é uma grande defesa do indivíduo contra as hostilidades que o mundo lhe traz; assim, o problema não é a existência do caráter (afinal, nesse pressuposto está contida a ideia de que o mundo traz hostilidades, e se defender dessas hostilidades parece, no mínimo, adequado), mas sim o enrijecimento das formas de defesa. E nisso, a frase que citei acima faz sentido, pois se conhecer melhor certamente permitiria agir melhor sobre seus enrijecimentos. Mas se o movimento é efetivamente perceber características em si e, a partir disso, conseguir se classificar em um tipo de caráter (por mais fluida, aberta e mutável que possa ser essa classificação), que benefícios se poderia obter dessa classificação? A única resposta possível que vejo para essa pergunta é algo como “porque saber o meu caráter me permite conhecer mais sobre mim”; aqui, não é mais o movimento do autoconhecimento para a classificação, mas sim da classificação para o autoconhecimento, como se saber o seu caráter pudesse te dar informações sobre você mesma que você não tinha antes. É importante entender o que estou dizendo aqui: primeiro, não é algo como “ninguém pode conhecer a pessoa mais do que ela mesma”; entendido isso, o que quero apontar é que a validade dessa auto classificação reside no movimento da pessoa efetivamente descobrir coisas em si e, a partir disso, se perceber dentro de um tipo de caráter já descrito; mas se a importância disso residir, como a frase da pessoa leva a entender, que conseguir uma classificação em um caráter leva à percepção de características suas, acredito que isso é um equívoco. Aqui, novamente, vou bater na tecla da epistemologia: caso você se convença que é do tipo de caráter A ou B, vai conseguir com muita facilidade encontrar elementos no seu comportamento que confirmem essa suposição – se quiser provar que super-heróis existem, vai achar provas de sobra (para entender melhor isso, ler a postagem “Sobre a discussão de epistemologia na aula de Análise do Caráter II” – https://game.noblogs.org/post/2019/07/11/sobre-a-discussao-de-epistemologia-na-aula-de-analise-do-carater-ii). Uma prova disso foram as diversas classificações de caráter dos dois casos apresentados na aula anterior a essa, aonde muitas pessoas classificavam um mesmo caso dentro de um caráter diferente, cada qual apresentando argumentos bem construídos para tal; isso não significa dizer que é um “vale tudo”, certamente existindo uma definição canônica existirá o erro (como, em um exemplo estereotipado, uma pessoa dizer “ah, essa pessoa tem o caráter obsessivo porque tudo nela vai à boca” – o “tudo ir à boca” deveria apontar mais para um caráter oral), mas mesmo esse cânone se apresenta de forma difusa o suficiente para permitir superposições e imprecisões (como a definição do caráter impulsivo, que lhe diz “No impulsivo, observam-se obstinação, rebeldia, inferioridade interior, tendência a se torturar e a torturar os outros, hostilidade, inescrupulosidade”; do caráter obssessivo-compulsivo se diz que é obstinado [“As questões e assuntos periféricos ganham o mesmo espaço que os centrais (…) É determinado e, muitas vezes, teimoso”]; o caráter masoquista tem “paixão por atormentar os outros e isto faz com que o próprio masoquista sofra”; o passivo-feminino tem “sentimento de inferioridade com características passivo-femininas”. Ou seja, os mesmos comportamentos são descritos em vários tipos de caráter). Nada disso significa alguma coisa do tipo “caráter não existe” ou “essas definições estão erradas”; estou sendo repetitivo para deixar bem estressada a ideia de que não se trata de negar a existência do caráter nem de afirmar algo como “pessoas são tão únicas que não há classificação possível”. A questão é apontar que a ferramenta do etiquetamento caracterológico não me parece útil para uma melhor compreensão de si, como afirmou a pessoa na frase que citei. A proposta que acho válida e me interessa em Reich é de uma análise do caráter, não uma classificação dos caracteres, pelos motivos expostos aqui.

Para fechar com um “momento citei Foucault”, gostaria de trazer um trecho de uma entrevista de 1978 com o autor, onde ele diz o seguinte “Freud formulou uma teoria relativa à natureza precocemente sexual das crianças. É claro que os psiquiatras não esperavam que as crianças se prestassem a verdadeiros atos sexuais; contudo, não era tão fácil explicar a maneira como elas sugavam o seio ou buscavam automaticamente tal ou tal parte erógena de seus corpos. Infelizmente, logo depois, chegou-se a conotar em termos sexuais até o alimento que a criança comia, as histórias em quadrinhos que lia, ou os programas de televisão que via. Poder-se-ia facilmente concluir que, em tudo isso, os psicanalistas liam mais do que havia realmente. Assim, essas crianças são hoje enquadradas por um mundo orientado sexualmente – criado acidentalmente para eles e não por eles –, trata-se de um mundo que, nessa fase de desenvolvimento, oferece-lhes poucas vantagens” (FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV – estratégia, poder-saber. Páginas 312 e 313). Essa passagem é muito interessante de estar aqui por vários motivos, mas gostaria de apontar três: o de importância incidental, é o fato da leitura que Foucault faz de Freud – crítico deste, Foucault não deixa de perceber o contexto em que Freud estava inserido e busca entender o que o levou a construir a sua teoria, sem demonizá-lo por suas consequências; o segundo, que vai ao encontro das minhas críticas às concepções essencializantes em Reich (e em qualquer outro, na verdade), é a frase “Poder-se-ia facilmente concluir que, em tudo isso, os psicanalistas liam mais do que havia realmente”, que nos ajuda a alertar contra o erro de assumir um caráter X a partir de um punhado de características, por mais estereotipadas que possam ser (sempre acho e por vezes comento que essa postura de “analisar rapidamente”, além de enganosa, na verdade esvazia o real processo de análise, pois o coloca como simples e fácil), e o faz com a vantagem fundamental de estar justamente se referindo a psicanalistas; mas o terceiro ponto é o que realmente coloca essa citação aqui, por se relacionar diretamente com o problema mais evidente que vejo nessa coisa de “tipologia caracterológica”: trata-se de uma ferramenta que oferece perigos muito maiores do que as suas poucas vantagens.