26 de janeiro de 2019 – terceira e quarta aulas de Análise do Caráter I

Por conta de uma impossibilidade de agendas, tivemos em janeiro aulas somente da disciplina Análise do Caráter I; em fevereiro, para compensar, teremos apenas aulas de Introdução ao Pensamento Reichiano. Isso estava decidido desde a reunião de formação de turma, que aconteceu em outubro, aonde são decididas as datas das aulas, então não foi surpresa para ninguém.

Apesar de já ter entendido que é uma boa ideia gravar as aulas para conseguir produzir melhores relatos posteriormente, acabei por não fazê-lo nesse dia; isso prejudicou muito a minha capacidade de produzir o relato dessa aula dupla, não sei explicar exatamente o motivo. Imagino que o meu cansaço, a didática do professor e o modo da aula foram os principais fatores – tive um início de ano complicado por conta de uma inflamação no ouvido e problemas pessoais; o professor tende a “aprofundar” certos tópicos que considera importantes mas sem necessariamente se prender ao texto; vim preparado para mais uma aula com leitura dos textos e, justo nessa, o modelo foi trocado e o professor decidiu trabalhar em cima das questões levantadas pelas alunas. Para não ficar sem o relato, vou transcrever aqui os trechos dos capítulos III e IV do livro Análise do Caráter que anotei – espero conseguir levar o gravador nas próximas aulas; além de fazer as vezes de relato dessa aula, esse formato também serve como um exemplo de como organizo as minhas anotações de leituras, ajudando a quem quiser entender como faço para estudar.

Antes das anotações vale a pena destacar que nessa aula houve também uma simulação de atendimento, aonde uma pessoa simulou a cliente e outra a terapeuta. Conforme o diálogo ia se desenrolando o professor fazia inserções para salientar aspectos da técnica que achava importante destacar. Achei interessante que ele afirmou que, para esse exercício (que, pelo que entendi, ele usa ordinariamente em outra disciplina), a pessoa que faz o papel de cliente pode tanto colocar as suas questões como criar uma personagem, pois para a Análise do Caráter o conteúdo (ou a sua veracidade) não tem tanta importância quanto a forma – ou seja, o que se fala não é tão importante quanto o como se fala. Imagino, obviamente, que isso seja em relação às limitações desse exercício; pois, por mais que efetivamente a forma tenha prevalência sobre o conteúdo na teoria reichiana, imagino que forma e conteúdo se coadunam de forma coerente, enquanto que em uma personagem essas coisas podem não estar em harmonia – ou então o que o professor quis dizer foi que, criando personagem ou não, a pessoa que fizer o exercício é que será efetivamente analisada.

Outra questão interessante de registrar é que durante a apresentação das coordenadoras na reunião de formação de turma em outubro, foi salientado que só havia uma única mulher na coordenação do IFP, e depois disse algo como “mesmo que [o professor de análise do caráter] afirme que a prática reichiana é uma prática masculina”. Nessa aula de janeiro perguntei o motivo disso ao professor, que explicou que, para ele, a prática reichiana é uma prática muito intervencionista, logo uma prática masculina; ficou claro que ele sabia o que estava falando pois fez questão de fazer uma ressalva do tipo “sei que isso contraria os estudos de gênero, mas…“. Realmente me parece que a construção do pensamento reichiano se firma em a prioris que hoje são muito questionados – mais uma motivo para buscarmos a construção de uma psicoterapia que busque ser científica, no sentido que se atualize e coloque as suas hipóteses à prova.

Agora, às anotações que fiz dos capítulos. Os títulos dos capítulos estão em negrito, as anotações divididas em tópicos e tudo aquilo que estiver em itálico é reprodução literal de trechos do livro.

Capítulo III – sobre a técnica de interpretação e de análise das resistências

– Sobre o objetivo da análise: “Sua meta é atingir a fonte de energia dos sintomas e do caráter neurótico para pôr em ação o processo de cura. Obstruindo esse esforço estão as resistências do paciente, das quais as mais tenazes são aquelas que provêm dos conflitos transferenciais. Elas devem ser tornadas conscientes, interpretadas e abandonadas pelo paciente, isto é, seu valor psíquico tem de ser anulado. Assim, o paciente penetra cada vez mais fundo nas lembranças carregadas de afeto da primeira infância

— Importante notar como Reich fala clara e diretamente em cura.

– “A experiência clínica confirma o preceito de Freud, segundo o qual o paciente que gosta de reencenar suas experiências anteriores não apenas deve compreender sua reencenação como também lembrar, com os afetos correspondentes, se ele quer realmente atingir o núcleo de seus conflitos (…) não há cura real sem a análise das experiências primárias. O importante é que o ato de lembrar seja acompanhado pelos afetos pertinentes ao material lembrado

— Esse ponto tem relação com a questão dinâmica (na divisão entre tópica, dinâmica e econômica). Inicialmente, para Freud, bastava no processo terapêutico que se tornasse consciente aquilo que estava inconsciente (uma “mudança de local”, topográfica); o ponto de vista dinâmico traz que apenas o tornar consciente não basta, esse memória deve trazer as emoções e afetos relacionados a ela à tona.

— Imagino que é possível pensar nisso também como uma afirmação de que é importante unir afeto e cognição no processo terapêutico. A esse respeito, estou me devendo a leitura do autor Antonio Imbasciati que, pelo pouco que sei, busca ajustar a psicanálise às descobertas feitas pela ciência no último século, e um dos seus pontos principais é discutir essa relação entre afeto e cognição.

– “Foi somente quando um paciente me contou, alguns meses após o término de uma análise mal sucedida, que nunca confiara em mim, que aprendi a avaliar o perigo da transferência negativa que fica latente

— A ideia de “transferência negativa latente” é muito importante na teoria reichiana. Seriam comportamentos contra a análise e/ou contra a figura do analista mas que não acontecem de forma declarada.

– Descrição da “situação caótica”: “As recordações e ações são bastante numerosas, mas elas se seguem umas às outras em grande confusão (…) desse modo o paciente consegue, por anos a fio, esgotar seu tempo de sessão sem a mais leve mudança em sua natureza

— Essa situação aconteceria, segundo Reich, quando o analista não interpreta e “trabalha” as resistências mas, ao invés disso, oferece interpretações dos conteúdos inconscientes que detecta nas falas e sonhos do paciente. De nada adianta oferecer uma interpretação, por mais correta que esteja, se existe o muro das resistências de pé.

– “Aproximamo-nos do caso livres de noções preconcebidas e estabelecemos nossa orientação com base em seu material. em seu comportamento, naquilo que o paciente esconde ou representa como seu oposto. Só então nos perguntamos: como utilizo melhor o que sei deste caso para a técnica deste caso?

— Nesta frase está bem explícita a ideia de Reich de que não há um “manual da técnica” que se possa seguir, pois a técnica de cada caso deve surgir da análise e condições do próprio caso. Obviamente existem pressupostos, teorias e métodos (como, por exemplo, a noção de que as resistências devem ser trabalhadas antes que se forneça interpretações sobre o conteúdo inconsciente), mas interpreto o que Reich diz como uma afirmação de que não há um caminho único a se seguir em análise, do tipo “comece sempre perguntando isso, depois faça aquilo e finalize dessa forma”, e sim que cada caso necessitará de uma abordagem específica que deverá ser descoberta e desenhada a partir do estudos e evolução do próprio caso.

– “Devemos evitar interpretações que envolvam sondagens mais profundas enquanto não aparecer e for eliminada a primeira frente das resistências primordiais, não importa o quão abundante, claro e obviamente interpretável seja o material. Quanto mais material o paciente recorda, sem ter produzido as resistências correspondentes, tanto mais cautelosos devemos ser

– “É importante não perturbar o paciente no desabrochar de sua ‘personalidade analítica’, durante as primeiras semanas do tratamento. Também as resistências não devem ser interpretadas antes de se terem revelado por completo e de serem compreendidas em essência pelo analista

— Nesse ponto Reich está falando sobre como lidar com os primeiros encontros com o paciente; é importante deixar que o paciente desenvolva essa ‘personalidade analítica’, ou seja, o seu modo de se comportar em análise, sem muitas intervenções – justamente porque o comportamento do paciente é material para a análise do caráter. Então, por exemplo, se se insiste que o paciente fale de determinada forma, perde-se o material do jeito de falar no setting clínico do paciente, que advém do seu caráter e, com isso, se relaciona com sua doença (a neurose).

– Sobre a importância de um ordenamento na interpretação das resistências: “Quando o analista apreende o sentido de tais resistências, conscientiza-as por meio de uma interpretação consistente, isto é, primeiro esclarece ao paciente que ele tem resistências, depois o mecanismo do qual estas se servem e finalmente aquilo contra o que se dirigem

— Mais uma vez fica clara a preponderância da forma sobre o conteúdo na análise reichiana: primeiro se aponta ao paciente que ele resiste, depois como o faz e só por fim contra o que essa resistência se configura. Em alguma descrições de casos Reich demonstra que essas etapas podem até mesmo estar separadas para o analista: ou seja, esse pode dizer ao paciente que ele está resistindo mesmo que o próprio analista ainda não saiba a que conteúdo recalcado se liga essa resistência.

– “Como perturbador do equilíbrio neurótico, o analista torna-se necessariamente o inimigo, quer se trate de amor ou de ódio projetado, porque em ambos os casos a defesa e a rejeição estão sempre presentes

— Motivo pelo qual sempre “a primeira resistência significativa contra a continuação da análise está automaticamente, e de conformidade com a estrutura do caso, ligada à relação com o analista

– “As resistências, que obviamente não são mais do que peças individuais da neurose, aparecem umas após as outras, mas ligadas por uma estrutura historicamente determinada

– “Usando a resistência principal como uma espécie de cidadela, por assim dizer, o analista deve minar a neurose por todos os lados, em vez de se dedicar a resistências periféricas isoladas

Capítulo IV – sobre a técnica de análise do caráter

– “Nosso método terapêutico está baseado nos seguintes conceitos teóricos básicos: o ponto de vista topográfico determina o princípio de técnica no sentido de que o inconsciente tem de ser tornado consciente; o ponto de vista dinâmico estabelece que esse tornar consciente o inconsciente não deve ser realizado diretamente, mas mediante a análise da resistência; o ponto de vista econômico e o conhecimento da estrutura impõem que, na análise da resistência, cada caso individual requer um plano definido que deve ser deduzido a partir do próprio caso

– Explicação do que é o ponto de vista dinâmico: “a exigência de que o paciente deve não apenas recordar, mas também experimentar aquilo de que se recorda

– Definição de “resistências de caráter”: “certas considerações clínicas obrigam-nos a designar como ‘resistências do caráter’ a um grupo particular de resistências que encontramos no tratamento dos nossos pacientes. Estas derivam seu caráter especial não de seu conteúdo, mas dos maneirismos específicos da pessoa analisada (…) a forma das reações do ego, que difere de um caráter para outro mesmo quando os conteúdos das experiências são semelhantes, pode ser remontada às experiências infantis, da mesma maneira que o conteúdo dos sintomas e das fantasias

– Formação do caráter neurótico: “do ponto de vista da análise do caráter, a distinção entre neuroses crônicas, isto é, que existem desde a infância, e neuroses agudas, isto é, que surgiram mais tarde, não tem relevância alguma (…) o que importa é saber que o caráter neurótico, base de reação para a neurose sintomática, se forma, pelo menos em suas características principais, na época em que a fase do complexo de édipo termina

– Sintoma X Caráter: “Uma falta de percepção da doença nem sempre é prova confiável, mas é com certeza uma indicação essencial da neurose de caráter. O sintoma neurótico é sentido como algo estranho e provoca um sentimento de enfermidade. Por outro lado, o traço de caráter neurótico, por exemplo, o senso exagerado de ordem do caráter compulsivo ou a timidez ansiosa do caráter histérico está organicamente incorporado na personalidade. (…) quando o caráter neurótico se exacerba sintomaticamente, é que a pessoa sente que está doente (…) os sintomas nunca exibem racionalizações tão completas e críveis como os traços de caráter neurótico. (…) não há dúvida quanto à falta de sentido de um sintoma, ao passo que o traço de caráter neurótico possui motivação suficientemente racional para não parecer patológico ou sem sentido

– Sobre (para quem tem dúvida) a mutabilidade do caráter: “a análise de seu desenvolvimento mostra que o caráter teve de se tornar o que é, e não outro qualquer, por motivos muito específicos. Fundamentalmente, portanto, ele é passível de análise e de mudança, exatamente como o sintoma

– “Enquanto o sintoma corresponde apenas a uma experiência definida ou a uma desejo delimitado, o caráter, isto é, o modo específico de existir de uma pessoa, representa uma expressão de todo o seu passado

– “Além dos sonhos, associações, lapsos e outras comunicações dos pacientes, merece especial atenção o modo como eles contam os sonhos, cometem lapsos, produzem associações e se comunicam, em suma, seu comportamento. (…) não é apenas o que o paciente diz, mas como o diz que deve ser interpretado

– “Economicamente, o caráter na vida diária e a resistência de caráter na análise servem como meio de evitar o que é desagradável (unlust), de estabelecer e preservar um equilíbrio psíquico (ainda que neurótico) e, por fim, de consumir quantidades recalcadas de energia pulsional e/ou quantidades que escaparam à repressão

– “O critério mais importante da análise efetiva é o uso de poucas (mas certeiras e consistentes) interpretações, em vez de muitas, não-sistemáticas, que ignoram o momento dinâmico e econômico

– Sobre a formação das resistências: “toda resistência é formada por um impulso do Id, que é evitado, e por um impulso do Ego, que evita. Ambos os impulsos são inconscientes

– Mais sobre a resistência que se direciona ao analista: “A camada superficial de toda resistência, isto é, a mais próxima da consciência, tem, necessariamente, de ser uma atitude negativa em relação ao analista, tanto fazendo que o empenho evitado do Id esteja baseado em amor ou em ódio. O Ego projeta sobre o analista sua defesa contra o empenho do Id. Assim, o analista se torna um inimigo, e perigoso, porque, com a sua imposição da regra básica maçante, despertou os empenhos do Id e perturbou o equilíbrio neurótico. Em sua defesa, o Ego faz uso de formas muito antigas de atitudes defensivas. Numa situação incômoda, chama em seu auxílio impulsos de ódio do Id, mesmo quando está evitando um empenho de amor

– “A psicanálise não nega uma etiologia hereditária da neurose, mas só lhe concede a importância de uma das muitas etiologias

— Uma mostra da abertura na teoria reichiana para se pensar em causas e efeitos a partir de junções com estudos de neuropsicologia e outras áreas. Embora sempre estivesse preocupado com a construção científica do seu trabalho, Reich se apega a alguns conceitos não-científicos da psicanálise; em minha opinião, ele deveria ter buscado o seu falseamento antes de construir teorias em cima deles. Os reichianos, então, buscam se firmar em base menos sólida ainda, pois com quase um século de afastamento de Reich teriam como dever procurar dar prosseguimento aos estudos metodológicos do trabalho iniciado por Reich (por exemplo, hoje em dia seria muito fácil fazer estudos detalhados e controlados com os acumuladores orgônicos e o Cloudbuster – talvez esses existam e eu não conheça, mas acredito que se existissem e confirmassem os ditos e escritos de Reich a nossa forma de encarar o mundo seria profundamente abalada)