Sobre a discussão de epistemologia na aula de Análise do Caráter II

  Durante a terceira aula de Análise do Caráter II, que aconteceu no dia 29/06/19, surgiu um ponto muito interessante (que acabou se tornando uma questão bem desgastante para mim) a partir da seguinte pergunta: “Nessa linha do homossexual, heterossexual… e o assexual?”. No momento em que eu ouvi essa pergunta fiquei mais atento, pois essa é uma questão sobre a qual eu já havia pensado; tendo conversado com pessoas que se entendem como assexuais, eu percebi que essa é uma questão que expõe um limite, se não de toda a psicanálise, ao menos da teoria reichiana. Embora existam diferentes compreensões e discursos das pessoas assexuais, o que mais vi presente e que é mais interessante para essa discussão é aquele em que essas pessoas dizem tão somente que sexo e desejo sexual não lhes diz respeito, elas não se conectam com isso de nenhuma forma. Dentro dos meus paradigmas isso não coube para além de qualquer definição de problema ou desfunção – para mim, esse comportamento e/ou essa forma de existir são respostas inadequadas a alguma coisa, são, para colocar em termos reichianos, formas de funcionar que o organismo encontrou para se defender de algo. A questão importante é que eu pensar assim pode ser sinal de uma incapacidade minha de entender o fenômeno que me é apresentado; acreditar em uma coisa não é sinônimo de acreditar que ela é a verdade. É uma questão básica de construção do conhecimento, que tanto um dos maiores expoentes do método dedutivo (René Descartes, O Discurso sobre o Método – “nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal”) quanto um dos maiores expoentes do método indutivo (Karl Popper, À Procura de um Mundo Melhor – “ que nós não podemos saber nada com certeza, simplesmente não vale procurar pela certeza”) concordam com ela – sinceramente, me sinto um tanto tolo por ter que afirmar isso aqui, tão explorado que isso já foi na história acumulada do nosso conhecimento; então trouxe esses dois nomes por, de certa forma, representarem formas diferentes de pensarmos metodologia científica. Essa espécie de prefácio é para ser “justo” com quem lê e apresentar que foi com esse arcabouço que eu ouvi a pergunta e toda a resposta; assim, concordando comigo ou não, quem lê isso (como se essa entidade fantasiosa “pessoa que lê os relatos do Projeto G.A.M.E.” existisse) pode entender de onde eu parti e acompanhar mais ou menos o mesmo trajeto que eu.

  A resposta do Marcus Vinícius dá um forte indício desse limite de que falei; a primeira coisa a já deixar clara é que isso não é um problema, todo conhecimento tem limites. Todo. A questão aqui é de delinear esse limites, saber que eles existem e localizá-los. Como a coisa todo iniciou muito dialógica, acredito que fica mais interessante apresentar no formato de diálogo (o que estiver entre colchetes foi adição minha na transcrição):

Pessoa 01 – Nessa linha do homossexual, heterossexual… e o assexual?

Marcus Vinícius – Mas o que é um assexual?

Pessoa 02 – Assexual, é o cara que não tá nem aí pra nada

Marcus Vinícius – Mas isso não é assexual; o dito assexual alguma sexualidade tem, ainda que seja… quando eu nego a sexualidade, tem uma sexualidade ali

Pessoa 01 – Então essa classificação não existiria?

Marcus Vinícius – Não tem como você ser destituído de sexualidade, não tem como, não como… Como não ter sexualidade? Impossível

Pessoa 01 – Não, eu tô perguntando isso porque eu conheci uma pessoa que se dizia…

Marcus Vinícius – Ah, ela pode se dizer

Pessoa 01 – … assexual, mas eu…

Marcus Vinícius – É, é… porque assim, não tem como. O que seria uma pessoa assexual, aquela que não transa, por exemplo? Ou aquela que não sente desejo? O que que seria assexual, né? Bom, isso quer dizer então que ela não tem fantasia sexual, é isso? Então ela não sonha e não acorda… falando português claro, se for homem, “esporrado”? (risos) Entendeu, então assim, não tem como. E se for uma mulher, ela não se excita ainda que ela não queira (e sem se dar conta, muita vezes)? Então não tem fantasia, é isso? Nenhuma que seja? Tem que ter uma sexualidade ali de algum modo, ainda que seja pela negação.

Pessoa 03 – Mas uma sexualidade… porque assim, no corpo… porque quando você fala assim “uma energia sexual bem resolvida”, por exemplo: sublimação. A pessoa bota toda libido no trabalho, e ela se realiza ali… Tem gente que tem mais e gente tem menos necessidade de transar, por exemplo.

Marcus Vinícius – Sim, isso é outra coisa.

Pessoa 03 – Você não pode dizer que ela está sexualmente organizada, com aquela energia sexual dela?

Marcus Vinícius – Você falou toda a energia; se botar toda a energia… entendeu? Toda a energia? Não… Uma coisa é botar toda a energia, e não transar, né?

Pessoa 03 – É… Uma pergunta: se é possível estar organizado com a sua energia sexual uma pessoa que opta por não fazer sexo, por exemplo.

Pessoa 04 – Essa é a pergunta dela

Marcus Vinícius – Pois é, mas esse é a pergunta. Assim, não existe gente ass… porque ela chamou de assexuado – assexuado não existe, porque assim, né?

Pessoa 01 – Não, é, porque eu fui uma vez inclusive assistir um trabalho de pessoas que se determinavam assexual

Marcus Vinícius – Eu sei, elas dizem isso, eu que estou dizendo que, assim, que sob o ponto de vista da compreensão da sexualidade é impossível você ser destituído de sexualidade, entendeu?

Pessoa 01 – Essas pessoas nem dizem assim, que estão sublimando, elas dizem que não tem desejo sexual mesmo, nem é questão de sublimar

Marcus Vinícius – Pois é… Só que tem – é isso que a gente tá tentando dizer.

Pessoa 01 – Entendi

Pessoa 05 – Ou está desconectado, cindido.

Marcus Vinícius – Agora ou… Isso, está desconectado, cindido. Agora ou… Tem a distorção, né, disso. Agora outra coisa que realmente acontece dentro do que a Pessoa 03 estava dizendo, é que existem pessoas – isso sim – né, porque todos nós somos uma unidade psicorporal com um determinado quantum de energia, que é variável. Isso sim. Então você vai ter gente com mais apetite sexual do que outras pessoas; isso é evidente. Muito mal comparando, assim como você tem rios mais caudalosos e rios menos caudalosos (risos) Mas é isso. Tomando a ideia de água do rio como energia, você vai ter rios com muita energia e rios com pouca energia, rios com muita água e rios com pouca água. É claro que dentro de um sistema, ainda que esse sistema seja aberto, você vai ter gente com mais energia concentrada, ou com mais produção de energia, melhor dizendo, e outros com menos produção de energia. Gente com mais apetite sexual do que outras pessoas – isso tudo bem. Mas a pessoa que se diz sem nenhum desejo, sem nenhum… é porque, de algum modo, essa sexualidade se faz presente de algum jeito, de uma outra forma, né? Porque sexualidade é um força de vida, você percebe?

Pessoa 01 – Uhum

Marcus Vinícius – É força de vida. Então se isso não vem pela atividade da sexualidade, vem de outras formas. Mas a sexualidade tá lá, colocada. E aí é o que eu tô falando, e aí tem a traição do corpo, né, o corpo trai. Porque, por exemplo, você pode ter uma busca de uma atividade sexual que não é tão clara e não é tão óbvia assim. Por exemplo, você pode imaginar: os padres não sonham com mulheres? Não tem desejos com outros homens, não tem desejos homossexuais, não tem desejos heterossexuais? Então eles não tem sexualidade? Supondo os padres que não transam, de fato.

Pessoa 03 – Mas aí é uma regra que vem de fora…

Eu – É, porque assim Marcus, nessa questão toda, eu pensando aqui…

Marcus Vinícius – Só pra… Eles não se masturbam, padre não se masturba? Evidentemente que se masturba.

Várias pessoas – Com certeza!

Pessoa 04, rindo – “Evidentemente”…

Pessoa 05 – As freiras também.

Marcus Vinícius – Pois é. As freiras também. Então assim, essa ideia da pessoa se dizer assexual… Eu quero dizer assim, a sexualidade tá lá de alguma forma, porque a sexualidade é vida, é força, tá lá. Agora, você pode pegar isso, sublimar e jogar tudo no trabalho; você pode rezar o tempo todo, orar o tempo todo, né… Eu lembro (desculpem hoje ser tão nostálgico assim, dar exemplos que não cabem muito aqui mas não há como não lembrar) tinha lá uma dessas séries brasileiras geniais que foi escrita pelo marido da antiga Janete Clair, como era o nome dele? Que era um comunista, que eu esqueci agora… Mas enfim…

Pessoa 03 – Dias Gomes

Marcus Vinícius – Dias Gomes, muito obrigado. E que tinha lá o personagem do Odorico Paraguaçu, que era feito pelo Paulo Gracindo e, dentro dessa história, tinham três irmãs solteiras…

Pessoa 05 – As Irmãs Cajazeiras

Marcus Vinícius – … as Irmãs Cajazeiras que, não só eram solteiras, mas virgens, supostamente – o personagem seria isso, virgens, três irmãs. E aí elas… O Odorico Paraguaçu passava lá para tomar o tal do licor de jenipapo. E aí ele passava lá e elas ficavam [sons de suspiro, tom entusiasmado] “quer um licorzinho de jenipapo, Sr. Prefeito?” (risos) era assim. É claro que tem uma sexualidade ali acontecendo; mas se você perguntar pra ela, “não”. Claro que tem. E ela vai dizer “não, eu sou assexuada”. Teve uma outra cena, essa foi a mais essencial e por isso esse seriado, e depois a novela, foi proibido durante muito tempo na época aqui da ditadura militar, teve uma cena… porque depois que foi liberado, né, depois da ditadura militar, e aí foi liberado… tinha uma cena absolutamente genial. Porque? Porque elas iam pra igreja, né, eram carolas, iam na igreja, rezar… E aí tem uma cena das três chegando no altar, as três com o véu, claro né, eram carolas lá com o véu, rezando, quando as três olham pra Jesus Cristo, porque Jesus Cristo estava lá, né [faz gesto representando a imagem tradicional do Cristo crucificado], morto… E isso apareceu na televisão! E aí aquilo que era uma imagem só de sofrimento, vira uma tanguinha sexual, né, e as três assim… E aí fazem o sinal da cruz, parará parará, e vão embora. Então eu tô falando assim, é impossível você ser destituído de sexualidade: ou isso vai vir pela fantasia, ou vai vir de uma forma disfarçada, ou vai vir de outra coisa qualquer… Foi isso que não Reich, mas Freud, fez: ele tirou o véu da sexualidade infantil e disse “criança não é um ser assexuado”. Esse discurso era o discurso para as crianças até alguns séculos atrás; “criança é um anjo” – o que que é um anjo? Não tem sexo. Aí o Freud disse “Nãããão, tem sexo e tem desejo”. Então assim, é tirar o véu… Entendeu? Então, na verdade, isso é tentar encobri a sexualidade, com a ideia de assexualidade – mas ela tá lá, ela tá lá, acho que não tem como não estar. Mas tem que saber ver – aliás, esse é um bom mote, né gente. Assim, terapeuta reichiano tem que saber ver, tem que aprender a ver… não só ouvir, ouvir mas ver, ver o paciente, perceber o jeito, o movimento, a postura, o que esconde, a camada que está atrás da outra camada, tem que estar ali junto com o paciente, presente, com força e vendo o movimento do paciente pra entender. Tá lá; tá lá às vezes nas sutilezas, mas tá lá. Ok? [pausa – talvez alguém acenou com a cabeça] Mas, é verdade o que você diz, algumas pessoas tem uma sexualidade mais vigorosa do que outras porque um quantum de energia mais forte, pode ser…

Pessoa 03 – Nem sei se mais vigorosas, né… Mas talvez mais no corpo, porque algumas pessoas precisam transar mais, outras pessoas fazem tanta coisa com aquela energia sexual que eu não sei se é menos vigorosa… Não sei

Marcus Vinícius – Eu acho que… A forma como eu entendo… O Reich lá na terceira fase fala de sistema orgonótico… Eu vou pular muito isso aqui, mas você deu o gancho aí dentro do gancho a gente tem que falar. Então assim, sistema orgonótico: todos nós seríamos um sistema orgonótico, constituídos de um núcleo energético, uma membrana e um invólucro energético, todos nós. Isso é o que há de comum em todos nós; mas esse sistema orgonótico seria diferente, nenhum sistema orgonótico é igual ao outro, exatamente igual – consequentemente tem uma condição energética, ou uma capacidade energética, ou, né… porque sob o ponto de vista reichiano o que que acontece? Ele já está concentrado aqui em mim, como se fosse uma aura do ponto de visto católico, né, e de outras religiões judaico-cristãs, né, uma aura, então, que vai se afastando da gente e vai se dissipando num oceano de energia orgônica que existe entre nós – pra Reich é isso. É isso. E quanto mais a gente vai se aproximando mais esse campo energético vai ficando denso. Ora, essa camada energética e essa densidade, e esse sistema energético, ele não pode ser… ter uma maior capacidade em uns do que em outros? Acho que sim; teoricamente acho que sim. Assim como nós somos diferentes – iguais, mas ao mesmo tempo diferentes em termos de formato e de corpo, né, então acho que sim. Aí todas aquelas experiências, de que aí eu já não faço muito parte, né, de que tem gente que sente o campo energético do outro a uma distância muito maior do que em outras pessoas, que várias pessoas… Então assim, enfim… aí você já entra pra maiores especulações. Mas na verdade o que eu quero dizer é: acho que é possível algumas pessoas terem uma condição energética em si de maior força do que outras, acho que pode. O que não significa que isso também não possa ser mudado, modificado com o tempo. Mas sim, acho que sim, acho que pode ter gente com muito mais vontade de transar do que outras, não por uma questão de sublimação, não, mas porque tem um invólucro energético e uma constituição de energia com mais densidade do que outras, por exemplo. Pode, pode, acho que sim, teoricamente acho que sim. Até porque o Reich fala disso, ele fala assim, sob o ponto de vista energético ele diz que um campo, preferencialmente (tá lá no final das obras do Reich – Éter, Deus e o Diabo; Superposição Cósmica; tá numa dessas obras já de final de vida do Reich)… Ele diz assim, por princípio seria bom que o campo energético do terapeuta fosse mais organizado (esse é o termo que ele usa) do que o do seu paciente. Um campo organizado, mais organizado do que o do seu paciente. Sob o ponto de vista energético. Então, assim, é isso; se você tiver um campo muito desorganizado, isso, a energia vai estar meio dissipada…

Pessoa 03 – Não sei se quando você fala em “maior quantidade” isso se expressaria em uma vontade maior de transar…

Marcus Vinícius – É, não sei se… necessariamente

Pessoa 03 – … ou não necessariamente, porque quando você fala em “maior quantidade”, se a energia sexual se apresenta em outro lugar talvez… sei lá, pessoas que trabalham, que constroem, que fazem tanta coisa com aquilo… Eu não sei se ela tem menos – você entende?

Marcus Vinícius – Eu entendo, perfeitamente. Talvez, não, talvez ela esteja… Mas eu não estou falando desse caso, eu estou falando de, teoricamente, a priori, a priori… Mas é claro, nesse caso que você está dizendo, sim. Mas a priori acho que pode ter gente, independentemente da canalização da energia, com mais ou com menos. Vamos lá.

Eu – Não, Marcus; eu queria colocar, é… que eu acho importante, assim, é… fazendo uma problematização meio advogado do diabo, né?

Marcus Vinícius – Por favor, por favor

Eu – Um lugar aonde eu gosto de estar. É… perceba, se chega um paciente num consultório de um reichiano como você está se colocando, chega no seu consultório, com essa questão que ela colocou, a pessoa se dizendo assexual… E a gente entende que a realidade a gente não acessa, né; a gente acessa a realidade através de um filtro de verdade… Então pode ser que essa pessoa tenha uma sexualidade e não está percebendo; mas pode ser também que a sua realidade de reichiano, a verdade que você bota na sua frente, te impeça de perceber aquele indivíduo como efetivamente um indivíduo assexual. Então eu imagino que isso pode ser um limite da teoria reichiana, que se a gente coloca “não, isso não existe”, a gente está se negando a perceber um fenômeno…

Marcus Vinícius – É, eu entendi…

Eu – Entende? Porque não tem uma pesquisa sobre isso, a gente coloca só “não, não tem”, essa pessoa tá errada, e a gente não permite olhar pra essa realidade e investigar ela, e acho que isso pode levar a caminhos muito perigosos; como o primeiro Reich, por exemplo, não fazia com a questão da homossexualidade: não, não atinge a potência orgástica e ponto – tem toda uma discussão pro Reich final, se ele rediz isso ou não.. Mas, enfim, eu acho que isso pode estar acontecendo nesse momento aqui com essa questão das pessoas que se dizem assexuais – a gente pode estar colocando um filtro de verdade que nos impede de ter esse contato efetivo com ela porque a gente já entende que, posteriormente o Reich e o Freud criaram um manualzinho do ser humano e nesse manualzinho diz que todo ser humano tem sexualidade necessariamente.

Marcus Vinícius – É, eu acho que a questão que você coloca é uma armadilha filosófica, né (risos)

Pessoa 03 – Referente a qualquer abordagem

Eu – Sim

Marcus Vinícius – É, por isso que eu falei, é uma armadilha filosófica na verdade. Assim, porque não tem como você não ter pressupostos – isso é um pressuposto reichiano, não tem jeito, né. Quando o Reich admite que antes de tudo havia energia e que toda matéria é energia condensada – esse é um pressuposto, é isso mesmo. E se você fala de energia não tem como destituir a sexualidade da energia; não tem como, porque energia é sexualidade e sexualidade é energia. É vida. Mesmo naquilo que aparentemente não tem vida; o Reich vai mais longe, né, ele diz “aqui tem energia, nessa cadeira, que aparentemente não tem vida – mas tem”. Mas esse é um pressuposto reichiano. Filosoficamente você está correto, né – o ideal seria não ter pressuposto…

Eu – Aí eu discordo, porque se não é possível não é ideal – o ideal é estar disposto a falsear seus pressupostos quando a realidade os contradiz.

Marcus Vinícius – Ou isso, ou isso, ou isso, que seja.

Eu – E é essa conclamação que eu estou fazendo aqui: não sejamos reichianos indispostos a falsear nossos pressupostos

Marcus Vinícius – Sim

Eu – E a gente aqui já teve em alguns momentos outras discussões… Lembro de uma vez eu, Pessoa 06 e Pessoa 04 falando exatamente sobre essa questão da homossexualidade no Reich… Eu falei, “cara, se o Reich falou isso…”. Aí a Pessoa 04 falava “então a gente vai falar que é doença?”; prum Reich de um período é indiscutível que era.

Marcus Vinícius – Não, doença não. Nunca foi.

Eu – Doença não, concordo

Marcus Vinícius – Mas um desvio da sexualidade. Tinha um mainstream, havia uma via principal e era uma via secundária, digamos assim. Mas ele nunca falou em doença, também.

Eu – Sim. Essa minha colocação foi mais pra gente ativar o… falseamento também, sabe? Ficar de olho nas nossas hipóteses.

Marcus Vinícius – Eu acho que você tá certo, eu acho que é isso mesmo. Acho que foi bem sacado, acho que é isso. Mas aí é isso, né, aí realmente você não tem nada, você parte do pressuposto de que tudo é discutível, efetivamente tudo, sem nenhum balizamento anterior. Ou mesmo que você tenha um balizamento, coloque em xeque esse balizamento o tempo todo.

Eu – Quando necessário for

Pessoa 07 – Acaba com Freud, com Reich, com a cambada toda (risos)

Eu – Se for necessário…

Pessoa 05 – Vocês estão falando de pressuposto freudiano, reichiano… Antes de tudo, nós somos seres corporais, e a gente tem o sexo, e temos a nossa sexualidade. Então eu acho que é justo o seu questionamento mas… E como eu vou negar a sexualidade do corpo? Que ela existe, antes de Freud e antes de Reich – somos todos seres sexuais

Eu – [sacudo a cabeça em negação]

Pessoa 05 – Claro, ué. O corpo, eu vou negar que eu tenho sexo?!

Eu – Sexo e sexualidade são coisas diferentes, Pessoa 05, então ter sexo não é igual a ter sexualidade…

Pessoa 05 – Sim, mas então nós temos que começar, se for assim nos vamos questionar… tudo, porque

Eu – E se for assim a gente vai aceitar tudo…

Pessoa 05 – O seu questionamento é justo. Eu tô partindo disso. Eu só estou falando do corpo, o corpo tem sexo e tem sexualidade, é no mínimo… Da anatomia, da biologia

Pessoa 02 – Ele está falando de polução noturna, você pode assim “ah, não quero pensar, não quero pensar, não quero pensar” e tem uma noite que simplesmente [onomatopeia de ejaculação]… manda ver. Porque não é que você queria, é que seu corpo tem uma reação

Eu – Mas percebe, Pessoa 02, que o que eu tô falando é: há uma pesquisa com os indivíduos que se dizem assexuais provando que eles também tem polução noturna? Se essa pesquisa não existe, é no mínimo temerário… Eu não estou falando que a gente não possa fazer a afirmação, mas é fazê-la com asterisco, entende? É a mesma coisa que dizer isso “ah, porque tem sexo tem sexualidade” – essas pessoas (que hoje são muitas, inclusive)… esse é um campo do qual eu tô próximo, discussões de gênero, então tem muita gente hoje em dia que traz essa colocação. E eu já ouvi de várias formas; tem pessoas que simplesmente falam “ah, isso que vocês chamam de desejo sexual não me diz nada”, ela nem diz que não tem, ela diz “não sei o que é isso”, isso que você fala… Aí tem pessoas que descrevem o sexo como nojento, ela “nossa, mas ficar trocando fluido?”, aí é uma outra coisa [começa um burburinho] Exatamente, existe também um espectro aí. Então fazer a afirmação sem ter uma pesquisa por trás, eu acho que é temerário; ainda mais pra analistas reichianos, que é um cara que fala o tempo todo “psicologia como ciência natural”, “se queremos que a nossa psicologia seja uma ciência natural”… há de se fazer uma crítica a um certo positivismo do Reich, mas também há de se ter certos cuidados com o método, entende? Então eu acho que isso, por exemplo, a polução noturna poderia ser um bom exemplo – mas a gente sabe se essas pessoas também manifestam esse fenômeno? Somos tentados a acreditar que sim, e aí no geral, na nossa clínica, a gente vai agir com isso; mas na hora que a gente não está na clínica, que a gente não está no limite, que a gente está num certo exercício teórico, eu acho que faz sentido ficar dando esses estalos, botando esses asteriscos e buscando essas referências.

Marcus Vinícius – Não, eu acho que sim, acho que é válido, né, acho que é válido… Agora, você colocar em xeque um pressuposto como esse é muito complicado, eu só estou dizendo isso, porque como é que você vai fazer então? Mas eu entendo, por isso que eu falei, você usou uma artimanha filosófica pra discutir, que eu acho que é válida, acho que é importante, né, você discutir absolutamente tudo, tudo pode ser discutido. Mas você estava falando, por exemplo… é um campo muito restrito esse, porque é um exemplo, é o único exemplo, mas eu tenho uma amiga (não posso falar o nome, enfim) que tem uma filha que se diz assexual, né; e ela tem 16 anos essa menina. E aí, quando ela se veste… mas é um corpo, como a Pessoa 05 estava mencionando, é um corpo. E aí, eu não a conhecia, tenho pouco contato e tal… e a gente outro dia estava em um barzinho, aniversário de uma outra pessoa, e aí a filha finalmente apareceu, né… O mais engraçado, ou até o interessante dessa história toda é que a mãe dela, que é a minha amiga, é o oposto dessa história do assexuado, né? (risos) Evidentemente ela exala sexualidade, uma pessoa… enfim. Então não é atoa que tem uma filha lá, né… é isso. E aí quando você olha pra menina, não tem como dizer que não tem sexualidade ali; porque é a negação da própria sexualidade, entendeu? Você… vou falar isso sem nenhum preconceito, mas só pra vocês entenderem: você não consegue dizer primeiro se é um menino ou uma menina, se é um rapaz ou se é uma moça – você não consegue dizer. Eu tô falando isso não por preconceito – ninguém conseguia dizer. A gente sabia. [algumas interrupções] Mas você olha e o que você vê, num primeiro momento? Agora, se você for para além da aparência, ou seja, não ficar só no preconceito, aí você vai ver: é uma tentativa de esconder a sexualidade, na minha compreensão. Entendeu? Seja ela qual for. Porque ela diz, o discurso dela pra mãe é exatamente isso, “eu não tenho desejo, eu não quero, eu não olho porque eu não tenho desejo nenhum, nem por menino nem por menina – eu não penso, eu não sinto, eu não tenho nada”

Pessoa 03 – Agora, tem uma coisa que é numa dimensão…

Marcus Vinícius – Só pra eu terminar… Mas quando você olha, ainda que seja pela negação… Porque assim: pra que negar, de um modo ou de outro? Tá lá. Agora, seguindo o seu raciocínio, como eu vou não olhar com olhos reichianos? Essa é que é a grande questão, entendeu? Essa que é a grande questão.

Pessoa 03 – Produz sofrimento? Como que ela se organiza? O que que acontece ali, o que ela traz?

Marcus Vinícius – Mas se a gente pegar a questão fenomenológica e existencial e ir até o final dessa frase, ela é um pouco melhor porque ela é assim, né: ou você sofre ou você faz os outros sofrerem. [pausa] Porque às vezes a pessoa não sofre conscientemente mas faz os outros sofrerem

Pessoa 03 – Sim. Você vê algum problema ali… quer dizer, que que a pessoa tá te trazendo e quais os seus objetivos como terapeuta também

Marcus Vinícius – Ah não, não; se a pessoa aparece no meu consultório e essa não é uma questão – mas essa questão vai aparecer, porque ela é meio inevitável, isso que eu estou dizendo, ela é inevitável (risos)

Pessoa 03 – Mas o que acontece ali, né? Se você percebe que tem alguma coisa ali que, pô, não funciona bem, a pessoa tá impondo alguma coisa aos outros, a pessoa está se impondo… Tem alguma coisa que precisa ser trabalhada, porque às vezes… às vezes tá, não sei, tá funcionando – precisa mexer? Não sei, tô aqui me fazendo perguntas, que a gente se faz na clínica

Marcus Vinícius – Claro. Mas eu acho que essa discussão é fundamental; se você ficar só aqui no texto… é isso que eu acho que é rico pra todos nós aqui que ou atendemos ou vamos atender, acho que isso é fundamental, claro que é fundamental. Então, você vai trabalhar em função exatamente dessa relação e do que acontecer a partir dali. Agora, eu não vou apontar coisas fundamentadas somente em pressupostos inquestionáveis, né. Mas eu não posso retirar os meus olhos de mim mesmo (risos), isso não tem como, né, isso eu não posso fazer. Então eu olho pra menina eu vejo uma sexualidade óbvia ali, que é quando ela diz que não tem sexualidade e quando ela se mostra tentando, de algum modo, na minha compreensão, não na compreensão dela, mas no meu modo, porque são os meus olhos, de alguma forma tentar passar pros outros que ela não é, que não tem eco, que sexualidade não tem eco na vida dela (que é o que ela diz). E aí quando você olha pra ela você fala “entendi, olha só, ela tenta produzir isso e reproduzir isso”. Agora esse é o olho de quem? O olho de quem é reichiano, não tem muito jeito. Eu sei que o ideal talvez fosse: tá bom, então vamos esquecer todos os pressupostos, não tem [incompreensível] possível e vamos questionar tudo (risos), mas isso não existe

Eu – Não…

Marcus Vinícius – Eu já entendi, que você tem que questionar o próprio pressuposto, já entendi isso: “e se for mesmo isso?” – essa é a tua questão, eu entendi isso.

Eu – É. Eu mesmo que já conversei com algumas pessoas em nenhum momento também senti aquilo como verdadeiro – com uma única dessas pessoas que eu tive a abertura eu disse “olha só, o que você está me informando não cabe no meu paradigma de mundo”, mas isso não me impede de continuar esse diálogo e não ficar entendendo que ela é uma pessoa mentirosa. Essa parada que pode ser sutil é que eu acho que faz a diferença: é não colocar como assim “não é possível”, é entender que não é possível nesse meu paradigma. E aí na clínica, por exemplo, é isso, a pessoa chega e, como você falou, você não vai falar pra ela, a pessoa “ah não, eu sou assexual”… se você não toma essa cuidado, você vai ficar tentando negar essa possibilidade

Marcus Vinícius – Ah não, mas aí realmente eu acho que é um equívoco teórico nesse sentido

Eu – Mas que eu acho que pode passar batido se a gente não tiver esses cuidados

Marcus Vinícius – Pode, sim. O que eu acho é que essa sexualidade vai ser desvelada – pressuposto reichiano – eu acho que ela vai ser desvelada de um modo ou de outro. E a minha experiência clínica, que não é a única e eu posso estar sendo muito reducionista ao falar isso porque é a minha só, né (é de muitos anos mas é a minha), e eu não posso falar aqui pelos milhares e milhões de terapeutas que existem, cada um só pode falar do… né, é de que isso vai vir de algum modo, entendeu? Porque partindo do pressuposto que sexualidade é vida isso vai vir, né – fome de vida, fome de sexo, fome de vida, vai vir. A fome tá lá, entendeu, pra mim a fome tá lá, vai vir. Agora pode, e aí eu concordo com você, você não tem que ficar puxando pra isso, e vamos trabalhar em função do que esse paciente for, do modo como ele for se apresentando, e isso sim.

Eu – É, um exemplo que acabou de me ocorrer, acabou literalmente… No CAP [Centro de Atendimento Psicoterapêutico – a clínica constituída por alunas e pessoas formadas pelo IFP], a gente teve um pedido de uma pessoa que queria ser atendida e ela não queria ser atendida por um terapeuta que não entendesse de questões espirituais. Por exemplo, esse é um limite colocado. Eu acho que a mesma coisa pode ser se uma pessoa procura a gente como terapeuta reichiano e ela coloca que “ó, a minha principal queixa é que eu sou assexual e isso me atrapalha no meu trabalho”, entendeu? Ela não está colocando que é uma questão interna, mas é uma questão externa, eu acho que cabe do terapeuta reichiano em algum… ou ali na entrevista – quer dizer, ou não – na entrevista deixar claro que “meu pressuposto é que há sexualidade no ser humano; você vai se tratar comigo entendendo que eu tô partindo desse pressuposto”. Esse é um movimento que o Nietzsche, que o Weber, que o Piaget – Piaget não, perdão, Bourdieu – propõem: não é não ter pressupostos, é declarar os seus pressupostos. Eu acho que isso faz eticamente toda a diferença no seu trato com o paciente. Se você, seja na entrevista ou em algum momento atingiu aquele limite, você acha que essa sexualidade vai se desvelar e depois de dois anos de terapia isso não se desvelou e você ainda está tentando desvelá-la, acho que cabe esse diálogo com o paciente

Marcus Vinícius – Não, não tô nem tentando não. O que eu acho é que no processo terapêutico o paciente vai entrar em contato com isso, entendeu? Ele vai entrar em contato com isso. É o que eu tenho de experiência e o que eu vejo, o que eu sinto e o que eu percebo, entendeu, assim, eu acho que vai ser meio inevitável isso

Pessoa 02 – Até pra dizer que não tem nada, né?

Marcus Vinícius – Como assim? [risos generalizados]

Eu – O pressuposto dele é que tem alguma coisa…

Pessoa 02 – Seja qual for o assunto, “ah, eu vim aqui porque eu não me relaciono bem com a minha mãe” ou “o meu trabalho”… algum momento isso vai passar pela parte da sexualidade, onde a pessoa vai até dizer “olha, isso pra mim é indiferente”, mas tá lá, é um marco, é uma referência…

Pessoa 08 – Eu acho que a gente está indo num caminho de discutir uma sexualidade mental, né. Eu acho que tem que colocar a sexualidade no corpo. Porque se a gente ficar o tempo todo racionalizando a sexualidade, a gente acaba não vivendo a sexualidade, e a sexualidade é descarga. A gente tá o tempo todo… toda pulsão, ela tem um objeto e ela tem um caminho a percorrer, e a sexualidade ela é pulsátil, ela tem uma pulsação, quer queira ou não, você tá pulsando, se imaginariamente é tesão, ou é falta de tesão, né… você tá pulsando, o corpo ele tá pulsando. Sexualidade não é mental, sexualidade é corpo, é arrepio, é transpiração, é um monte de coisa, não é só imaginário, de frequência cardíaca, né, eu acho que tem uma coisa da energia que a gente tem que estar atento como o Marquinhos falou, Marquinho tá olhando lá aquele corpo, né, tá ligado naquele corpo, na pulsação expressiva daquele corpo, aquilo ali tem sexualidade. Agora se tá recalcada, se ela tá encontrando um jeito de esconder a sexualidade, acho que é uma outra coisa – mas todo corpo tem sexualidade.

Pessoa 09 – A minha sensação é que a gente vai ficar nessa discussão eternamente; existe uma coisa que a Denise [coordenadora do IFP] fala que eu acho que é muito importante que é “deita e respira”, e aí o que vier é dentro desse olhar, o terapeuta vai estar ali olhando e vai ver o que vai vir – e vão vir coisas, isso é fato, e aí vai se lidando com isso dentro da temática… e aí vem muita coisa, enfim. Ficar nessa discussão o tempo todo “sexual, não-sexual, não sei o que” não vai ficar…

Pessoa 03 – Acho que o mais importante que fica é essa coisa, a gente precisa suspender os pressupostos pra enxergar o outro e a relação, mas tê-los também.

Marcus Vinícius – Porque não tem como não tê-los. Talvez essa seja um ponto em comum, pra gente retomar o texto, que é assim: não tem como não ter pressupostos, mas colocá-los em suspensão quando isso for necessário pra poder atender bem alguém. Então tá bom – dentro dos teus limites, porque pode ser que você não consiga colocá-los em suspensão, né, tem isso, como eu já disse, talvez eu por exemplo não conseguisse atender um nazista. Esse talvez seja um limite pra mim, vou ter que indicar pra outra pessoa, não tem como, esse é o limite da coisa.

Pessoa 07 – Eu gosto de pensar a questão da energia sexual também e observar os animais, né; por exemplo, o animal quando ele tá no cio, né, ele tem uma energia, assim, fabulosa, ele deixa de comer, deixa de beber, né… Castra o animal; essa energia dele diminui, né. Você vê que a energia sexual no animal, que você observa, é muito… não tem a consciência, lógica, né, mas dá pra você perceber mesmo o movimento dele, a busca dele pelo outro animal, é fantástico, como ele reduz a agressividade dele quando ele é castrado. Então é difícil negar, né, esse pressuposto da sexualidade, da energia, da agressividade ligada à sexualidade. Eu acho que os animais mostram pra gente muita coisa; assim, não dá pra negar, porque o animal ele não fala, mas ele age

Eu – Mas isso pra você é um fato, castrar o animal a agressividade reduz?

Pessoa 07 – Diminui

Eu – Entendi

Pessoa 07 – Mas o meu cachorro, ele não deixa de pegar outra cadela não [risos generalizados]

Pessoa 10 – Castrado tratado [risos generalizados]

Marcus Vinícius – Muito bom, castrado tratado… Boa. Vamos retomar o texto gente.

  A leitura desse diálogo traz alguns elementos interessantes para pensarmos sobre epistemologia, sobre metodologia e sobre lógica. Gostaria, então, de endereçar algumas reflexões a esses temas, usando alguns trechos e elementos desse diálogo como suporte e ilustração para essa construção.

  A primeira coisa que acredito ficar evidente nesse diálogo são os elementos de retórica presentes nas falas do Marcus Vinícius quando começa a se dirigir aos meus questionamentos. De início ele já classifica o meu questionamento de “armadilha filosófica”; uma armadilha é uma ferramenta feita para capturar, ferir ou matar alguém sem chances de revide – uma armadilha estabelece uma ameaça que idealmente só é detectada quando é tarde demais e não oferece chances de retaliação. Mas o meu questionamento não foi uma armadilha, principalmente pelo cuidado com que ele foi feito de não buscar apontar um equívoco dele (embora eu também tenha falhado nessa construção ao utilizá-lo diretamente como exemplo) ou de qualquer pessoa, mas apontar um fato conhecido da epistemologia e fazer um convite à reflexão a partir disso. Mesmo que durante toda as suas falas posteriores ele tenha acrescentado coisas como “mas você tem razão”, ele não deixa de repetir dois outros movimentos: trazer a discussão para um termo que não foi colocado nem por mim nem por ninguém, a ideia de que não devemos ter pressupostos (mesmo que eu continuasse a corrigir isso, ele sempre voltava a esse ponto); reconhecendo a pertinência do questionamento, não alterava em nada a suas formulação inicial sobre o fato debatido. Importante registrar que eu não acredito que ele tenha feito esses movimentos de forma maquiavélica, buscando táticas que lhe permitissem vencer por retórica sem dar atenção ao conteúdo do debate; mas que esses elementos retóricos estavam presentes em sua fala é inegável, sendo, para mim, frutos de uma inclinação a defender seus pressupostos, que todos temos (viés de confirmação).

  Depois, de uma forma generalizada, fica patente a falta de acúmulo de discussão sobre epistemologia; que assim seja na sociedade em geral é, na minha opinião, triste, mas não surpreendente. Mas para estar na formação do IFP as pessoas devem, no mínimo, estar nos últimos períodos de uma graduação, sendo que a maioria ali já possui, no mínimo, uma graduação completa, sendo algumas pessoas portadoras de diplomas de mestrado e doutorado. E como fica claro ao ler com atenção algumas das falas desse diálogo, a questão para algumas pessoas não foi tanto não concordar com o que eu dizia, mas sim nem entender ao que eu estava me referindo. Por exemplo, uma das primeiras pessoas a intervir depois que eu pontuei a minha questão disse “Acaba com Freud, com Reich, com a cambada toda”, no sentido de que se formos questionar os nossos pressupostos não haverá conhecimento que se mantenha de pé; essa postura mostra um desconhecimento profundo da discussão acerca da construção do conhecimento, das divergências entre o método dedutivo e o método indutivo, ou, ainda pior, mostra ou um cinismo absoluto que nega que hoje fazemos ciência dessa forma ou um desconhecimento quase completo da história da ciência, ao menos de Descartes em diante. Como essa frase é exemplar de uma forma de pensar que considero muito equivocada, vou tentar dar um pouco mais de atenção a cada uma dessas implicações.

  Se questionar os nossos pressupostos levasse a uma total incapacidade de produção de conhecimento, Descartes não teria produzido tudo o que produziu após ter feito as considerações que apresenta em seu “Discurso Sobre o Método” – entre elas, a criação da geometria analítica, tida por algumas pessoas como a sua mais importante contribuição. Como parece inegável que Descartes continuou a produzir conhecimento mesmo depois da publicação do seu “Discurso Sobre o Método”, parece que a questão “se duvidarmos de nossos pressupostos não há possibilidade de construção de conhecimento” não se sustenta – mas há uma possibilidade dela ainda se sustentar. Seria o caso de alguém questionar não a informação de que Descartes produziu conhecimentos após a publicação de seu livro, mas de que o fez usando seu método proposto, a dúvida como primeiro passo para se chegar ao conhecimento. É um questionamento muito razoável, devo acrescentar. Mas, independente da afirmação “Descartes utilizava a dúvida metódica em sua construção do conhecimento” ser verdadeira ou falsa, esse questionamento razoável só pôde ser feito por alguém que duvidou – ou seja, para duvidar do método de Descartes a pessoa teve que utilizar o método de Descartes! Essa certamente não é a única defesa que pode ser feita da necessidade de utilizarmos a dúvida como método, mas acredito que é suficiente para os fins dessa pequena exploração.

  A inclusão da falseabilidade como princípio necessário para a produção do conhecimento científico, proposta por Popper, leva essas coisas um passo adiante; a ideia aqui não é apenas que temos que duvidar de tudo, mas que efetivamente não podemos ter certeza de (quase) nada, e que por isso o conhecimento científico não é aquele que foi provado certo, mas aquele que pode ser (e ainda não foi) provado errado. Novamente, isso pode parecer levar à ideia de que o conhecimento é impossível, mas isso é apenas uma dicotomia que não faz sentido. A proposta de Popper diante da ideia de que não podemos ter certeza sobre algo não é que desistamos de produzir conhecimento sobre esse algo, mas que a produção de conhecimento seja destinada à redução da incerteza. Assim, a cada nova pesquisa, a cada novo experimento, a cada novo teste, a cada nova análise, adicionamos informações sobre aquele assunto, mas independente da quantidade de informações acumuladas não podemos fazer afirmações do tipo “temos certeza que se X então Y”; o que podemos dizer, nessa acepção, seria algo como “temos certeza de que toda vez que observamos X aconteceu Y”. A diferença é enorme, principalmente se considerarmos os resultados práticos. Um excelente exemplo é a relação entre a teoria da gravitação universal de Newton e a relatividade geral de Einstein: a teoria de Newton produzia resultados extremamente satisfatórios, pois as suas equações descreviam com bastante exatidão o universo que podíamos observar; mas a teoria de Einstein fazia predições falseáveis diferentes das de Newton, e com o tempo, experimentos e observações ficou claro que a teoria de Einstein continuava fazendo boas predições aonde a teoria de Newton se equivocava. Não se tratou de, dados os inúmeros exemplos de sua exatidão, acreditar que a teoria de Newton era verdadeira, descrevia perfeitamente a realidade; mas de confiar nela pois era o que de melhor havia para descrever a realidade. Confiar em algo não significa atribuir-lhe o estatuto de verdade, isso é fundamental entendermos; significa que tentamos falsear aquela hipótese um número X de vezes e continuamos a ter motivos para mantê-la em dúvida – a eliminação dessa dúvida não se dá por alcançar a certeza de que a hipótese descreve a realidade, mas, ao contrário, só eliminamos a dúvida quando essa hipótese se demonstrar inadequada para descrever a realidade. Ou seja, o processo não é de “nossa hipótese descreve perfeitamente a realidade, eliminamos a dúvida”, mas sim de “essa hipótese não descreve a realidade, então a descartamos e eliminamos a dúvida”.

  Algumas pessoas dirão, como disseram no dia seguinte a esse diálogo em uma espécie de continuação, que essa proposta torna impossível qualquer produção de conhecimento. Como acredito que já dei conta disso, vou retomar o exemplo acima sobre as equações de Newton e de Einstein. Hoje fazemos ciência majoritariamente através do modelo indutivo proposto por Popper, e isso não impede que vejamos avanços incríveis a cada dia; um exemplo muito significativo é a primeira fotografia de um buraco negro. Até então a existência de buracos negros era apenas uma possibilidade teórica, nunca havíamos visto um; mas as equações propostas por Einstein, ao serem colocadas em um computador, produziam uma imagem que se mostrou muito semelhante à foto efetiva do buraco negro. Ou seja, Einstein propôs equações que, entre outras coisas, podiam ser usadas para prever a aparência de um buraco negro, mesmo sem ele nunca ter visto um; a foto de um buraco negro foi mais um teste de falseabilidade pelo qual a teoria de Einstein passou – mas isso não nos dá certeza de que ela está certa, apenas diminui um pouco mais a incerteza de que elas descrevem adequadamente a realidade. Outros dados podem aparecer e, com isso, percebermos que a teoria de Einstein está equivocada em algum ponto; assim, não devemos dá-la por garantida, mas sim submetê-la sempre a novos testes.

  Outro elemento importante na proposta epistemológica de Popper é que ao buscar elementos que confirmem uma hipótese, você poderá achá-los em qualquer lugar; por isso, a ciência deveria se ocupar de buscar provar que afirmações são falsas e não que são verdadeiras ou, mais precisamente, a ciência buscaria “desconfirmar” as coisas. Se, por exemplo, eu tentasse provar a existência de super-heróis, eu acharia incontáveis provas disso: existem revistas em quadrinhos que falam de super-heróis, revistas não de quadrinhos que fazem o mesmo, brinquedos, filmes, livros, eventos, teses de doutoramento… Apenas buscando provar que super-heróis não existem é que eu conseguiria questionar a sua existência. O mesmo acontece nessa discussão acerca da sexualidade: ao acreditar que todo ser humano possui necessariamente uma sexualidade e tentar provar isso, as pessoas acharão motivos apenas para continuar acreditando nisso (seja a mãe hipersexualizada de uma pessoa que se diz assexual, seja as roupas compridas que “escondem” uma sexualidade, sejam os cachorros já observado que sempre demonstram possuir sexualidade…); apenas tentando provar que nem todas as pessoas possuem sexualidade é que poderíamos questionar a onipresença de sexualidade em seres humanos. E, novamente, isso não significa que devemos ficar questionando os nossos pressupostos a todo momento, busca prová-los errados, apenas devemos estar abertos a fazê-lo quando a situação apresentar bons motivos para isso; alguém que faz uma pesquisa sobre um assunto tem bons motivos para questionar os pressupostos envolvidos em suas hipóteses, pois uma pesquisa deveria buscar a construção de conhecimento confiável; alguém que se depara com um limite dos seus paradigmas tem bons motivos para questionar seus pressupostos, pois paradigmas tendem a mas não deveriam se tornar dogmas. Novamente usando o exemplo da teoria da relatividade geral de Einstein, as pessoas do campo da física que trabalham com essa teoria todos os dias não ficam questionando-a o tempo todo – ela já passou por testes de falseabilidade o suficiente para ser considerada válida e tem apresentado respostas interessantes sempre que comparada com a realidade. Mas aposto que aquelas pessoas que trabalham diretamente com essas equações ficaram atentas quando foi anunciado que teríamos a primeira foto de um buraco negro, pois esse seria mais um excelente teste para essas equações – mais um teste no qual elas passaram. Se ela não passasse, era ora de empreender mais pesquisas, buscando entender porque elas descrevem tantas coisas com aparente exatidão mas não descreveu o buraco negro – assim, abandonaríamos as equações da relatividade geral como válidas enquanto descrição da realidade, mas todo o conhecimento construído a partir delas não seria perdido. O mesmo aconteceu com as equações de Newton; ao olhar para dentro dos átomos, entendemos definitivamente que elas não descrevem a realidade, mas novos conhecimentos foram construídos a partir de tudo que elas tornaram possível até então. E mesmo hoje elas fornecem uma aproximação tão satisfatória que edifícios e montanhas-russas são construídos a partir de cálculos que utilizam as equações de Newton. O mesmo se daria se a ideia de que a sexualidade não é onipresente nos seres humanos: não jogaríamos fora tudo que a psicanálise e a análise do caráter construíram em cima desse pressuposto, mas deveríamos justamente buscar entender o porque elas produzem resultados satisfatórios mesmo que partam de um pressuposto equivocado. Você pode estar certo mesmo sem fazer ideia do real motivo; Alice não sabia o porque de um lado do cogumelo fazê-la crescer e o outro fazê-la diminuir, mas continuava alterando de tamanho mesmo assim.

  Nada disso é muito complicado de entender, acredito; mas exige uma postura aberta ao conhecimento para isso. Duvido muito, com evidência de sobra, que pessoas sejam capazes de entender essas coisas quando estão tentando defender seus pressupostos. Por isso que acredito que esse tema deveria ser trabalhado desde cedo, no ensino básico mesmo – eu não faço muita ideia de como isso se processaria, acho que não faz muito sentido discutir história da Filosofia com crianças, mas penso que as pessoas que estudam pedagogia poderiam se debruçar sobre esse tema da construção do conhecimento e produzir conteúdos curriculares (no caso da nossa sociedade escolarizada) que vão abordando esses assuntos desde muito cedo – penso que uma sociedade com esse tipo de preocupação seria absurdamente mais saudável do que a nossa. Mas não fazemos isso e vamos lidando com as consequências, tudo bem. Mas penso que deveria incomodar muito que pessoas com uma formação acadêmica não consigam entender essas coisas; novamente, não é culpa ou responsabilidade dessas pessoas, elas simplesmente acreditaram em uma instituição amplamente aprovada pela sociedade (embora estejamos vivendo tempos aonde o conhecimento e a ciência estejam sendo violentamente desvalorizados), acreditaram que dedicando seu preciosíssimo tempo a estudar o que aquela instituição lhes diz que devem estudar elas estariam ganhando conhecimento, elas estariam sendo iniciadas na ciência. Mas, infelizmente, precisamos duvidar disso – e não somente porque devemos ter a dúvida como método, mas porque bons motivos se apresentam para que questionemos esse pressuposto…